O termo ‘República de Curitiba’ é uma pecha, um estigma que a capital do Paraná terá de carregar por ter sido o quartel-general da Operação Lava Jato. Curitiba, no entanto, não se resume ao lavajatismo e a prova disso é que a cidade foi também palco de movimentos de resistência ao lawfare. O mais famoso deles foi a Vigília Lula Livre, que esteve ao lado do líder popular ao longo dos 580 dias em que Lula esteve preso ilegalmente numa carceragem da Polícia Federal. Mas ao longo de 14 meses, um grupo de manifestantes curitibanos também foi até a porta do Ministério Público Federal (MPF), no coração de Curitiba, para protestar contra a Lava Jato e seus abusos.

O movimento “Abaixo a Lava Jato” surgiu em meados de 2018, a partir da própria Vigília, recorda a jornalista Sirlei Fernandes, de 70 anos. É que no acampamento erguido no bairro Santa Cândida a militância, naturalmente, conversava muito sobre o cenário político e todo o contexto que levou à prisão de Lula. “Muito antes [da série de reportagens] da Vaza Jato nós já tínhamos a compreensão que a prisão do presidente era política, que era uma perseguição insensata para evitar que ele fosse presidente de novo”, comenta ela.

Inicialmente, o espaço para extravasar a revolta diante do sentimento de injustiça era o do próprio acampamento da Vigília, ao lado de companheiros. Da prisão, no entanto, Lula mandou um recado aos vigilantes, alertando para a necessidade dos militantes de esquerda saírem de suas bolhas ideológicas e dialogarem com pessoas de outros campos no espectro político.

“Atendendo esse recado do presidente, nós fomos pra rua”, conta Sirlei, explicando ainda que Felipe Mongruel, o Magal, um advogado de 39 anos, foi quem teve a ideia de ir até a Rua Marechal Deodoro, no Centro de Curitiba, e protestar contra a Lava Jato na ‘porta da casa’ da força-tarefa, a sede do Ministério Público Federal na capital paranaense. “Durante 14 meses, todas as quartas-feiras, entre meio-dia e 14 horas, a gente estava aqui presente com faixas, cartazes… Vinha em torno de 15, 20 manifestantes, que aproveitavam o horário de trabalho, o intervalo do almoço, e vinham aqui para dar um recado. E eles [membros da força-tarefa] ouviam. A gente usava microfone, caixa de som, e dávamos o nosso recado para eles.”

‘De cada dez pessoas, sete nos agrediam e três nos escutavam’

Na época, a Operação Lava Jato vivia o seu auge. A presidente Dilma Roussef havia sido ‘impeachada’, Lula havia sido condenado e preso e um candidato de extrema-direita, Jair Bolsonaro, já despontava como favorito para a eleição presidencial que se aproximava. Nas ruas, esse momento se traduzia num apoio massivo ao lavajatismo.

“De cada dez pessoas que passavam por aqui, sete nos agrediam e três nos escutavam. Na época o ambiente era tenso”, recorda Magal, um dos idealizadores do movimento Abaixo a Lava Jato. “Tinha muita gente mandando ir pra Venezuela, ir pra Cuba. Mas tinha muita gente, principalmente que descia aqui na estação [de ônibus, que fica em frente ao MPF], que fazia sinal de positivo, outros buzinavam. Mas era um período muito difícil, em que ainda não tinha saído as revelações da Vaza Jato. Então o Moro e o Deltan eram deuses, era entrevista todo dia pra Veja, Estadão… Eles não trabalhavam, só faziam autopublicidade e as famosas palestras pagas”, comenta ainda a advogada Ivete Caribé, de 72 anos, que foi também integrante da Comissão Estadual da Verdade no Paraná (que investigou os crimes da ditadura cívico-militar que perdurou no Brasil entre 1964 e 1985).

Para fazer oposição a tudo isso e ainda cobrar explicações dos procuradores da República que estariam liderando a Lava Jato, os manifestantes se organizaram e, dos próprios bolsos, custearam a realização de cartazes, banners e milhares de panfletos que passaram a ser distribuídos para os curitibanos que passavam pelo local. “Nós investimos em poder falar para a população ou explicar para a população o que estava acontecendo. O que todo mundo faz hoje dentro da rede mundial de computadores, através das redes sociais, nós fazíamos na rua, direto com o povo, no corpo a corpo”, aponta Magal.

Encontros com membros da força-tarefa: os causos e as lágrimas derramadas nos dias de luta

Ao longo de 14 meses o movimento “Abaixo a Lava Jato” marcou presença, religiosamente, todas as quartas-feiras na frente da sede do MPF, das 12 às 14 horas. Nesse período, em mais de uma ocasião estiveram frente a frente com integrantes da força-tarefa de Curitiba, o que rendeu algumas cenas um tanto quanto hilárias, até mesmo.

“Lembro de uma oportunidade em que o então procurador Carlos Fernando dos Santos Lima estava voltando para a sede do MPF, descendo a Marechal Deodoro. Ele ia atravessar a rua Tibagi e aí ele nos avista. E quando ele nos avista, ele para, olha rapidamente, pensa e começa a voltar. Ele foge do confronto, foge do enfrentamento, e aí alguns dos nossos participantes vão atrás dele para pedir explicações. Ele dá uma corridinha à la Rocha Loures com uma bolsa e se esconde atrás de uma palmeira de forma indignante, vergonhosa: esse era o homem que dizia que a Lava Jato iria refundar a República. Um homem que fugia de 15, 20 manifestantes, grande parte deles não tão jovens assim – todos jovens de alma, de espírito, mas já não tão jovens para poder ameaçar uma represália física ou alguma coisa assim”, conta Magal.

Em outra ocasião, os manifestantes produziram uma faixa com a seguinte pergunta: “Quem lucrou mais [com a Lava Jato]: Moro ou Deltan?”. O material foi pendurado numa árvore e ficou exposto na frente do MPF. Foi quando outro integrante da força-tarefa, Januário Paludo, apareceu. Ao ver a faixa, ele parou em sua frente, leu os seus dizeres e se dirigiu aos manifestantes. “Ele disse ‘eu respondo vocês. Quem lucrou mais foi o povo’. Aí eu fui atrás dele e questionei: ‘Qual povo? O seu?’ Ele foi embora, não me respondeu e nem virou para trás. Então nós vivemos esse momento, que eu acho que serviu para pelo menos desafogar um pouco da nossa angústia”, comenta Caribé.

Um dos momentos mais especiais, mais emocionantes vivenciados pelo grupo, no entanto, foi em 2019, quando a série de reportagens da Vaza Jato revelou que membros da Lava Jato faziam chacota com a morte de Marisa Letícia, ex-esposa de Lula, e de Arthur Lula da Silva, neto de Lula que tinha apenas sete anos de idade quando faleceu.

“Até hoje eu lembro disso e me emociono, tenho vontade de chorar. É inadmissível que pessoas que se dizem entendidos de lei, do direito, que se dizem religiosas, ajam dessa forma. E nesse dia aqui na frente do MPF tinha muitas pessoas revoltadas. Naquele dia me veio à mente um poema e eu recitei uma estrofe dessa poesia [Vozes da África, de Castro Alves]: ‘Deus! Ó Deus! Onde estás que não respondes? / Em que mundo, em qu´estrela tu te escondes / Embuçado nos céus? / Há dois mil anos te mandei meu grito, / Que embalde, desde então, corre o infinito… / Onde estás, Senhor Deus?’ Foi muito triste”, recorda, emocionada, Sirlei Fernandes.