Antes da Lava Jato

As origens da Lava Jato: a história ‘oficial’ e a verdade por trás do maior escândalo judicial do planeta

Reprodução/Wilson Center

A história oficial, possivelmente, você já conhece. É aquela ladainha propagandeada por anos pela mídia corporativa, por séries e filmes lavajatistas, os quais apontam que as investigações teriam começado em meados de 2013, apurando a atuação do doleiro Carlos Habib Chater (dono do Posto da Torre, um posto de combustíveis localizado em Brasília e que serviria de inspiração para o surgimento do nome “Lava Jato) em crimes financeiros, principalmente a lavagem de dinheiro do tráfico de drogas.

Ao longo dos últimos anos, contudo, aquela história contada por agentes da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e pelo ex-juiz Sergio Moro passou a ser revista diante da descoberta de novas informações sobre a trajetória da força-tarefa e seus integrantes.

A história ‘oficial’ e o porque do nome ‘Lava Jato’

Oficialmente, segundo relato do delegado da PF Márcio Anselmo, a história da Lava Jato teria começado em julho de 2013, 16 meses antes da Operação Lava Jato ser deflagrada, quando ele próprio e mais dois agentes investigavam Carlos Habib Chater, um doleiro que há anos operava em Brasília e havia sido vinculado ao ex-deputado de Londrina, José Janene (PP-PR), falecido em 2010.

Em agosto daquele ano, quando foram autorizadas escutas telefônicas pela Justiça, descobriu-se que Chater trocava mensagens telefônicas com um desconhecido sobre suas atividades. A análise de operações bancárias do doleiro já apontava para um esquema com empresas fantasmas e transferências injustificadas, mas só em outubro que se descobriu que a pessoa com quem Chater trocava mensavens era Alberto Youssef, um especialista em lavagem de dinheiro que já havia feito acordo de colaboração judicial em 2004, se livrando de uma pena mais longa na Operação Banestado – por coincidência (ou não), o primeiro caso de crime financeiro importante a ser julgado pelo então juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba.

Até então, a palavra Petrobras não aparecia nem remotamente nas investigações. Isso ocorreria só em janeiro de 2014, por causa de um descuido: Yousseff havia comprado um carro de luxo em nome de Paulo Roberto Costa, ex-diretor de Abastecimento da empresa petroleira de capital misto. Costa, inclusive, havia sido colocado à frente da diretoria da Petrobras justamente pelo ex-deputado Janene.

Dois meses depois, no dia 17 de março de 2014, era deflagrada a Operação Lava Jato. Naquela manhã, uma ação de busca e apreensão foi realizada no Posto da Torre, em Brasília. O nome “Lava Jato”, inclusive, decorre do uso de uma rede de postos de combustíveis e lava a jato de automóveis para movimentar recursos ilícitos pertencentes a uma das organizações criminosas inicialmente investigadas (e embora os trabalhos tenham avançado para outros rumos, o nome inicial se consagrou).
Naquele momento, a investigação apontava a atuação de quatro doleiros que comandavam quatro núcleos que trocavam informações e práticas ilícitas entre si. Entre os presos, quatro doleiros: Nelma Kodama, Raul Srour, Alberto Youssef e Carlos Habib Chater. Três dias depois, finalmente a Petrobras entraria na mira dos investigadores e apareceria nas manchetes dos jornais, com a prisão de Paulo Roberto Costa.

A história que os lavajatistas não querem que seja contada

Ao longo dos últimos anos, no entanto, a história da Operação Lava Jato passou a ser recontada com o surgimento de novos elementos. O principal deles, provavelmente, é a relação promíscua entre agentes da força-tarefa e autoridades estrangeiras, em especialmente dos Estados Unidos, país que, na prática, utilizou a operação que supostamente combateria a corrupção para minar a autonomia geopolítica brasileira e acabar com a ameaça representada pelo crescimento de empresas brasileiras que poderiam colocar em risco os interesses estadunidenses.

Como recorda o jornal francês Le Monde, em artigo assinado por Nicolas Bourcier e Gaspard Estrada, tudo começou em 2007, durante o governo de George W. Bush, quando autoridades dos EUA se mostravam incomodadas pela falta de cooperação dos diplomatas brasileiros com seu programa de combate ao terrorismo. Para contornar esse desinteresse oficial, a embaixada norte-americana no Brasil começou a investir na tentativa de criar um grupo de experts locais, simpáticos aos seus interesses e dispostos a aprender seus métodos, “sem parecer peões” num jogo, segundo constava em um telegrama do embaixador Clifford Sobel.

Naquele ano, então, Sergio Moro foi convidado a participar de um encontro financiado pelo Departamento de Estado dos EUA (órgão de relações exteriores daquele país). O convite foi aceito e o então juiz fez contato com diversos representantes do FBI, do Departament of Justice (DOJ) e do próprio Departamento de Estado dos EUA (equivalente ao Itamaraty). Na sequência, os Estados Unidos ainda criaram um posto de “conselheiro jurídico” na embaixada brasileira, que ficou a cargo de Karine Moreno-Taxman, especialista em combate à lavagem de dinheiro e ao terrorismo.

“Por meio do ‘projeto Pontes’, os EUA garantiram a disseminação de seus métodos, que consistem na criação de grupos de trabalho anticorrupção, aplicação de sua doutrina jurídica (principalmente o sistema de recompensa para as delações), e o compartilhamento ‘informal’ de informações sobre os processos, ou seja, fora dos canais oficiais. Qualquer semelhança com a ‘lava jato’ não é mera coincidência”, destaca o site Consultor Jurídico (Conjur), em texto publica em abril de 2021 que repercutiu a publicação do Le Monde.

