Em entrevista à CNN Brasil, o deputado federal Deltan Dallagnol chamou o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes de ignorante, o acusando de agir de má-fé. As agressões foram proferidas após o magistrado, em entrevista à Rádio Gaúcha, afirmar que o ex-procurador da República e o ex-juiz Sergio Moro tentaram montar “uma máquina de fazer dinheiro” com a Lava Jato, recordando a intenção de membros da força-tarefa de criar uma fundação bilionária com o dinheiro público. Ainda segundo Mendes, a operação, supostamente de combate à corrupção, seria na verdade um projeto “tipicamente político, político-partidário”.

A fundação a qual o ministro do Supremo se refere seria uma instituição gerida em parte pelo próprio Ministério Público Federal (MPF) para iniciativas, projetos e qualquer outra ideia mirabolante que tivesse como objetivo o combate à corrupção. Fruto de um acordo entre MPF e Petrobras sob a supervisão das autoridades norte-americanas, a fundação ficaria sediada em Curitiba e contaria com R$ 2,5 bilhões (metade a ser aplicado em um fundo patrimonial que distribuiria os rendimentos para projetos de combate à corrupção e promoção da cidadania), o equivalente a mais da metade do orçamento anual do MPF. O montante foi acordado pela Petrobras com os Estados Unidos, para que a petrolífera brasileira não fosse processada nos EUA.

Felizmente, o sonho nababesco de membros da Lava Jato foi interrompido pelo STF que, em decisão de Alexandre de Moraes, ressaltou que quem tem a atribuição de gerir dinheiro público é a União, e não os investigadores da Lava-Jato. “Parece ter ocorrido ilegal desvirtuamento na execução do acordo realizado entre a Petrobras e o Department of Justice”, chegou a anotar o ministro.

Muitas agressões, mas poucas explicações

Em sua resposta ao ministro do Supremo, Dallagnol foi agressivo. “Fico em dúvida se o ministro Gilmar Mendes está agindo com ignorância, por não saber o que aconteceu, por não ter se informado adequadamente – o que pode ter acontecido, porque ele tem inúmeras funções como ministro do Supremo -, ou se está agindo com má-fé, dentro de um contexto em que ele xinga a Lava Jato, busca atacar procuradores, juízes da Lava Jato e até mesmo já foi condenado judicialmente a indenizar pessoas que atuaram no combate à corrupção”, disse o ex-procurador da República. 

O deputado e apoiador de Bolsonaro também tentou explicar a ideia de destinar dinheiro da multa da Petrobras para a criação de um fundo da Lava Jato. Segundo ele, a intenção dos integrantes da força-tarefa era de que o dinheiro continuasse em território brasileiro (e, ao que tudo indica, de preferência bem próximo, ao alcance dos olhos e das mãos daqueles que diziam combater a corrupção).

O que Dallagnol jamais explicou nessa história toda, contudo, são as visitas e os nomes dos agentes do FBI que realizaram diligências ilegais no Brasil com o consentimento da Lava Jato, que não informou, como manda a lei, a visita ao Ministério da Justiça. Também não foi explicado até hoje o uso de provas ilegais obtidas no exterior para prender preventivamente réus que vieram a se tornar delatores da Lava Jato. 

O que será que Dallagnol e os agentes querem ainda esconder dessa história? 

Documentos oficiais do Itamaraty, obtidos pelo The Intercept em 2019, mostraram que os agentes da Lava Jato tentaram esconder a vinda de autoridades estrangeiras ao Brasil para a realização de diligências em Curitiba. Segundo esses documentos, o DOJ (Departamento de Justiça dos EUA) pediu vistos para pelo menos dois de seus procuradores, Derek Ettinger e Lorinda Laryea, detalhando que eles planejavam viajar a Curitiba “para reuniões com autoridades brasileiras a respeito da investigação da Petrobras” e com advogados dos delatores da Lava Jato.  

Então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo afirmou que foi surpreendido pela informação da presença americana em Curitiba. Em seguida, o ministro procurou o Itamaraty e o então procurador-geral da República Rodrigo Janot, perguntando se ele tinha ciência disso. “Ele disse que não tinha, ficou de ver do que se tratava… Ele me retornou dizendo que era uma atividade exclusivamente não funcional. Era uma situação de contatos fora de qualquer situação oficial, que tinha alguma finalidade acadêmica”, relembra. “Eu voltei a falar com a PF, a PF falou: ‘Olha, tá parecendo um pouco nebulosa essa atuação’. Nós fizemos uma interpelação para saber o que estava acontecendo, mas eu nunca tive uma resposta conclusiva sobre isso.” 

Ainda segundo o ex-ministro, “pela legislação, quem representa a autoridade brasileira para fins de cooperação internacional é o MJ [Ministério da Justiça]. E nós temos exatamente para isso um departamento, que é o DRCI”, que na época já havia alertado a PGR sobre documentos que haviam sido trazidos ilegalmente da Suíça por membros da Lava Jato.  

  LAVA JATO E O DISCURSO ANTIPOLÍTICA 

Além da história controversa sobre o destino do dinheiro da Petrobras, Dallagnol também rebateu Augusto Aras, atual Procurador-Geral da República, afirmando que a Lava Jato não fomentou o discurso antipolítica. Contudo, considerando os caminhos que a Lava Jato tomou, atropelando as instituições e a Constituição, com o apoio de seus agentes à campanha de Bolsonaro em 2018, só dá para dizer que, do início ao fim, a atuação política e parcial de membros do Judiciário influenciou, sim, no discurso antipolítica, que por sua vez alimentou o discurso antidemocrático e, como consequência, causou o ato golpista do 8 de janeiro, em Brasília (DF). 

