Jornalismo e Resistência

Vozes dissonantes

Um dos pilares da Lava Jato, segundo o próprio Deltan Dallagnol aponta no livro “A Luta Contra a Corrupção”, foi a comunicação social, utilizada de forma estratégica para legitimar e fortalecer a metodologia da operação. A pressão para que investigados fechassem acordos de delações premiadas, o vazamento seletivo de informações para alguns veículos da imprensa e a destruição da imagem e reputação de investigados foram algumas das estratégias utilizadas pela força-tarefa para construir uma narrativa que garantisse o apoio da opinião pública – o que funcionou, diante do apoio massivo e acrítico dos grandes veículos de comunicação ao lavajatismo.

Apesar disso, diversos profissionais da comunicação mantiveram uma postura crítica com relação à operação, antes mesmo do escândalo da Vaza Jato vir à tona e escancarar as ilegalidades e a atuação politicamente direcionada da Lava Jato. São jornalistas e outros comunicadores que adotaram uma postura contramajoritária, tentando alertar a sociedade não só para a importância do combate à corrupção, mas também para os perigos e os possíveis reflexos de abusos cometidos pelos acusadores e da parcialidade de membros em papéis fundamentais na hierarquia da operação.

Esta seção homenageia e conta a história desses profissionais que foram “vozes dissonantes” no auge do lavajatismo, vozes que fizeram resistência no campo da comunicação, denunciando excessos, arbítrios e defendendo princípios basilares do jornalismo e da democracia.

São homenageados no Museu da Lava Jato as/os seguintes jornalistas:

Cynara Menezes

Nascida em março de 1967 em Ipiaú, no interior da Bahia, Cynara Menezes formou-se em Jornalismo na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e desde então passou por algumas das principais redações jornalísticas do Brasil, como Folha de S. Paulo, Estadão, Veja e Carta Capital. Em setembro de 2012 criou o Socialista Morena com o propósito de fazer um jornalismo independente, anticapitalista e de almanaque, abordando assuntos diversos, da arte à política. Foi um sucesso imediato, que em poucos meses lhe rendeu prêmios como o Troféu Mulher Imprensa 2012, na categoria Jornalista de Mídias Sociais.

No período de auge do lavajatismo no Brasil, Cynara foi uma das principais vozes dissonantes na imprensa brasileira, denunciando as ilegalidades cometidas pela força-tarefa e a atuação parcial do juízo que conduziu a operação. Hoje, diante de todas as revelações e os impactos causados pela atuação da Lava Jato, define a operação como uma lesa-pátria. “A Lava Jato tirou milhões de empregos, acabou com um setor inteiro da construção civil e fez uma perseguição injusta a um líder operário. Jamais eu poderia ser a favor disso”, afirma a jornalista, apontando ainda que a atuação de nomes como Deltan Dallagnol (coordenador da força-tarefa) e Sergio Moro (juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba) seria considerada alta traição em outros países. “Moro e o Dallagnol jamais conseguirão explicar porque eles destruíram todo um setor da indústria da construção civil brasileira.”

Decifrando MOROLAND: uma investigação sobre o “conservadorismo” de Curitiba

Desde o começo da operação Lava-Jato que a capital do Paraná, Curitiba, está sendo cantada em prosa e verso como “a mais coxinha do país”, “paraíso reaça” e “tucanistão 2”. Para azar dos curitibanos de esquerda, até o apelido de um dos times da cidade, o Coritiba, é, por total coincidência e crueldade do destino, “coxa” (de coxa-branca, por causa dos alemães que o fundaram).

É bem verdade que a esquerda nunca ganhou uma eleição por lá –o mais próximo que chegou foi com Roberto Requião, em 1986, e com o atual prefeito Gustavo Fruet, do PDT, que tem vice petista. Também é verdade que o Paraná votou majoritariamente em Aécio Neves em 2014 –quase 61% dos votos válidos no Estado, 72,2% na capital, seu recorde nacional. Mas será que Curitiba é mesmo uma cidade “conservadora” ou essa é uma construção que favorece o discurso de direita de que existem redutos reacionários “de primeiro mundo” no Brasil?

Fui até Curitiba investigar o “conservadorismo” da cidade onde Sérgio Moro fincou os pés, e encontrei uma cidade muito mais plural do que imaginava e mais cercada de mitos do que eu supunha. Aliás, a maior parte dos curitibanos que ouvi para esta reportagem aludiu à construção no imaginário dos locais ao longo dos anos, através de recursos de propaganda, de uma cidade um tanto distante da realidade. Alguns mitos: o de que a cidade é “europeia”, quando 27,59% de sua população declara-se preta ou parda, segundo o IBGE; o de que a cidade é “perfeita” urbanisticamente, quando há bairros com esgoto a céu aberto e ruas ainda sem asfalto; e o mais recente, o de que todo curitibano adora Moro.