A história é ainda contada e reforçada por Fernando Augusto Fernandes no livro “Geopolítica da Intervenção: A verdadeira história da Lava Jato”, obra na qual o jurista brasileira recorda revelações do WikiLeaks, com um telegrama no qual a embaixada norte-americana destacava a presença de inúmeros juízes brasileiros em encontros de doutrinação e a boa recepção desses magistrados às ideias dos norte-americanos. “A aceitação é excepcional. Os juízes brasileiros e autoridades se manifestam contra o governo brasileiro e iniciaremos agora a fase prática, com forças-tarefas em Curitiba, Brasília e São Paulo”, destaca esse telegrama.

Segundo Fernandes, “a historia fantasiosa da Lava Jato”, contada em filmes como “Polícia Federal: A lei é para todos” e na série “O Mecanismo”, é simplesmente uma mentira.

“O fato é o seguinte: a Lava Jato não se inicia no posto de gasolina. A fraude é profunda. Na verdade, o Sergio Moro recebe, anos antes, um ofício da Polícia Federal com a interceptação telefônica de um advogado com o deputado Janene. Essa interceptação não tinha sido feito na Vara do Moro, então vem de outro lugar. Mas não há uma autorização do outro juiz para ‘emprestar’ essa prova pro Sergio Moro. A PF que pega essa prova e leva pro Moro, sem distribuição nenhuma. Ou seja, a PF escolhe o Sergio Moro para iniciar essa investigação e ele fica com essa investigação por anos, deferindo inúmeras interceptações, quebra de sigilo, e sem dar vista ao Ministério Público, ele conduz a investigação. E ele faz isso até chegar o momento em que ele batesse em alguém da Petrobras”, relata o autor em entrevista à TV Fórum.
“Ele [Moro] vai se mantendo no caso até ele esbarrar onde ele quer chegar e aí ele dispara a operação paralelamente, pra pegar o Paulo Roberto Costa. Ou seja, a investigação não se inicia no posto de gasolina. Se inicia com ele mesmo conduzindo uma investigação onde ele sabia onde queria chegar”, relata ainda o jurista.

Escândalo das CC-5 (CASO BANESTADO)

Na segunda metade da década de 1990, o Brasil conheceu o maior escândalo financeiro até então registrado no país. Com a quebra do sigilo e o envio, pelo Banco Central em maio de 1999 – atendendo pedido do procurador da República Celso Antônio Três -, de uma lista completa das remessas realizadas por meio das CC5 (Carta Circular nº5 do Banco Central) no período de 1992 a 31 de dezembro de 1998, verificou-se que as transações somavam U$ 111,4 bilhões – valor posteriormente corrigido pelo próprio BC para U$ 124,134 bilhões. A lista trazia o nome dos responsáveis pelas operações, entre esses, doleiros, políticos, personalidades midiáticas e empresários de peso do cenário nacional. 

Conforme explica José Maschio, jornalista que cobriu o caso para a Folha de São Paulo à época, as contas CC5 foram criadas em 1965 pela ditadura militar, possibilitando o envio de remessas em 1979 após regulamentação de decreto presidencial do governo Figueiredo. Em 1996, uma carta circular do BC – ato administrativo do então diretor internacional do BC, Gustavo Franco -, liberou seu uso a todos, permitindo também que cinco bancos recebessem depósitos acima de U$10 mil e enviassem ao exterior: Banco do Brasil, Banco do Estado de Minas Gerais (Bemge), Banco do Estado do Paraná (Banestado), liquidado em 2000, Banco Araucária, liquidado em 2001, e Banco Real. Ainda segundo Maschio: 

“Mais grave, o Banco Central autorizou a bancos em região de fronteira, especialmente em Foz do Iguaçu, a utilizar indiscriminadamente as contas CC5. Criadas para envio de lucros das multinacionais no país e de não residentes (brasileiros com residência no exterior) as CC5, na prática, se tornaram autênticos paraísos fiscais dentro das instituições financeiras no país”. Continua o jornalista, “No início do século XXI, as ações articuladas do MPF, Justiça Federal e a classe política provocaram a criação da força-tarefa do Banestado (do MPF), na criação da CPI do Banestado (Congresso Nacional) e na criação da Vara Federal dos Crimes de Colarinho Branco (a 13º Vara Federal de Curitiba). O objetivo público: combater a lavagem de dinheiro. O objetivo privado:  conter e controlar os desdobramentos do escândalo para preservar a elite financeira e empresarial”.

Maschio ainda chama a atenção para essa imprecisão no nome de batismo “força-tarefa BANESTADO, CPI do BANESTADO”. A imprecisão reside no fato de que outros bancos brasileiros participaram das remessas CC5, lembrando que o Banestado foi privatizado no ano 2000 pelo então governo de Jaime Lerner, o que contribuiu para que o foco das investigações se limitasse ao funesto Banco do Estado do Paraná. 

Outra experiência aproveitada pela Lava Jato com o caso das remessas das contas CC5 foi a cooperação internacional. As investigações da força-tarefa e da CPI foram direcionadas para a quebra de sigilo da agência do Banestado localizada em Nova Iorque – EUA. A colaboração entre delegados da PF, procuradores do MPF e membros da CPI com agentes do governo estadunidense tornou-se um marco para os agentes brasileiros, o que certamente estreitou relações entre os órgãos persecutórios de ambos os países – influência que não é novidade em termos geopolíticos.  

O caso das CC5 ficou marcado na história como o primeiro encontro de vários personagens centrais da operação Lava Jato, entre eles: Sergio Moro (juiz), Erika Marena e Marcio Anselmo (delegados PF); Deltan Dallagnol, Januário Paludo, Carlos Fernando dos Santos Lima e Vladimir Aras (procuradores) – ; Antônio Figueiredo Bastos (Advogado); Alberto Youssef e Dario Messer (doleiros); José Janene (então deputado federal pelo PP) – documentos mostravam o ele entre doleiros, deputado e policias.

