Lembrar, registrar e responsabilizar, para não repetir
A tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023, quando radicais invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília, não foi um episódio isolado ou fruto de um impulso súbito que se encerrou alí. Pelo contrário, trata-se de uma sequência lógica de ações e retóricas que, há anos, corroem o tecido democrático brasileiro. A constante contestação dos resultados eleitorais e o discurso golpista que incita ao ódio e à violência promovido por Jair Bolsonaro desde 2018, culminando em atos explícitos de desobediência civil e tentativas de ruptura, expõem uma estratégia que, mesmo fracassada, revela a gravidade da ameaça à democracia.
Se a tentativa de golpe não obteve sucesso imediato, ela continua viva na forma de múltiplos atentados, conspirações e ataques à integridade do Estado. As recentes prisões de militares e policiais federais envolvidos em um plano para assassinar o presidente Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes demonstram que os riscos para a democracia não terminaram com o desmonte do acampamento golpista em frente aos quartéis. O atentado com explosivos na Praça dos Três Poderes, em novembro de 2024, corrobora o fato de que há uma rede organizada, disposta a recorrer à violência para derrubar o governo e desmantelar as instituições.
Esses eventos se somam ao indiciamento de Bolsonaro e de 36 pessoas, incluindo figuras militares de alto escalão, pela Polícia Federal por crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa nos atos de 8 de janeiro. A gravidade dos crimes cometidos e planejados mostra que o problema não está restrito a fanáticos ou grupos isolados. Há uma movimentação sistêmica, profundamente entranhada em setores das forças armadas e das polícias, que alimenta a ideia de que o uso da força é uma ferramenta legítima contra governos eleitos democraticamente. Nesse mesmo instante em que esse texto é lido há inúmeras manifestações ocorrendo na internet em aplicativos como tiktok, kwai e X favoráveis aos atentados e incitando que haverá mais caso Bolsonaro seja preso. Este quadro se assemelha a outros períodos sombrios da história brasileira, como o golpe militar de 1964, que muito teve apoio das classes médias.
A resposta da sociedade e das instituições precisa, portanto, ser firme e implacável. A impunidade, nesse contexto, seria a porta aberta para a repetição desses atos. O Brasil já pagou um preço elevado por concessões feitas no passado. A Lei da Anistia de 1979, que perdoou crimes cometidos tanto por agentes da repressão quanto por opositores durante a ditadura militar, criou um precedente perigoso: a impunidade para crimes políticos contra o Estado democrático. Hoje, o país não pode repetir o erro de tratar atentados à democracia como meras transgressões, sujeitas a uma “normalização” futura.
A defesa da legalidade e o respeito às instituições não podem ser negociáveis. É inadmissível que um ex-presidente da República esteja diretamente vinculado a uma tentativa de golpe e que figuras de seu governo, incluindo generais como Walter Braga Netto e Augusto Heleno, continuem a ter relevância política sem enfrentar as devidas consequências legais. Pior ainda é a hesitação de setores da sociedade em reconhecer a gravidade dos crimes cometidos. A tentativa de desqualificar as investigações, como fez Flávio Bolsonaro ao minimizar o planejamento de assassinatos como “meras ideias”, é um insulto à inteligência do povo e à justiça.
É necessário lembrar que uma democracia, para ser robusta, depende da memória histórica e de uma aplicação rigorosa da justiça. Lembrar para não repetir é essencial para que a sociedade não subestime os riscos de deixar crimes políticos impunes, mas mais do que isso é a necessidade de se registrar como de fato golpistas na história e punir. A justiça, aqui, deve funcionar como um antídoto contra a repetição do passado e um alerta permanente de que a legalidade democrática é a única via legítima para o exercício do poder. Quando a democracia é atacada, não pode haver espaço para condescendência ou hesitação.
A postura firme adotada pelo Supremo Tribunal Federal e a Polícia Federal ao investigar e indiciar os responsáveis pelos ataques de 8 de janeiro e os conspiradores dos planos de assassinato reflete o compromisso com a preservação do Estado de Direito. Mas isso é apenas o começo. As prisões de executores e articuladores não bastam; é fundamental que as estruturas que possibilitaram esses crimes sejam desmanteladas. O Brasil não pode mais ser complacente com figuras públicas que flertam com a desordem e a violência como instrumentos de poder.
Os recentes indiciamentos e condenações são passos importantes, mas a vigilância deve ser constante. A história já demonstrou que concessões a golpistas ou a seus apoiadores trazem consequências devastadoras. As instituições democráticas precisam não só punir os envolvidos, mas também criar mecanismos para garantir que o golpismo seja erradicado da vida pública. Isso inclui reformas legislativas, controle rigoroso sobre as forças de segurança e uma educação cidadã que reforce os valores democráticos.
Em suma, o Brasil se encontra em um ponto crítico de sua história. A democracia foi colocada à prova e, embora tenha resistido, continua sob ataque. A lição que fica é clara: sem uma resposta firme e sem justiça plena, o risco de que esses crimes se repitam é real e iminente.