Quem envergonha o Brasil aos olhos do mundo é Moro, não Lula

Hoje o juiz de primeira instância Sérgio Moro conseguiu realizar o que seus patrocinadores na mídia comercial perseguiam há tempos: prender o maior líder político do Brasil. Lula se entregou e agora é mais um petista nas masmorras de Curitiba, a cereja do bolo, o grande prêmio da caça à esquerda travestida de luta contra a corrupção.

O mundo inteiro olha no que a Lava-Jato e o golpe contra uma presidenta eleita transformaram nosso país em poucos anos. De nação emergente, viramos uma república de bananas governada por um presidente ilegítimo, onde líderes opositores são encarcerados para que não disputem eleição. Um país mergulhado na ignorância do conservadorismo que censura até exposições de arte, que assassina líderes de movimentos sociais e entrega suas empresas públicas a preço de banana a estatais estrangeiras. Com Lula no poder, viramos protagonistas; com Lula preso, viramos o cocô do cavalo do bandido.

Há um ano, aprisionaram a esperança para que o ódio chegasse ao poder

Neste domingo, 7 de abril, completa um ano que Luiz Inácio Lula da Silva, um dos políticos mais admiráveis do mundo, está encarcerado numa masmorra em Curitiba. Sozinho, tendo às vezes a companhia de algum amigo ou familiar a quem sua carcereira permite a entrada, e de seus advogados. Lula, o metalúrgico que se tornaria um presidente amado por seu povo e que projetaria o Brasil internacionalmente como nunca antes, está trancado há 365 dias numa cela fria, dormindo numa cama de solteiro, sem mulher, sem ninguém.

Como não se indignar com isso? Só sendo manipulado ou cúmplice dessa injustiça histórica. Era para Lula estar desfrutando, com todo merecimento, de seus anos na presidência. Deveria estar viajando por aí, fazendo palestras, sendo homenageado, atuando como o embaixador de nosso país que sempre foi, porque sente amor genuíno por esta terra. Há 40 anos Lula dedica sua vida ao Brasil. E o agradecimento que recebe é este, ser trancafiado como se fosse um bandido. Lula não é bandido e nunca será; digam o que digam, não vão apagar esta realidade.

Ida para o governo Bolsonaro orna com a visão punitivista medieval de Moro

O juiz Sérgio Moro, que se notabilizou pelos excessos nas prisões provisórias para forçar delações e por permitir acorrentar pés e mãos de presos, além de espionar e vazar conversas privadas de seus investigados, aceitou o convite de Jair Bolsonaro e será o ministro da Justiça e Segurança Pública do novo governo. A ida de Moro para o governo do candidato a quem beneficiou diretamente ao condenar seu principal rival reforça a percepção de que a decisão de prender Lula foi política e também a expectativa de que Bolsonaro, com forte controle sobre as Forças Armadas e a Polícia Federal, instaure um estado policial no país utilizando os métodos que consagraram Moro em Curitiba.

Não foram poucas as críticas à forma como o futuro ministro da Justiça conduziu a Lava-Jato. O juiz conduziu Lula coercitivamente sem necessidade alguma, invadindo a casa do ex-presidente com policiais fortemente armados que levaram inclusive os tablets dos netos de Lula e Marisa. Moro chegou a divulgar ilegalmente uma conversa entre a presidenta Dilma Rousseff e Lula, dando um empurrãozinho ao processo de impeachment. Se o juiz foi capaz de espionar a própria presidenta da República, o que poderá autorizar que seja feito com cidadãos comuns à frente do ministério da Justiça?

Entrevista exclusiva do Museu Da Lava Jato

Cynara Menezes – Vozes Dissonantes

MUSEU DA LAVA JATO: Onde você nasceu, quando?
CYNARA MENEZES: Eu nasci numa cidade do interior da Bahia que se chama Ipiaú, é uma cidade da região cacaueira, região sul da Bahia. Minha família, tanto a parte materna quanto a paterna, é de lá. Eu nunca morei lá, mas nasci lá em março de 1967, tenho 55 anos, O meu pai era bancário, então a gente morou na Bahia toda. E a minha mãe, quando ficava grávida e ia ter filho, ela queria ter perto da mãe, então os filhos iam nascer em Ipiaú. Mas de lá de Ipiaú a gente morou em vários lugares, eu fiz o meu segundo grau em Itabuna e fiz faculdade em Salvador. Hoje minha família toda mora em Salvador.