A primeira versão do relatório final da CPI mista, redigido pelo então deputado federal José Mentor (PT-SP), apontou que o esquema de evasão de divisas envolveu o valor de R$150 bilhões, e pediu o indiciamento de 91 pessoas, entre elas o ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco, o ex-prefeito de São Paulo, Celso Pitta e o dono das Casas Bahia, Samuel Klein. O relatório não foi aceito, criou-se uma segunda versão mais branda, mas por questões de prazo e embate político, acabou sendo enterrada sem votação em fevereiro de 2005.       

“O escândalo das remessas CC5 mostrou como os donos do poder agem em conjunto contra os interesses nacionais. E mais: acabou por ser laboratório da Lava Jato, braço do MPF e do Judiciário no golpe que impediu Dilma em 2016. Um golpe articulado entre interesses de uma elite nacional e dos Estados Unidos, em que a soberania nacional foi minada”.

José Maschio, jornalista.
O doleiro Alberto Youssef . Crédito: Valter Campanato/Agência Brasil

Primeira Delação de Alberto Youssef

Ao lado de Sergio Moro, Alberto Youssef forma o grande elo que liga o Escândalo das Remessas CC5 à operação Lava Jato.  Nascido em 06 de outubro de 1967 em Londrina-PR, é filho de um imigrante Libanês e de uma brasileira. Conta a história que quando pequeno, vendia salgados nas ruas de Londrina. Adolescente, atuou com a irmã no contrabando de bebidas e outros produtos do Paraguai para o Brasil. Suas primeiras prisões são dessa época, quando foi detido cinco vezes com os produtos adquiridos no país vizinho. 

Na década de 1990, passou do contrabando à lavagem de dinheiro. Como nos conta matéria veiculada no Fantástico na época do Escândalo das CC-5, Youssef teve uma casa de câmbio em Londrina, a Youssef Câmbio & Turismo LTDA, além de uma empresa em paraíso fiscal. 

Em 1998, segundo prestações de contas entregues à Justiça Eleitoral do Paraná naquele ano, Alberto Youssef foi um dos financiadores da campanha de Álvaro Dias, então filiado ao PSDB. A informação foi publicada pela Folha de São Paulo em dezembro de 2021 e conta que duas empresas de Youssef “pagaram R$ 21 mil (o equivalente a R$ 88 mil em valores atualizados)”. Ainda segundo a matéria, “as doações se referem a horas de voo em jatinhos que Youssef cedeu ao então candidato”. Exercendo atualmente o cargo de senador pelo Paraná, vale lembrar que Álvaro Dias preside no mesmo estado o partido Podemos, primeira sigla a filiar Sergio Moro e que atualmente tem Deltan Dallagnol como um de seus quadros políticos para concorrer às eleições de 2022.       

Antes do caso das CC-5, Youssef esteve envolvido em outros casos de corrupção no interior do Paraná, conforme aponta matéria sobre a história do doleiro publicada pelo site InfoMoney:  

“Youssef foi preso em 2000 e em 2001 em um suposto esquema de corrupção em Londrina, disse Esteves, que coordenou o caso contra ele. Ele foi acusado de subornar funcionários de bancos para receber cheques municipais, inclusive sem assinatura. “Naquela época ele era muito arrogante”, disse Esteves. “Ele dizia, desdenhando, que nunca ficaria na prisão”. Youssef estava certo. Ele nunca foi levado a julgamento e, no total, passou cerca de 25 dias na cadeia. Mais ou menos na mesma época, Youssef foi pego em um escândalo de desvio de fundos em Maringá, cidade não muito longe de Londrina. Depois, foi indiciado por formação de quadrilha. Ele acabou fechando um acordo com os promotores, que concordaram em retirar as acusações se ele entregasse os nomes dos funcionários públicos envolvidos”.

O primeiro acordo de delação premiada de Youssef aconteceu no âmbito do caso das CC-5 e foi homologado por Sergio Moro, sendo considerada a primeira delação premiada do Brasil. O documento forneceu informações fundamentais para a Operação Farol da Colina, que prendeu mais de 60 doleiros em sete estados brasileiros, grande parte deles seus concorrentes. 

Conforme a já citada matéria do InfoMoney, “Youssef fechou um acordo de delação premiada também neste caso, concordando em testemunhar contra doleiros rivais, disse Luiz Fernando Delazari, secretário estadual de Segurança do Paraná na época. Alguns dos maiores rivais de Youssef foram presos, permitindo que ele voltasse “mais forte do que nunca”, disse Delazari”.

Como se extrai de matéria de 2019 do jornalista Vasconcelo Quadros para a Agência Pública, “Dois anos depois de ter recebido os prêmios da delação, Youssef estava de volta ao crime, dessa vez num esquema bem mais arrojado, lavando dinheiro para o ex-deputado José Janene, o então líder do PP, falecido em 2010. Foi Janene quem indicou o ex-diretor de abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa, o delator que fez ruir todo o esquema de corrupção na estatal”.

Crédito: Tânia Rêgo/Agência Brasil

farol da colina

Fruto do desdobramento do Escândalo das Remessas CC5, a operação Farol da Colina (08/2004) foi assim batizada por se tratar da tradução do nome da empresa objeto da investigação, a Beacon Hill Service Corporation, que funcionava em Nova York e, segundo matéria do Estadão à época, funcionava como uma “cooperativa de doleiros”, movimentando mais de U$20 bilhões entre 1997 e 2002. Conforme explicação dada pelo delegado do caso, Wagner Castilho:

“A empresa funcionava com movimentação, em sua maioria, de doleiros brasileiros. Nos Estados Unidos é permitido possuir um titular e subtitulares de contas correntes e doleiros atuavam na BHSC para depositar os recursos dentro dos Estados Unidos e depois remetê-los para outras contas, sempre sem informar à Receita Federal”, explicou Castilho. Segundo ele, a PF chegou a essa empresa com a ajuda do Ministério Público dos Estados Unidos e a BHSC já foi fechada por conta de suas atividades ilegais.”