A Lava Jato colocou a corrupção acima de qualquer outro problema social, político e econômico do país, mas não de uma forma coerente, e sim moralizadora e tendenciosa. O grande problema, no ponto de vista deles, é a esquerda brasileira. E tanto é verdade que Deltan já admitiu que, como parlamentar, vai priorizar as investigações contra o Partido dos Trabalhadores (PT), conforme matéria publicada pela Gazeta do Povo.  

Aliás, o próprio fato da Lava Jato ter virado uma espécie de “partido” político já demonstra o completo desrespeito às instituições e à democracia. Além disso, os comentários de Dallagnol e Moro nas redes sociais sobre o atentado golpista em Brasília demonstram muito bem essa tendência anti-institucional, anti-republicana.  

Na entrevista, Deltan comenta suas críticas feitas ao governo Bolsonaro, porém apesar dos riscos à própria democracia que ele mesmo comenta (14:40) que Jair Bolsonaro trazia, ele decidiu se opor à Lula, por uma questão de “risco econômico”. Ou seja, é muito mais grave, na visão do deputado, a suposta questão econômica – na qual ele não cita quais são – do que uma ameaça à democracia. 

Aprofundando um pouco mais o assunto, em um artigo da Revista Brasileira de História, os historiadores Mateus Henrique de Faria Pereira e Daniel Pinha Silva analisam a relação da Lava Jato com a negação política. Na hipótese dos autores, a narrativa utilizada por Sergio Moro frente a Lava Jato se movimentou em torno de modalidades do negacionismo, revisionismo e negação”. Os agentes da operação admitiam uma intervenção nos acontecimentos políticos na forma de movimento político “capaz de produzir um diagnóstico, uma agenda e mesmo uma “revolução” no país”, esse tipo de atuação permitiu a ascensão de Bolsonaro na política, fomentando o negacionismo e a negação da política.

Além disso, os autores chamam a atenção para a espetacularização da operação através da mídia, que deu espaço para uma percepção do público favorável ao enfrentamento dos desvios morais por parte dos políticos. Moro utilizou da emergência de uma espécie de negação específica do Brasil contemporâneo que se articula através de um discurso da transparência através das vias convencionais de mobilização.

“A negação da política, cristalizada no antipetismo e traduzida no discurso lavajatista, criou as condições para que a cruzada bolsonarista contra a democracia se movimentasse da margem ao centro, isto é, realizando a passagem do ressentimento antidemocrático inconformado com o fim da Ditadura, atuando nas fendas do regime (Cf., entre outros, Pinha, 2020 e Bauer, 2020) para sustentar e acelerar o processo de reformas do Estado, inseridas em um programa neoliberal e conservador.”

O revisionismo histórico utilizado pelos agentes da força tarefa, baseada na história da Operação Mãos Limpas na Itália, foi uma das narrativas criadas para legitimar historicamente a operação. Esse tipo de revisionismo propicia o uso do discurso atualista da transparência como arma política. 

Analisando artigos escritos por Sergio Moro entre 2004 e 2018, os historiadores compreende as ideias de transparência e ativismo que fundamentaram a ação de negação política dos agentes.

Sergio Moro dispõe as linhas mestras do discurso lavajatista, dez anos antes do início da Operação Lava Jato. Para ele, a operação italiana “constituiu uma das mais exitosas cruzadas judiciárias contra a corrupção política e administrativa” (Moro, 2004, p. 60, grifo nosso), combinando “virtuosamente” prisões, pré-julgamento como “forma de destacar a seriedade do crime”, delações premiadas/confissões e publicidade. A opinião pública pode, inclusive, “impor alguma espécie de punição a agentes públicos corruptos, condenando-os ao ostracismo” (Moro, 2004, p. 61). 

Os historiadores também analisam o discurso de Moro acerca do lugar jurídico-político da Operação. O ativismo judicial do ex-juiz “confere-se ao sistema judiciário protagonismo para conduzir as transformações estruturais implicadas no combate à corrupção, admitindo, portanto, a possibilidade de que o magistrado possa extrapolar sua missão constitucional de aplicar a lei”, ou seja, o judiciário e seus agentes tomam para si uma função moralizadora de corrigir rumos de todos os demais poderes, ultrapassando sua função de mera aplicação da lei. 

Esse ativismo estabelece uma guerra contra os políticos profissionais, reivindicando “uma autonomia para a ação discricionária do poder judiciário, que não envolva fiscalização, freio ou contrapeso por parte dos outros poderes da República – já que ele é considerado o único poder capaz de garantir a transparência sincera e verdadeira da vida pública.”. Implicando em uma condição privilegiada do poder judiciário.“ Além disso, a negação do político e da política passou entre 2014-2020, sobretudo, como vimos, pela moralização do político e da política se utilizando, em especial, da dimensão retórica da transparência atualista. Afinal, por mais que seja difícil definir a política e o político, de algumas coisas sabemos: essas instâncias não se definem e não se operam pelas dimensões da moral. Como destaca, também, Rodrigues (2021), o espaço da política e do político não é o espaço da autofiguração de modelos de conduta que querem modelar o mundo.”