MLJ: E como foi a sua infância, até por esse fato de seu pai ser bancário e vocês estarem sempre viajando, se mudando por conta dele ter de inaugurar agências bancárias em diferentes lugares?
CYNARA: É muito interessante. Em geral, as pessoas têm dificuldade de lembrar os períodos da infância. E a minha, como é toda compartimentada, eu lembro exatamente os anos. Então eu sei que entre 1973 e 1974 estava em Tucano, entre 1975 e 1976 estava em Mucuri, de 1977 a 1980 a gente morou em Uruçuca, 1981 a 1983 em Itabuna e a partir daí, Salvador. Então a minha infância, o exercício de memória facilita muito quando você tem tudo tão compartimentado assim. Eu me lembro que no sesquicentenário da Independência, em 1972, a gente estava em São Francisco do Conde, que foi a cidade das minhas primeiras memórias de infância, eu tinha entre quatro e cinco anos, até sei as idades. Eu me lembro que no ano do sesquicentenário da Independência, que é os 150 anos do Brasil, eles fizeram uma lavagem cerebral. Até hoje eu me lembro do hino: “Sesquicentenário da Independência/ É D. Pedro I/ É D. Pedro do grito”. Olha que loucura… Eles faziam a gente decorar isso e cantar. Tem até uma amiga minha que fez um curta sobre o sesquicentenário da Independência justamente porque ela tinha as mesmas lembranças, de marchar, marchar, a musiquinha… Foi uma coisa bizarra e eu me lembro exatamente por conta disso. Por conta das mudanças da família, eu sei exatamente onde eu estava desde pequenininha.

MLJ: E quais que eram as distrações que você tinha, ainda mais que, com tantas mudanças, imagino que você estava sempre trocando de amizades, círculos…?
CYNARA: Era muito bom. Para algumas pessoas seria traumático, mas para nós, como nós éramos três filhos – e depois tiveram mais dois temporões -, para a gente era ‘ah, vamos mudar de cidade’. Era uma excitação, uma alegria para todos, porque a gente já tinha aquele núcleo de amizade dentro de casa. Então era assim: ‘Tchau, amigos velhos. Oi, amigos novos’ [risos]. Chegava na cidade, a minha mãe ia na casa dos vizinhos para apresentar a gente pras crianças novas. Chegava na cidade, a primeira coisa que ela fazia era bater na porta dos vizinhos que tinham crianças e dizer assim ‘oh, esse aqui é o meu filho’. E isso é engraçado, porque anos depois, muitos anos depois, quando eu fui morar em São Paulo, fiz o mesmo com meu filho mais velho. Eu bati na porta da casa da vizinha, que é até hoje minha amiga. Ela tinha dois filhos mais ou menos da idade dele e eu bati na porta para apresentar as crianças, fiz a mesma coisa que minha mãe fazia.