Ainda segundo a colaboração do delegado Castilho para a matéria do Estadão, “‘O alvo mais importante era o Toninho da Barcelona, que foi preso sem resistência’”, disse o delegado, referindo-se ao doleiro Antônio Oliveira da Claramunt”. As informações que levaram a Toninho da Barcelona, e que também colaboraram para a prisão de mais de 60 doleiros na operação Farol da Colina, foram fruto da primeira delação premiada de Alberto Youssef, homologada em 2003 por Sergio Moro, segundo conta o jornalista Vasconcelo Quadros em publicação para a Agência Públlica em 2019:    

“Em 2003, ao fechar o primeiro contrato de delação homologado por Moro, aconselhado por Basto, o doleiro prometeu contar tudo o que sabia para que os investigadores chegassem a integrantes da cúpula da quadrilha, além de ressarcir os cofres públicos e não mais voltar a delinquir. Em contrapartida, forneceu informações que levaram a um dos doleiros mais fortes daquele período, Antônio de Oliveira Claramunt, o Toninho da Barcelona, que tinha na sua carteira de clientes inclusive policiais federais”.

Para o então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, a operação Farol da Colina foi a maior operação de combate à lavagem de dinheiro realizada no país, totalizando 103 mandados de prisão – 63 deles contra doleiros, 147 mandados de busca e apreensão em sete estados do país.

Projeto Pontes – CABLEGATE

O trecho abaixo compõe uma parte do resumo de um telegrama diplomático enviado pela Embaixada dos Estados Unidos em Brasília que começou a rodar por alguns poucos sites independentes brasileiros em 2016. Neste ano, o país vivenciava o clímax do golpe contra Dilma Rousseff, drama influenciado pela novela Lava Jato, que era transmitida pelo Jornal Nacional da Globo e gerava mais audiência que o futebol. 

“1.  (SBU) Resumo: Uma conferência regional financiada por S/CT (Office of the Coordinator for Counterterrorism (S/CT) – nota para entendimento)  intitulada “Crimes Financeiros Ilícitos” realizada no Rio de Janeiro, nos dia 4-9/10/2009, reuniu com sucesso representantes da comunidade jurídica e das polícias federal e estaduais do Brasil e países de toda a América Latina. A conferência durou uma semana e foi elogiada pelos participantes, em avaliações por escrito; muitos participantes pediam mais treinamento, incluindo treinamento específico para combater o terrorismo. (…) Treinamentos futuros devem ser construídos em áreas específicas, como forças tarefas para finanças ilícitas, que pode vir a comprovar-se como o melhor meio para combater o terrorismo no Brasil. “PROJETO PONTES”: CONSTRUIR PONTES ATÉ A POLÍCIA BRASILEIRA”

1.  (SBU) Resumo: Uma conferência regional financiada por S/CT (Office of the Coordinator for Counterterrorism (S/CT) – nota para entendimento)  intitulada “Crimes Financeiros Ilícitos” realizada no Rio de Janeiro, nos dia 4-9/10/2009, reuniu com sucesso representantes da comunidade jurídica e das polícias federal e estaduais do Brasil e países de toda a América Latina. A conferência durou uma semana e foi elogiada pelos participantes, em avaliações por escrito; muitos participantes pediam mais treinamento, incluindo treinamento específico para combater o terrorismo. (…) Treinamentos futuros devem ser construídos em áreas específicas, como forças tarefas para finanças ilícitas, que pode vir a comprovar-se como o melhor meio para combater o terrorismo no Brasil.

Trecho do telegrama diplomático enviado pela Embaixada dos Estados Unidos em Brasília, publicado pelo Wikileaks

Nunca divulgado ou mesmo citado pela grande mídia nacional, o telegrama data de 2009 e está entre os 250 mil documentos vazados entre 2003 e 2010 pelo “Cablegate”, um dos vazamentos mais famoso do Wikileaks, de Julian Assange. O documento pode ser acessado na PlusD, Biblioteca de Documentos Diplomáticos dos EUA – tradução para Public Library of US Diplomacy -, projeto lançado pelo Wikileaks em parceria com dezoito veículos internacionais.   

Há apenas dois nomes de autoridades brasileiras citadas no telegrama: Gilson Dipp e Sergio Moro, que participaram como palestrantes do evento – que segundo o conteúdo do telegrama, contou também com  “Juízes e Procuradores Federais de cada um dos 26 estados do Brasil e um do Distrito Federal participaram, e mais de 50 agentes de polícia federal (vindos de diferentes regiões do Brasil). Foi solicitada participação em nível de estado, e 30 procuradores, juízes e policiais estaduais também participaram”. 

Gilson Dipp é um advogado nascido em Passo Fundo-RS, com passagem pelo TRF-4 – onde foi presidente -, ministro do Superior Tribunal de Justiça, corregedor do Conselho Nacional de Justiça e ministro substituto do Tribunal Superior Eleitoral. Dipp foi um dos principais idealizadores da especialização de varas federais no processamento e julgamento de crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e de lavagem de dinheiro, o que aconteceu em 2002 – vale conferir a entrevista oferecida por Dipp depois das publicações da Vaza Jato .

Nesse movimento de especialização comandado por Dipp, a 2ª Vara Criminal Federal  que funcionava em Curitiba-PR foi uma das escolhidas, tendo como juiz titular Sergio Moro. Tanto Moro como a 2ª Vara ficaram conhecidos pelo trabalho no Escândalo das CC5, caso pioneiro na homologação da delação premiada e na colaboração entre autoridades brasileiras e estadunidenses no combate à lavagem de dinheiro. 

