Chegou ao fim na última sexta-feira (28 de outubro) o congresso “Balanço Crítico da Lava Jato”. Realizado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), foi o maior evento já concebido sobre a Operação Lava Jato, com a realização de 10 painéis de debate em dois dias e a participação de mais de 30 especialistas, reunindo alguns dos principais nomes do Direito, da Economia e do Jornalismo.

Com a missão de “passar a limpo” o maior caso de Lawfare da história nacional, o evento se estendeu, tanto na quinta como na sexta, desde a manhã até o período da noite. Ainda assim, o auditório esteve sempre cheio e, como as inscrições esgotaram rapidamente e semanas antes do congresso, também houve transmissão ao vivo.

Organizado pelo Centro de Pesquisa e Extensão em Ciências Criminais (CPECC) da USP em parceria com o Museu da Lava Jato (MLJ) e o Instituto Defesa da Classe Trabalhadora (Declatra), o “Balanço Crítico da Lava Jato” foi planejado ao longo de mais de seis meses, num esforço que contou com o apoio fundamental de Itaipu Binacional.

Para quem não conseguiu acompanhar o evento presencialmente e não assistiu a transmissão, o Museu da Lava Jato preparou um “resumão” do que foi dito em cada um dos painéis e por cada um dos participantes no segundo dia de debates. Já para conferir os detalhes e vídeos sobre o primeiro dia de evento, basta clicar AQUI.

Abaixo, segue também a programação completa dos dois dias do congresso, que já entrou para a história e recebeu pedidos e sugestões para que volte a ser realizado no próximo ano.

PAINEL 1: Lava Jato e as repercussões na soberania energética brasileira, no setor de petróleo e gás e na construção pesada

Juliane Furno

Socióloga e economista, Juliane Furno recordou em sua exposição como o tema da corrupção é bastante mobilizado pelas elites brasileiras de forma muito funcional, sendo lançado como instrumento de disputa política quando governos de centro-esquerda e de perspectiva nacionalista ascendem ao poder. Além disso, ela também ressaltou como a indústria de petróleo e gás costuma aparecer com protagonismo nesses momentos, como aconteceu com Getúlio Vargas (que nacionalizou a Petrobras e depois se suicidou para evitar um golpe de Estado), João Goulart (que nacionalizou as refinarias antes do Golpe de 1964) e nos governos Lula e Dilma (que retomaram o papel mais estatal da Petrobras, utilizando a empresa como uma espécie de motor para o desenvolvimento econômico e social do Brasil). Nesse sentido, então, inevitável reconhecer (e criticar) os prejuízos econômicos deixados pelo suposto combate à corrupção e o método lavajatista de fazê-lo: “Não se trata da defesa abstrata das empresas brasileiras. A defesa aqui é da autonomia das decisões políticas, sobretudo de política econômica. O que a Lava Jato faz é criminalizar a política, as grandes empresas, criar a noção de que mais corrupção está ligado a mais Estado. Empresas brasileiras estavam crescendo, ganhando licitações até nos Estados Unidos. A política de conteúdo local, a retomada de bancos públicos, isso tudo permitiu a essas empresas ter sustentação e inseriu o Brasil em grandes obras de infraestrutura em locais embargados ou subembargados pelo imperialismo. A Lava Jato, portanto, promoveu a destruição da base econômica que sustenta o crescimento econômico”, apontou Furno.

José Henrique de Faria

De acordo com o economista e ex-reitor da UFPR (Universidade Federal do Paraná), o conceito de Lawfare começou como uma guerra jurídica e depois foi conceituado como uma guerra híbrida, pois também trata-se de um conflito que envolve a atuação da mídia e interesses econômicos e ideológicos. “Uma guerra no capitalismo, dentro de um sistema de competição. E uma competição destruidora”, ressaltou ele, destacando que seria ingenuidade acreditar que a Operação Lava Jato não tenha relação com nada no mundo a não ser conosco. “Ela é planejada e se conseguimos enfrentá-la, foi por meio de resistência. Ela é a própria ação jurídica contra um projeto de Brasil”, ressaltou o acadêmico, explicando que, para proteger suas empresas, Estados começaram a utilizar o Lawfare como uma guerra para viabilizar suas próprias empresas. “Lawfare virou uma estratégia de competição internacional”, aponta ainda ele, destacando que, por trás da Lava Jato, havia o interesse de se destruir a economia brasileira e, consequentemente, a competitividade e o protagonismo que empresas brasileiras vinham alcançando no cenário internacional.