MLJ: E como que o jornalismo entra na tua vida, passa a ser algo no teu horizonte, uma possível formação, uma carreira?
CYNARA: Meu pai queria muito que eu fosse médica. Todos os pais daquela época queriam que os filhos fossem médicos. Meu primo realizou o sonho familiar e é médico, o único. Mas eu gostava muito de leitura, meu pai via que eu gostava de leitura e ele era uma pessoa simples, porém inteligente, muito inteligente, e se preocupou com isso. Então ele me dava muitas palavras cruzadas, ele ia na banca de revista e comprava uma revista pra minha mãe e para mim sempre dava palavras cruzadas. Comecei com aquele “Picolé Pipoca”, que era o mais simplesinho, que você cobria as letras. E aí os gibis, foram muito importantes para mim como pessoa que cresceu em cidades muito pequenas, muito pequenas no interior da Bahia. Mucuri, que é uma cidade que a gente morou quando eu tinha 8 e 9 anos, só tinha duas ruas. Era uma rua de terra batida e a outra de areia, uma cidade-praia. Não tinha luz, só de motor, das seis às dez. Passamos esses anos sem ver TV, foi muito legal. É uma cidade que até hoje temos muitas lembranças, memórias afetivas. Então, para uma pessoa que é de uma cidade tão pequena, pré-internet, sem televisão, os gibis, principalmente os da Disney, do Tio patinhas, eles transportam você para muitos lugares. O Tio Patinhas, até já escrevi sobre ele no Socialista Morena, porque o Tio Patinhas tem a parte das aventuras que eles fazem, as viagens que ele faz com o Donald e os sobrinhos: eles vão para o Peru, tem as pirâmides, Tupac [último imperador inca de Vilcabamba, último refúgio do Império Inca a ser destruído pelos colonizadores espanhóis]… São coisas que eu nunca nem tinha ouvido falar. E no gibi do Tio Patinhas tem dois jornalistas: o Donald e o Peninha. O Peninha foi muito influente em termos de jornalista para nossa geração, inclusive tem um jornalista famoso cujo apelido é Peninha e é Peninha por causa disso, o Eduardo Bueno. O Eduardo Bueno, o apelido dele é Peninha por causa do personagem do gibi. Aí a gente ficava sonhando em trabalhar num jornal como o Peninha e o Donald. E aí depois tem uma fase que eu comecei a ler mesmo jornal. Os adultos compravam jornal e eu lia o jornal. Quando eu tinha 12 anos, morava em Uruçuca, eu fiz um jornal na escola, que teve só duas edições. Os meninos faziam muito bullying, queriam abrir antes da hora, e aí eu me irritei e falei ‘ não vou fazer mais’. Mas a partir daí eu já pensei que poderia fazer ou Jornalismo ou fazer Letras, porque acho que todo jornalista queria ser escritor também. E eu passei para Letras quando fiz vestibular. Passei para Letras na Católica e para Jornalismo na Federal. Obviamente, com um pai que não é rico, a gente não discute muito, a gente vai na grátis. E a grátis era o Jornalismo e eu fui pro jornalismo. E dentro do Jornalismo, no primeiro ano eu pensei também em talvez ser publicitária. Até hoje eu acho que tenho um certo talento pro marketing. Talvez seja coisa de baiano, tem tanto marketeiro aí [risos]… Eu cheguei a trabalhar numa agência de publicidade, fiz algumas coisas e algumas delas até hoje eu vejo em Salvador sendo usadas. Só que em publicidade você tem de passar pelo menos um ano trabalhando sem ganhar nada até conseguir algo. E isso não era possível para mim, não era possível para mim estar numa agência sem ganhar nada, e o jornalismo já estava me dando tutu. Eu não precisava pedir dinheiro pro meu pai mais. Então eu fui pro jornalismo, entrei no jornalismo direto e fiquei no Jornalismo desde os meus 17 anos. Eu e uma amiga, a gente se conheceu no vestibular, a gente era muito atirada, fomos na TV pedir emprego e arranjamos emprego de produtoras. Ela na TV Aratu e eu na TV Itapuã. E logo eles quiseram me transformar em repórter de Esportes. Fui repórter de Esportes por pouco tempo, teve um corte na redação e uma das primeiras pessoas a dançar fui eu, acho que eu não era muito boa repórter esportiva. Eu tinha 18 anos, era muito novinha, e nessa época os esportes que estão todos incorporados eram chamados de esporte amador. A menina fazia esporte amador, que eram todos os outros esportes que não futebol, como o remo, por exemplo, que é muito forte em Salvador; eu cobria Karatê; vôlei; então eu comecei aí. Mas como fui demitida logo, meu primeiro emprego mesmo foi num sindicato. E aí eu começo a ter a relação com a esquerda.

MLJ: Mas pelo seu interesse, sua vontade de ser escritora, imagino que sua ideia no Jornalismo era trabalhar com Jornalismo cultural
CYNARA: No começo, nessa época todo mundo queria ser jornalista investigativo. Todo mundo queria ser. O grande ídolo da minha época era o Gilberto Dimenstein, todo mundo queria ser Gilberto Dimenstein, fazer furos, descobrir coisas, então eu comecei meio solta. Acho que a vida inteira eu fui meio solta. Eu gosto de escrever de Política, mas também gosto de escrever de Cultura, gosto de escrever matéria de Cidades… Eu entrei na parte de Cidades, fazendo polícia. Uma das primeiras matérias que eu fiz, depois do Sindicato… Porque eu trabalhei no Sindicato dos Petroleiros e no Sindicato dos Telefônicos e aí depois desses estágios eu fui trabalhar como repórter já no Jornal da Bahia. E aí no Jornal da Bahia fui fazer umas matérias tipo… Eu queria fazer muito uma matéria mostrando as pessoas – até meio uma fantasia, que isso nem existia mais na época – do pau de arara, o cara saindo do sertão para ir para a capital. Queria acompanhar uma família migrando do sertão para a capital desde lá no sertão. Mas quando eu cheguei no sertão para fazer essa matéria, tinha um negócio estranho. A gente se hospedou num hotel que tinha umas pessoas italianas com umas crianças brasileiras. E eu descobri um esquema de tráfico internacional de crianças. Você sabe que o fator sorte é uma coisa muito importante na nossa profissão, né?! Eu falo que são dois ‘Ésses’: saque e sorte. Porque eu poderia não ter sacado, mas eu tive a sorte de ver. E aí eu ganhei um prêmio com essa matéria e comecei a pensar em vir pra Brasília, fazer essa carreira de jornalista investigativo. Mas depois que eu vim para cá pela primeira vez, em 1989, a primeira eleição do Lula, que eu cobri pela Folha, eu não gostei. Eu era muito nova, tinha 22 anos. E aos 22 eu já estava muito em dúvida se eu queria isso, o que é que eu queria, se era isso que eu queria para mim. E era nos anos Collor, então eu não queria ter contato com essas pessoas. Você sabe que uma das pessoas que mais me espantou para eu odiar a cobertura política em Brasília foi o Roberto Jefferson.