Porém, o telegrama vazado pela Wikileaks traz informações que oferecem pistas sobre a influência dos Estados Unidos na criação da metodologia e funcionamento do que viria a ser a operação Lava Jato, conforme pode-se conferir no trecho abaixo:

“TREINAMENTO FUTURO: FORÇA-TAREFA CONTRA FINANÇA ILÍCITA

9. (U) A conferência demonstrou claramente que o setor Judiciário do Brasil está muito interessado em se engajar mais proativamente na luta contra o terrorismo, mas carece de ferramentas e treinamento para engajar-se com eficácia. Atualmente, a abordagem mais efetiva para encarcerarem suspeito de terrorismo, é acusar o suspeito pela prática de algum outro crime que lhe será atribuído, como tráfico de drogas ou lavagem de dinheiro.Na verdade, muitos dos participantes brasileiros da conferência só operam no Brasil, exclusivamente, na vara federal especializada em crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (SFN) e de lavagem de dinheiro criada em 1998, em conjunção com uma lei sobre lavagem de dinheiro. Procuradores e investigadores especializados levam seus casos de lavagem de dinheiro àquelas varas, que têm sido mais efetivas que muitas e têm enfrentado alguns dos casos mais significativos envolvendo corrupção e indivíduos de alto nível.

10. (U) Consequentemente, há necessidade continuada de assegurar treinamento a juízes federais e estaduais no Brasil, e autoridades policiais para enfrentar o financiamento ilícito de conduta criminosa. Há um nexo entre fluxos de dinheiro ilícito e financiamento de terrorismo, e as cortes especializadas em lavagem de dinheiro provaram ser método efetivo para processar criminosos. Idealmente, o treinamento deve ser de longo prazo e coincidir com a formação de forças-tarefa de treinamento. Dois grandes centros urbanos com suporte judicial comprovado para casos de financiamento ilícito, especialmente São Paulo, Campo Grande ou Curitiba, devem ser selecionados como locação para esse tipo de treinamento”.

Peça fundamental para entender o quebra-cabeça da relação entre governo dos EUA e a Lava Jato foi oferecida por uma matéria publicada em 2021 pelo jornal francês Le Monde, assinada pelos jornalistas Gaspard Estrada e Nicolas Bourcier – tradução disponível no site do PT. Como definem na publicação, “meses de investigação, entrevistas e pesquisas foram necessários para que o Le Monde desenhasse o outro lado dessa cena. Se algumas áreas permanecem nas sombras, alguns episódios de Lava Jato evidenciam cumplicidades vergonhosas. Outros, ao contrário, revelam como certos juízes e investigadores têm por vezes aproveitado a sua independência – muito real – a serviço de um projeto político, embarcando numa corrida louca, estabelecendo os motivos, os meios e os desmentindos”. 

A matéria do Le Monde informa o contexto para entender o telegrama da Embaixada dos Estados Unidos vazado pelo Wikileaks, explicando o papel de Karine Moreno-Taxman, procuradora especializada na luta contra a lavagem de dinheiro e o terrorismo:

“Desde 2008, esta especialista desenvolve um programa denominado “Projeto Pontes” que, a fim de apoiar as necessidades das autoridades judiciárias brasileiras, organiza cursos de formação que lhes permitem se apropriar dos métodos de trabalho americanos (grupos de trabalho anticorrupção), a sua doutrina jurídica (as delações premiadas, em particular), bem como a sua vontade de partilhar informação de forma ‘informal’, isto é, fora dos tratados bilaterais de cooperação judiciária.

A embaixada passa então a aumentar o número de seminários e reuniões com juízes, promotores e altos funcionários especializados, com foco nos aspectos operacionais da luta contra a corrupção. Sergio Moro participa como palestrante. No espaço de dois anos, o trabalho de Karine Moreno-Taxman dá frutos: a embaixada constitui uma rede de magistrados e advogados convencidos da relevância do uso das técnicas americanas.”

Em um desses seminários promovidos com juízes, promotores e servidores públicos brasileiros, segundo a matéria do Le Monde, Karine Moreno-Taxman enfatiza um ponto que, futuramente, será solar para as pretensões da força-tarefa Lava Jato:  

“‘Em um caso de corrupção’ – ela diz – ‘você tem que correr atrás do ‘rei’ de uma maneira sistemática e constante para derrubá-lo’. E é mais explícita: ‘Para que o Judiciário possa condenar alguém por corrupção, é necessário que o povo odeie essa pessoa’. Finalmente: ‘A empresa deve sentir que realmente abusou de sua posição e exigir sua condenação’. Mais uma vez aplausos do público”.   

Roberto Jefferson, fala à imprensa após reunião com o ex-presidente Michel Temer, no Palácio do Planalto Crédito: Valter Campanato/Agência Brasil

Mensalão

O Mensalão sem dúvida alguma foi uma das principais bases jurídicas, políticas e midiáticas daquilo que veio a ser os moldes da Lava Jato como conhecemos. Desde a CPI do Mensalão ao julgamento da Ação Penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal, tratou-se do marco para a ideia de um judiciário como órgão de política segurança pública e de combate à corrupção, afastando-o de sua função original de resolução de conflitos e como poder responsável pela garantia da aplicação da Constituição e das leis.

O marco inicial do escândalo se deu quando em maio de 2005 o então deputado federal Roberto Jefferson (PTB-RJ) afirmou que o Ministro da Casa Civil José Dirceu, o tesoureiro do Partido dos Trabalhadores Delúbio Soares, e o publicitário Marcos Valério organizavam um sofisticado esquema de compra de apoio político do Congresso. Para tanto, os parlamentares que garantiam a adesão à base do governo petista recebiam uma quantia em dinheiro regularmente. Daí o porquê do nome “mensalão”: alusão à espécie de mesada que os beneficiários recebiam para votar projetos conforme eram direcionados. 