PAINEL 2: A perversão do processo

Marco Aurélio de Carvalho

Técio Lins e Silva

PAINEL 3: Judiciário e o Ministério Público durante a Lava Jato

Ney Bello

Marcelo Semer

O desembargador do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) se propôs a fazer uma “autópsia” da Operação Lava Jato. Primeiro, destacou como “Lava Jato” era mencionado para se referir tanto à operação policial, à força-tarefa, aos processos em si ou ainda (e não raro) tudo isso junto e misturado, como se Polícia Federal, Ministério Público Federal e Justiça Federal fossem uma coisa só. Nesse sentido, importante recordar também um artigo de 2004 do ex-juiz Sergio Moro, no qual o paranaense analisa a Operação Mãos Limpas, da Itália, e basicamente apresenta os métodos que viriam a ser utilizados uma década depois, na Lava Jato. Nesse texto, porém, Moro confunde juiz de instrução (membro do Ministério Público) e o juiz do processo (o que julga o feito, efetivamente), destaca Semer. “Sergio Moro usou a Justiça para interesse pessoal. Houve acordo, conluio entre investigados, acusadores e juiz”, diz ele, ressaltando também a importância da série de reportagens da Vaza Jato e defendendo que aqueles diálogo revelados pelo The Intercept Brasil e outros veículos na realidade não eram conversas privadas. “As conversas da Vaza Jato não foram privadas, elas era a extensão do processo. Eles discutiam testemunhas, os recursos, e tudo o que conversavam mexia no processo. O processo era pensado e formatado nessas conversas. Ou seja, as conversas entre Moro e Deltan eram públicas. Essas conversas não se tornam em privadas apenas porque estavam escondidas”, argumenta o magistrado.

Rubens Casara

Em seu pronunciamento, o juiz do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro) destacou que a Lava Jato tentou promover uma espécie de censura, sempre tentando calar os críticos e exaltando os elogiosos. Advogados, por exemplo, eram coagidos e perdiam clientes caso protestassem contra ilegalidades cometidas por agentes da lei. “Clientes chegavam a ficar com medo de serem assistidos por alguém que criticasse o abuso que esses juízes e procuradores consideravam normal”, lembra ele, destacando que a Lava Jato, mais do que uma operação envolvendo juízes e procuradores, foi uma etiqueta colocada em alguns processos, que eram percebidos como produto. “Não precisa ter nexo probatório ou fático entre esses processos, o que instaurava um vale-tudo entre os réus e permitia ação estratégica com múltiplos atores que distorciam o valor verdade com uma finalidade política”, afirma o jurista, avaliando ainda que tantas e tamanhas ilegalidades conseguiram prosperar porque a Lava Jato contou e conta com simpatizantes e apoiadores na sociedade e nas agências judiciais. “Não é um perigo que passou, há um perigo ainda presente. O que faz a percepção da Lava Jato como algo normal é a tradição autoritária e nós nunca conseguimos construir uma cultura verdadeiramente democrática aqui”, lamenta ele.

Flávio Cruz

O juiz federal Flávio Cruz, seguindo uma linha iniciada por Casara, ressalta que a Lava Jato não foi um ponto fora da curva, mas sim a própria curva. Segundo o magistrado, o problema do Brasil não é a falta de boas leis, mas sim a falta da cultura de se cumprir essas leis. “Há uma cultura da ilegalidade em nosso cotidiano, que nada mais é do que uma cultura autoritária”, comenta ele, destacando que combater a corrupção sem combater a sua origem, que é a desigualdade, é infrutífero, ineficaz. “A Lava Jato evidencia que temos uma sociedade que cultua a ilegalidade quando convém e que temos uma estrutura burocrática – que não são apenas os juízes- que atua na base do decisionismo: assim eu quero e assim eu decido, ponto”, critica o jurista, ressaltando que numa sociedade com esse imaginário de repressão, o juiz garantidor é sempre visto sob suspeita. “É como se ele fosse corrupto ou inepto e ele vai ter de explicar porque não condenou todo mundo.”

PAINEL 4: Advocacia e resistência durante a Lava Jato

Nélio Machado

Em sua fala, Nélio Machado exaltou o papel de resistência da advocacia brasileira, mas também criticou o papel exercido por advogados durante a Lava Jato. Como exemplo, recorda uma cláusula que existe em acordos de colaboração, na qual se afirma textualmente que, para o acordo ter validade, não pode haver dissenso, protesto contra a competência do juízo ou contra o cerceamento do direito de defesa. “Onde estavam os advogados do Brasil? Onde estão os que atuaram no Estado Novo? Antes, se um advogado ousasse seguir o caminho da delação, não sentaria à mesa com o colega, não haveria a menor condição de convívio”, desabafou ele, ressaltando que o que aconteceu na Lava Jato foi algo impossível de narrar, algo que nem o melhor romancista, se concebesse essa história, poderia imaginar o que acabou acontecendo. “O papel do advogado não foi cumprido historicamente no Brasil. Os advogados têm de olhar no espelho e perceber porque não cumpriram sua função, porque não olharam o Código Penal”, critica ele.