Então eu trabalhei essa época na cobertura do Lula, pela Folha; depois em 1990 eu fui pro Estadão; eu vim para Brasília, fui trabalhar no Jornal de Brasília, mas sempre com esse desejo de trabalhar na Folha porque todo mundo queria trabalhar na Folha, todo mundo queria ser o Gilberto Dimmenstein, e eu fui pedir emprego para o Gilberto, inclusive, e ele que me arranjou essa vaga na Folha. Eu fui pra Folha, fiquei lá na Folha, eu fui pro Estadão e aí comecei a me desencantar com o jornalismo político. Então eu dei um passo atrás e resolvi que queria cobrir Cultura. Então eu dei um passo atrás e fui para o jornal de Brasília, onde eu já tinha trabalhado antes, para ser jornalista de Cultura. E aí fiquei um tempo cobrindo Cultura até que a Folha me chamou de volta para cobrir política. Mas o que eu fazia era só a parte curiosa da política, o que eles chamam de side. Tem a parte que é a cobertura hard e eu fazia a parte de clima, que eles chamam. Por exemplo, tá rolando uma CPI, a gente vai lá ver o cara que coçou o nariz, alguma curiosidade. Fiz por muitos anos isso. Fui em 1993 para a Folha de volta e fiquei cobrindo esses sides. Mas sempre muito sem querer cobrir política e não gostando da convivência com os políticos no Congresso. Muita promiscuidade, eu não gosto que me encostem, sabe? Não rola. E um dia, em 1994, quando eu estava na Folha, falaram para mim ‘Cynara, você vai fazer uma matéria sobre os políticos que vão armados ao Congresso’, porque tinha isso, cara. Hoje tem detector de metais na entrada para impedir, justamente porque rolou isso de entrarem armados. E falaram que um deles era o Roberto Jefferson. E aí eu fui lá ouvir Roberto jefferson e na minha inocência eu joguei na lata: ‘É verdade que o senhor anda armado aqui no Congresso?’. Aí ele falou assim: ‘É verdade. A minha arma é essa aqui, oh [e o político então exibe a própria língua para a jornalista]’. Aí eu falei ‘cara, não vai rolar. Eu não tenho estômago pra isso, eu não quero conviver com essas pessoas. Elas são nojentas, asquerosas’.

Eu não sei como as pessoas conseguem cobrir política. Eu estou em Brasília de volta desde 2008 e eu odeio ir lá no Congresso. Eu não gosto, não gosto. Nada contra os meus colegas, eu gosto quando eu encontro com eles. A questão é a convivência com aquelas pessoas [políticos], principalmente essas de direita. Eu não quero conviver com eles, é uma energia ruim, pesada. E aí eu falei assim ‘não, eu quero trabalhar na Ilustrada’, que era uma ideia também que eu acalentava na época da faculdade porque tinha no Jornal do Brasil um caderno que se chamava Ideias, que era um caderno de livro, que era também muito o meu sonho trabalhar no caderno Ideias, com a Luciana Villas Bôas e tal. E aí eu voltei a pensar em ir para a Espanha fazer uma pós-graduação em literatura e quando voltar pro Brasil ir direto pra Folha de S. Paulo, pra Ilustrada. E aí eu consegui operacionalizar isso, me matriculei num curso na Espanha, um Doutorado em literatura espanhola e hispano-americana, e quando eu voltei pro Brasil, acabou que eu consegui… Primeiro eu voltei pra Folha, em São Paulo. O meu chefe em Brasília, que era o Josias de Souza, estava aqui em São Paulo e então eu consegui que o Josias me chamasse de volta e eu fui pra Folha em São Paulo, para Cotidiano, Cidades, que é também uma área que eu gosto de cobrir. Fiquei um tempo em Cidades, mas sempre almejando ir para a Ilustrada, e fui pra Ilustrada e fiquei cobrindo livros na Ilustrada por anos e sempre que precisavam eles me puxavam para Política para fazer esse outro olhar da política.