As investigações que culminaram no Mensalão começaram durante a Comissão Parlamentar de Inquérito dos Correios (CPI dos Correios) ainda em 2005. Os congressistas apuravam irregularidades em grandes licitações dos Correios quando então vazou um vídeo de Maurício Marinho, diretor da estatal à época, negociando valores para beneficiar empresários. Marinho foi indicado por Roberto Jefferson ao cargo que tinha, o que levou os holofotes ao deputado e presidente do PTB, sendo indicado como o responsável pelo escândalo. Acuado, Jefferson resolveu abrir a boca e ativou a sua metralhadora retórica contra os caciques do governo petista. 

A grande mídia ficou em polvorosa com toda a repercussão do caso, sendo ostensiva a cobertura de todos os eventos e procedimentos abertos para a apuração das acusações. A título de exemplo, O Globo chegou a montar uma força-tarefa de jornalistas para preparar diversos conteúdos sobre aquilo que à época era dito como o “maior escândalo de corrupção”. Conforme informações obtidas no site do jornal: 

“Os repórteres acompanharam os trabalhos das duas CPIs instauradas no Congresso – a dos Correios e a do Mensalão –, os depoimentos no Conselho de Ética na Câmara, os discursos dos deputados no plenário. Diariamente, surgiam novas e importantes informações que precisavam ser apuradas e confirmadas antes de irem ao ar. Os personagens envolvidos foram entrevistados, entre a oposição e mesmo o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A Globo também acompanhou de perto o julgamento do mensalão no Supremo Tribunal Federal. Com uma cobertura diária e matérias especiais nos telejornais de rede, os repórteres destacaram os principais momentos do julgamento, os debates entre acusação e defesa e as decisões dos ministros do STF”.

As acusações de Roberto Jefferson fomentaram que o objeto da CPI dos Correios fosse estendido para focar o Mensalão, com o intuito de investigar responsáveis e como se realizavam os pagamentos de propinas. O robusto relatório entendeu que diversos parlamentares e políticos ligados à base governista petista eram responsáveis direta e indiretamente pela distribuição de propinas mensais de até R$30.000,00 (trinta mil reais) para que não houvesse obstaculização dos projetos de interesse ao Poder Executivo. Como apurou o site de assuntos jurídicos Migalhas

“O relatório final da CPI Mista dos Correios, elaborado pelo deputado Osmar Serraglio, foi aprovado na última quarta-feira (5) por 17 votos a 4, depois de muita discussão e sob reclamações de parlamentares petistas, que pretendiam modificar trechos de que discordavam, entre os quais, a conceituação do “mensalão”. Foram apresentados 37 votos em separado, entre os quais um do PT, que substituiria todo o relatório. Aprovado o texto de Serraglio, no entanto, numa reunião que durou apenas 20 minutos, todos os votos em separado foram considerados prejudicados”.

Dentre as pessoas indicadas como participantes do esquema estavam José Genuíno, presidente do PT à época, José Dirceu, Antônio Palocci (Ministro da Saúde) e João Paulo Cunha (Presidente da Câmara dos Deputados). Apesar do estardalhaço causado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não foi responsabilizado pelo Congresso. Roberto Jefferson em momento algum o apontou como pertencente ao Mensalão, muito menos indicou que Lula tivesse algum tipo de conhecimento sobre as negociatas que ocorriam para a compra de políticos. 

Marcos Valério foi acusado de comandar toda a estrutura de distribuição de valores que alimentavam a dinâmica do Congresso por diversos governos. Entre 1997 e 2005 estima-se que o publicitário movimentou um valor de 2 bilhões de reais intermediando a compra de parlamentares, o chamado “valerioduto”.

As conclusões da CPI deram origem a um processo criminal no Supremo Tribunal Federal para apurar as responsabilidades dos envolvidos. A Ação Penal 470 atraiu todas as atenções para a Corte Constitucional brasileira: foi a primeira vez que um julgamento dessa magnitude foi inteiramente transmitido ao vivo pela TV Justiça, o que propiciou maior publicização das discussões ocorridas no processamento do feito.

Joaquim Barbosa foi sorteado o relator do processo criminal. 

SNOWDEN E A ESPIONAGEM DOS EUA

Em junho de 2013, uma série de matérias publicadas pelo jornal inglês The Guardian, que compartilhou o furo jornalístico com o jornal estadunidense The Washington Post, estremeceu o mundo. As publicações tinham como base os documentos e informações vazadas por Edward Snowden, ex-contratado da NSA, a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos, revelando ao mundo a dimensão e os métodos utilizados pelo governo estadunidense para a vigilância global, em nível doméstico e internacional – além da espionagem diplomática e de empresas estrangeiras do setor energético. 

Assinadas pelo jornalistas Glenn Greenwald e Laura Poitras , que contaram com a colaboração determinante de Snowden, as reportagens explicaram em detalhes como alguns dos sistemas mais avançados de captura de informações e metadados das comunicações digitais e telefônicas de cidadãos de todo o mundo. O vazamento provocou imenso desconforto entre o governo e a população nos Estados Unidos, assim como protestos de governantes de outros países que tiveram telefones e e-mails interceptados pela NSA. 

Especificamente no caso do Brasil, além da coleta massiva de informações e metadados, a espionagem tinha como objeto específico a Petrobras, o Ministério de Minas e Energia e a própria presidenta do Barsil à época, Dilma Rousseff, incluindo também seus assessores mais próximos. Na época dos fatos, Glenn Greenwald contribuiu com matérias no jornal O Globo – publicação que lhe rendeu o título de ser o primeiro estrangeiro a conquistar o Prêmio Esso de Jornalismo -, e participou de matéria veiculada no Fantástico, programa transmitido pela Rede Globo de Televisão aos domingos.   