Juarez Cirino dos Santos

Juarez Cirino dos Santos destacou que Sergio Moro foi a negação de tudo o que um juiz deveria ser e representar, enquanto Deltan Dallagnol foi o “anti-Ministério Público”. Diferente de seu antecessor, inclusive, ele fez questão de “dar nomes aos bois”, por uma questão de didática: “É preciso citar seus nomes para que todos saibam como não deve ser um juiz, como não deve ser um procurador”, afirmou o criminalista, apontando que já em 2015 o próprio Moro declarou sua parcialidade. “Moro escreveu que era o maior escândalo judicial do Brasil. Ele não poderia julgar [os processos], fez um pré-julgamento”, aponta o histórico professor da UFPR, apontando que a força-tarefa da Lava Jato era, na verdade, dirigida por Moro. “Foi o mais escandaloso conluio processual de membros do MPF e, também e especialmente, do juiz Moro. Eles estavam sonhando com a presidência da República, eles iam tomar o poder. (…) A condenação do Lula foi o preço para a compra do cargo de ministro da Justiça por Moro. Mais que isso, ele garantiu a eleição do Bolsonaro com o Lula. Mais ainda, ele queria ser presidente da República, acabou eleito senador e está aí. Ele precisa ser cassado.”

PAINEL 5: A Lava Jato, finalmente passada a limpo

Jacinto Coutinho

O jurista usou seu tempo de falar para recordar o depoimento de Sergio Arantes, gerente setorial de Estimativas de Custos e Prazos, ao então juiz Sergio Moro. Uma fala com um desfecho cômico, no qual o magistrado passa vergonha ao ter dificuldade para fazer uma conta simples. Mas um depoimento, ao mesmo tempo, revelador, que serviu para Jacinto Coutinho defender que a Petrobras, na verdade, não foi roubada. “O problema econômico da Petrobras foi outro. Eles queriam quebrar as empreiteiras nacionais, e isso girou para a estrutura política. Cansamos de falar, tinha alguma coisa além disso [suposto combate à corrupção], e era um projeto político que a gente não conseguia captar no início e que depois ficou claro”, disse ele, destacando que o lavajatismo e seus atores não estão mortos, não foram definitivamente vencidos. “Eu espero que isso nunca mais aconteça, mas nesse país nós não podemos saber se isso não vai voltar a acontecer.”

Lenio Streck

Lenio Streck, por sua vez, se propôs a fazer uma epistemologia da Lava Jato. “Como não deixar acontecer de novo? Entendendo o que aconteceu”, disse ele, ressaltando a necessidade da própria comunidade jurídica fazer uma autocrítica e repensar, especialmente, o ensino jurídico no Brasil. “O direito é o único lugar em que, se fossemos médicos, estaríamos fazendo passeatas contra os antibióticos. Faculdades de Direito viraram uma fábrica de fascistas, de reacionários”, criticou ele, destacado que a Lava Jato já morreu, mas não o lavajatismo, que é uma ideologia (e uma ideologia que degenerou e ainda tenta degenerar o Direito brasileiro). “Como não acontecer de novo? Primeiro, cuidar com o protagonismo. A democracia vai mal quando alguém é protagonista. É igual árbitro de futebol: se ninguém dá bola vai tudo bem; se ele é protagonista, nós vamos mal”, disse Streck.

Pierpaolo Cruz Bottini

O criminalista analisou as condições materiais que permitiram o surgimento e evolução da Operação Lava Jato, recordando algumas importantes mudanças legislativas ocorridas entre 2012 e 2013, como a modificação da lei de lavagem de dinheiro, a lei de organização criminosa e a legislação obsoleta que trava de medidas cautelares pessoais. Ainda segundo ele, mesmo após o fim da Lava Jato, ainda não podemos dizer que há uma normalidade institucional no país, até porque, dentro do processo penal, persisteuma desigualdade, uma violação da isonomia demaneira estrutural. “Enquanto a gente conviver com uma desigualdade, uma falta de isonomia estrutural, vamos continuar gerando um desconforto na população que é combustível para formas de fascismo. As pessoas percebem as desigualdades e querem mais direito penal, porque se eu tenho direito penal contra mim, eu quero mais direito penal contra todo mundo. Se não mudarmos isso, nós vamos gestar, sim, novas Lava Jato”, alertou.