Depois da Folha eu tive uma outra passagem pelo Estadão. Nunca gostei, nenhuma das duas vezes, eu não gostei de trabalhar no Estadão. E aí a Veja me chamou para trabalhar com eles. Eu fui pra Veja, fui chamada por uma grande amiga, a Thaís Oyama, que hoje está no UOL, e eu odiei. Foi uma experiência horrível, horrível. Aquilo ali não é jornalismo.

Depois da Veja eu fui pra VIP, fiquei nessa parte de jornalismo masculino, que é uma parte bem divertida, mas que uma hora enjoa. O Paulo Nogueira que conseguiu me tirar da Veja pra VIP e o tempo que fiquei lá fui feliz, escrevendo coisas divertidas. Eu tinha uma coluna na VIP. E depois da VIP eu fui pra Carta Capital. E aí quando eu estava em São Paulo, na Carta, eu gostava mais do que eu fazia. Lá em São Paulo eu pude fazer o trabalho que eu gosto, que é um pouco de cada coisa: um pouco de política, de cultura… Mas por questões pessoais eu acabei voltando pra Brasília, mergulhei na hard news de novo. Não foi por opção, foi circunstância da profissão mesmo, e desde então estou aqui em Brasília. A partir de 2012 eu crio o Socialista Morena, em 2015 fico só no site e de uns dois anos pra cá começo a fazer os vídeos com a Fórum e com o Brasil 247.

É esse o resumo da minha trajetória.

MLJ: E ao longo dessa trajetória, quais as coberturas, as entrevistas que você destacaria como sendo as mais marcantes?
CYNARA: Olha, na parte de literatura eu fiz algumas entrevistas que eu gosto muito. Eu entrevistei a Rachel de Queiroz; eu entrevistei Manoel de Barros; eu entrevistei o [Luís Fernando] Veríssimo – sempre por fax, é engraçado, ele só queria falar por fax -; eu dei um furo, na época da morte do Jorge Amado, eu descobri um texto inédito do Jorge; na Carta Capital eu fiz uma entrevista que eu gosto muito com o dono da Cosac Naify, que é uma figura muito interessante, Charles Cosac; e eu vou te falar que da parte do hard news não tem nada que eu goste. No site, a partir do Socialista Morena, tem umas coisas muito boas. Eu acho que no meu site eu consegui concretizar a ideia que eu tenho do jornalismo como almanaque, jornalismo almanaque, uma coisa de curiosidade, e aí eu saciei minhas curiosidades em vários temas. Alguns dos textos mais lidos do meu site saciam uma curiosidade minha. Por exemplo, tem um texto que bombou e volta e meia volta a bombar, que eu sempre me perguntei porque nos Estados Unidos, ao contrário de todos os outros países onde houve negros escravizados, não existe batucada, percussão. Não tem. E eu fiz uma pesquisa bem extensa, descobri que foram 100 anos de proibição de tambores nos Estados Unidos, porque eles achavam que os negros iam transmitir a rebelião através dos tambores. Então isso mudou toda a música americana. Não que ela seja pior do que as outras, é maravilhosa também. Mas o músico negro americano toca piano, toca saxofone, ele não batuca. Acho que fiz muitas coisas bacanas no Socialista Morena, até mesmo na política. Eu me lembro de uma das últimas matérias que eu fiz, ainda estava na Carta, que foi uma matéria sobre a família Genro. Fez muito sucesso na eleição na época, foi em 2014, eu fiquei imaginando como era o almoço de domingo na casa da Luciana Genro. Porque o pai dela era candidato a governador e o ex-marido também. Ela era candidata a presidente e o pai dela era do Lula [apoiava a reeleição de Dilma Rousseff]. Ficou muito divertido, muito divertido. Então, sei lá, eu acho que fiz muitas coisas legais. Não são matérias de prêmio, porque não são matérias investigativas. Mas são matérias que eu tenho muito orgulho de dizer que quando eu chegava na redação da Folha os meus colegas diziam ‘sua matéria era a melhor coisa que tinha no jornal no domingo’, sabe?