No livro “Sem lugar para se esconder – Edward Snowden, a NSA e a espionagem do governo americano”, publicado em 2014, Glenn Greenwald detalha o método utilizado pelo governo dos EUA, em parceria com o Canadá, da espionagem direcionada ao governo barsileiro e a sua estatal mais valiosa, a Petrobras: 

“(…) contrariando repetidas alegações do presidente Obama e da NSA, já está claro que um número substancial das atividades da agência nada tem a ver com esforços para combater o terrorismo ou mesmo com a segurança nacional. Boa parte do acervo de Snowden revelou o que só pode ser qualificado de espionagem econômica: escuta e interceptação de e-mails da gigante de petróleo Petrobras, de conferências econômicas na América Latina, de empresas da Venezuela e do México, e uma vigilância conduzida por aliados da NSA (entre os quais Canadá, Noruega e Suécia) sobre o Ministério das Minas e Energia do Brasil e empresas do setor de energia em vários outros países.”       

A espionagem conduzida pela NSA ao Brasil não estava restrita ao setor energético. O telefone e o e-mail pessoais da então presidente do Brasil, Dilma Rousseff, também eram foco da coleta de informações, assim como os de seus assessores mais próximos. O episódio foi alvo de protesto durante discurso de abertura da 68ª Assembleia-Geral das Nações Unidas, ocorrido no dia 24 de setembro de 2013 em Nova York, quando Dilma denunciou a violação da soberania nacional, dos direitos humanos universais e do direito internacional por parte do governo dos Estados Unidos. 

Ocorrido em 2013, a vigilância e a espionagem denunciadas por Snowden não podem ser assimiladas isoladamente, ao menos no que importa a nós, brasileiros. Somados ao vazamento do Cablegate, do Wikileaks, que trouxe ao conhecimento público do Projeto Pontes, conduzido no Brasil pela Embaixada dos Estados Unidos e a influência construída entre juízes, promotores e agentes públicos, é evidente a interferência de interesses estadunidenses na política e economia brasileira. Em outra passagem de seu livro, Greenwald nos oferece seu entendimento: 

“Pode-se especular sobre o motivo que levou líderes políticos do Brasil e do México a serem alvos da NSA. Ambos os países são ricos em recursos petrolíferos e têm uma presença forte e influente em suas regiões. Além disso, embora estejam longe de ser adversários, também não são os aliados mais próximos e confiáveis dos Estados Unidos. De fato, um documento de planejamento da NSA – intitulado “Identificação de desafios: Tendências geopolíticas para 2014-2019” – lista os dois países do subtítulo “Amigos, inimigos ou problemas?”. Na mesma lista estão Arábia Saudita, Egito, Iêmen, índia, Irã, Somália, Sudão e Turquia.”

O trecho aponta a perspectiva de entender as tendência geopolíticas entre 2014 e 2019, justamente o espaço temporal em que a operação Lava Jato teve atuação determinante nos caminhos políticos e econômicos do Brasil. Em 2019, Glenn Greenwald protagonizaria a publicação de outro vazamento, a Vaza Jato, como ficou conhecida a série de publicações feitas pelo site The Intercept Brasil que colocariam em xeque a inabalável credibilidade da força-tarefa Lava Jato, da relação entre o juiz Sergio Moro, procuradores federais e a grande imprensa brasileira, que tiveram destacado protagonismo no golpe contra Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro. 

Dilma Rousseff, faz sua defesa durante sessão de julgamento do impeachment no Senado Crédito: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Jornadas de 2013 e FCPA

Em junho de 2013, o Brasil testemunhou o que foi considerado uma das maiores manifestações após a redemocratização do país. Conhecida como as “Jornadas de Junho”, as manifestações começaram pautadas pelo protesto contra os valores cobrados nas passagens do transporte público nas capitais, sobretudo na cidade de São Paulo, que no dia 02 de junho de 2013, passou a operar com aumento de 20 centavos – de R$3,00 para R$3,20.

Os protestos se iniciaram em São Paulo já no dia 03 de junho, mas de maneira tímida. No mesmo dia, foi registrado também protesto na cidade do Rio de Janeiro. Porém, nas redes sociais a causa ganhou adesão e dimensão nacional, projetando o nome do Movimento Passe Livre. Durante os primeiros dias, as manifestações foram reprimidas com violência pela polícia militar, cenas essas transmitidas no noticiário nacional, que nos primeiros dias, adotou a postura de culpabilizar os manifestantes pelas cenas de confronto e depredação.

A violência acabou instigando ainda mais as manifestações, que adotaram a lógica do “amanhã vai ser maior”. Com o passar dos dias, passaram a ter uma pauta difusa e apartidária, o que contribui para que a imprensa, de maneira geral, passasse a apoiar as manifestações, transmitindo-as ao vivo. Durante as duas semanas seguintes o Brasil foi palco de uma série de protestos, que atingiram seu ápice no dia 20 de junho, quando cerca de 1,5 milhão de pessoas foram às ruas em mais de 130 cidades do Brasil. 

Com grande adesão da classe média, a insatisfação no ápice das manifestações passou a ter como alvo a classe política, vide a ocupação da Câmara Municipal do Rio de Janeiro e a cobertura do Congresso Nacional. A metamorfose das manifestações, que de protestos contra o aumento das passagens do transporte público transformou-se em insatisfação política, trouxe o desgaste, sobretudo, para o governo de Dilma Rousseff. 

Dentre as pautas que ganharam atenção especial estavam a insatisfação com os serviços públicos (saúde, transporte, educação), a realização da Copa do Mundo e a consequente construção onerosa de novos estádios no “padrão FIFA”, além de muitas outras ligadas à cidadania e ao combate à corrupção. Dentre todas, uma específica impactaria de maneira decisiva na futura  força-tarefa Lava Jato: a PEC 37 (Projeto de Emenda à Constituição nº37/2011).          

Proposta em 2011 pelo deputado Lourival Mendes, delegado de polícia eleito pelo então Partido Trabalhista do Brasil (PTdo B) – hoje, Avante -, a PEC 37 restringia o poder do Ministério Público, passando o processo de investigação a ser prerrogativa das polícias federal e civil, salvo casos envolvendo agentes públicos e organizações criminosas, inquéritos de civis conduzidos pelo MP com desdobramentos criminais e com atribuição investigatória constitucionais, as CPI’s – estas exceções conforme alteração promovida no texto pelo relator.

A batalha simbólica pelo poder da investigação entre MP e as polícias foi decidida pelas manifestações e pela mídia, já que a votação estava programada para aquele mês de junho de 2013, contando com grandes chances de aprovação. As inesperadas manifestações iniciadas naquele mês viraram o jogo, e o apelido dado pelo próprio MP à PEC foi decisivo: “PEC da Impunidade”. A imprensa apoiou a causa em favor dos procuradores, veiculando a reivindicação do Ministério Público, destacando os cartazes contra a PEC 37 em suas transmissões. A confluência desses fatores trouxe um resultado acachapante contra a PEC: 430 votos contra, 9 favoráveis e 2 abstenções. 

Para dar uma resposta aos protestos no sentido da cidadania, a presidenta Dilma convocou, no dia 24 de junho de 2013 no Palácio do Planalto, 27 governadores e 26 prefeitos para propor a adoção de 5 pactos nacionais por responsabilidade fiscal, reforma política, saúde, transporte público e educação – no caso da educação, a proposta era usar 100% dos royalties da exploração do  petróleo para a educação. 

Ainda no intento de responder aos anseios das ruas, Dilma sancionou em 2013 duas leis determinantes para a existência da Lava Jato: a 12.846/13 (Lei Anticorrupção) e 12.850/13 (Delação Premiada). Em texto publicado para repercutir matéria publicada pelo francês Le Monde, Larissa Ramina, professora de Direito Internacional da Universidade Federal do Paraná, explicou a implicação das duas leis na metodologia utilizada pela força-tarefa de Curitiba: 

“A primeira foi a Lei 12.846/13, a Lei Anticorrupção, que regulamentou a responsabilidade civil e administrativa das pessoas jurídicas que praticam atos contra a administração pública no Brasil e no exterior, abrangendo especialmente os atos de corrupção. Essa Lei resultou de forte pressão do Grupo de Trabalho da OCDE sobre Suborno em Transações Comerciais Internacionais, fortemente influenciado pelos EUA, pelo fato de o Brasil ter ratificado a Convenção Antissuborno da OCDE. A Lei brasileira incluiu a maioria dos mecanismos previstos na famosa Lei de Práticas de Corrupção no Exterior dos EUA, a FCPA, considerada como o maior instrumento do imperialismo econômico estadunidense, pois capaz de aplicar multas astronômicas a empresas estrangeiras a ponto de destruí-las. E foi a Lei Anticorrupção brasileira de 2013 que permitiu ao DOJ sancionar empresas brasileiras, incluindo a Petrobras e a Odebrecht, nos mesmos termos da Lei FCPA.

A segunda foi a Lei 12.850/13 (delação premiada), que definiu o crime organizado e introduziu a negociação de pena em processos criminais relacionados a organizações criminosas, bem como procedimentos de interceptação de comunicações. Essas leis passaram a ser aplicadas já a partir de 17 de março de 2014, data da criação da Operação Lava Jato pelo então PGR Rodrigo Janot, que nomeou o procurador Pedro Soares para sua liderança. Pouco tempo depois, em razão de divergências com Sérgio Moro, ele será substituído por Deltan Dallagnol, “que não só será favorável a Moro no caso, mas também se tornará o principal sustentáculo do magistrado”, conforme atesta o Le Monde. Em setembro do mesmo ano, a Casa Branca publicou a “agenda anticorrupção global”, que dispõe expressamente que “a luta contra a corrupção no exterior (por meio da FCPA) pode ser usada para fins de política externa, a fim de defender os interesses de segurança nacional”, conforme também salienta o Le Monde.”

Ramina tem como mote de seu texto a matéria estarrecedora publicada pelo jornal francês Le Monde (09/04/2021), que traça um panorama crítico sobre o papel da Lava Jato na colaboração com autoridades estadunidenses. Segue trecho revelador sobre como as duas leis sancionadas por Rousseff e explicadas por Ramina contribuíram para os desígnios políticos e econômicos da “agenda anticorrupção global” publicada em 2014 pela Casa Branca:

“Lá está escrito que a luta contra a corrupção no exterior (por meio da FCPA) pode ser usada para fins de política externa, a fim de defender os interesses de segurança nacional. Um mês depois, Leslie Caldwell, então procurador-geral adjunto do DoJ, faz um discurso na Duke University: “A luta contra a corrupção estrangeira não é um serviço que prestamos à comunidade internacional, mas sim uma ação de fiscalização necessária para proteger nossos próprios interesses de segurança nacional e a capacidade de nossas empresas americanas de competir no futuro”.   

O combate à corrupção foi justamente a força motriz da Lava Jato que municiou o processo político do golpe de 2016, que derrubou Dilma Rousseff da cadeira de presidente do Brasil e, na esteira de suas ações, colaborou decisivamente para a eleição de Jair Messias Bolsonaro em 2018 – que logo após o resultado do segundo turno, por sua vez, anunciou Sergio Moro como seu ministro da Justiça.