MLJ: E como que surge, efetivamente, o Socialista Morena? Porque o blog surge na época em que você trabalhava como repórter na Carta Capital, mas ele começa como um blog em separado, independente, e só depois que passa a ser hospedado pela Carta.
CYNARA: Primeiro a Carta, quando vem o auge dos blogs, falou para criar um blog para a gente. Eles queriam que eu fizesse um blog genérico e eu falei que não, que se fosse para fazer um blog genérico eu não queria. Eu tinha uma ideia de um blog que queria concretizar do jeito que eu queria, que estava na minha cabeça. A ideia de uma coisa de socialismo moreno do [Leonel] Brizola e do Darcy [Ribeiro] misturado com uma personagem que seria tipo uma pin-up socialista morena, sabe? Uma coisa assim. E aí eu tinha tudo formatado na minha cabeça e falei ‘não, vou fazer por minha conta’. E aí quando o blog explodiu, logo no começo, a Carta quis hospedar então dentro da Carta, dentro da home da Carta. Essa matéria da Luciana Genro, por exemplo, eles falaram que eu poderia ter publicado na Carta. Mas o que eles queriam que eu publicasse na Carta eram sempre as coisas chatas, coisas sérias, PMDB e não sei o quê… Umas coisas que eu não estava mais afim de fazer. Você sabe que eu fiz na Carta uma matéria em 2013 sobre os transgêneros que foi a primeira matéria que saiu sobre os transgêneros na imprensa brasileira. E a Carta se recusou a dar capa. Preferiu dar uma matéria de hard news na capa, sabe? Isso eu não… Para mim, a minha cabeça tava muito diferente disso. E o tempo mostrou que eu estava certa. Muitos anos depois a Carta deu uma matéria sobre isso, uma pessoa transgênero na capa. Mas eu não consegui. Então eu queria traçar meus próprios caminhos, me interessar pelos meus próprios assuntos. E também eu queria dar minha opinião. Porque o jornalista, quando chega numa certa idade, ele não quer só ouvir a opinião dos outros, ele quer dar sua própria opinião. Ele se acha na condição de opinar. Se você não tem no veículo onde trabalha um espaço para opinar, você vai buscar o seu, né. E eu fui buscar o meu espaço onde eu podia falar o que eu queria, e por isso surgiu o Socialista Morena. E a partir de 2015 eu propus à Carta de continuar lá, mas apenas no site, porque eu não queria mais fazer hard news, não queria mais fazer matéria de hard news e nem quero mais. Não quero, não gosto disso. Admiro quem faz, porque é realmente chato para caramba. Então não quero mais isso. Aliás, provavelmente essa é a última eleição qeu eu cubro, porque eu não quero mais. Espero que Lula ganhe no domingo [a entrevista foi feita na quinta-feira anterior ao domingo do segundo turno da eleição] e eu quero sair fora dessa cobertura. Quero, de repente, escrever um livro meu. Estou pensando em manter as lives agora e de repente dar um tempo do site para dedicar minha escrita para outro rumo.

MLJ: E o sucesso do Socialista Morena é algo que vem muito rápido. O primeiro texto já é um clássico, “Os 12 Mandamentos do Socialista Moderno”. Pouco tempo depois vem o texto dos roqueiros conservadores e ainda em 2012 você ganha um prêmio, o Troféu Mulher Imprensa 2012 na categoria Jornalista de Mídias Sociais.
CYNARA: Aquele texto dos roqueiros explodiu. E do prêmio, a partir desse ano, todo ano eu aparecia no Mulher Imprensa. Aí depois eles mudaram as regras e agora só aparece gente da mídia tradicional.

MLJ: E no Facebook você classifica o Socialista Morena como um “Jornalismo anticapitalista”. Queria eu explicasse o que é esse “Jornalismo anticapitalista”.
CYNARA: Hoje a epígrafe do site mudou para “Arte e Política”, mas jornalismo anticapitalista, sempre. Porque o jornalismo, não sei se você já reparou, tem as seções lá no meu site e está separado “Kapital” e “Trabalho”. Porque a editoria de “Economia” nos jornais só se dedica ao capital. Ela não se dedica ao trabalho, sendo que economia é capital e trabalho. Então, no espírito da imprensa operária, que é uma imprensa que existiu no Brasil desde o século XIX e foi morta pela ditadura… A imprensa operária deixa de existir, todos os jornais sindicais, a própria Última Hora, todos esses jornais que tinham uma preocupação trabalhista, eles deixam de existir, são cortados na época da ditadura. Então o meu site, de certa maneira, ao se definir como anticapitalista, ele presta uma homenagem a essas pessoas que fizeram a imprensa operária no Brasil desde o primórdio. Porque eu considero que eu faço uma imprensa operária, uma imprensa que eu não tenho meu veículo herdado de ninguém, eu não herdei de ninguém nada. Eu tenho um veículo de comunicação no qual eu posso me expressar, eu posso influir politicamente no Brasil, sem ser herdeira de ninguém, no espírito do Samuel Wainer, que também não foi um herdeiro e que fundou o Última Hora com seu talento de jornalista. Então é anticapitalista nesse sentido. A minha visão, o meu viés, sempre será favorável ao trabalhador, e não ao patrão, ao contrário do que faz a imprensa comercial. Eu reproduzi um texto do Gramsci no meu site, é “Os Jornais e os Operários”. É tão impressionante esse texto… Ele foi escrito pelo Gramsci mais de 100 anos atrás. Ele fala assim:

“É a época da publicidade para as assinaturas. Os diretores e os administradores dos jornais burgueses arrumam as suas vitrines, passam uma mão de tinta na tabuleta e chamam a atenção do passante (isto é, do leitor) para a sua mercadoria. A mercadoria é aquela folha de quatro ou seis páginas que todas as manhãs ou todas as tardes vai injetar no espírito do leitor a maneira de sentir e de julgar os fatos da atualidade política que mais convém aos produtores e vendedores de papel impresso. (…) Antes de tudo, o operário deve negar decididamente qualquer solidariedade com o jornal burguês. Deveria recordar-se sempre, sempre, sempre, que o jornal burguês (qualquer que seja a sua tinta) é um instrumento de luta movido por ideias e interesses que estão em contraste com os seus. Tudo o que se publica é constantemente influenciado por uma ideia: servir à classe dominante, o que se traduz num fato: combater a classe trabalhadora.”

Então assim, com essa consciência disso, que eu só atingi depois né, óbvio… Quando você começa nessa profissão, você quer sobreviver, quer se destacar. É possível você fazer bom jornalismo dentro da imprensa burguesa, isso é claro, tem de deixar claro. Não é porque a pessoa trabalha na imprensa burguesa que ela não pode ser um bom jornalista. Todo mundo precisa sobreviver, né? Óbvio que se uma pessoa de esquerda pudesse escolher trabalhar num veículo que coaduna com seu pensamento, óbvio que iria trabalhar. Mas você precisa sobreviver, fazer um bom trabalho. E hoje todos os jornais, todas as redações, têm jornalistas fazendo um trabalho digno. E lá dentro as vezes a pessoa não abre os olhos, ou não está interessada em abrir os olhos, para isso. Eu, quando trabalhei na Folha da primeira vez, que eu era bem novinha, eles me demitiram por um erro bobo, por um erro bobo. E depois disso eu nunca mais confiei em patrão. Foi ótimo, foi ótimo. Eu fui a primeira pessoa a entrevistar Rosane Collor, dei um furo pra Folha. Nenhum jornal conseguiu entrevistar Rosane Collor, só eu. E na hora de me demitir eles não estavam nem aí, você é só mais uma peça nessa engrenagem. Todos os meus contemporâneos foram demitidos alguma hora e não porque eles eram ruins. Então eu não tenho confiança em patrão nenhum, ganhei muito cedo essa consciência de que você é apenas um mecanismo na engrenagem, ainda que você esteja fazendo um trabalho excelente. Você não tenha a ilusão que você é da casa, sabe? Que você é da família. Não tem. O Mino Carta está certíssimo de dizer que o Brasil é o único país onde jornalista acha que é amigo do patrão. Não existe isso. Patrão é patrão e empregado é empregado.

MLJ: Mudando agora de assunto, quais os seus primeiros contatos, as mais remotas lembranças que tem da Operação Lava Jato?
CYNARA: Quando surgiu a Lava Jato a gente já ficou meio cabreiro de ser uma operação contra o PT, ficou todo mundo no ‘vamos ver o que é que vai acontecer, se não for só contra o PT é uma coisa boa, precisa mesmo purgar’… Você sabe que o único efeito positivo assim da Lava Jato que eu acho é o fato de terem contribuído para o fim da doação empresarial, que é uma boa coisa para o combate à corrupção, realmente. Então a Lava Jato é uma operação muito danosa, mas não há mal que não venha bem, eu acredito nisso. Então tem duas coisas que resultaram da Lava Jato, direta ou indiretamente: a primeira delas é essa história de que eu acho que contribuiu para acabar com a atuação empresarial [nas eleições]. E acho que delimitou, que os pastores, que eu chamo de vendilhões do templo, foram todos para longe de nós, da esquerda brasileira. Algo que eu defendo e sempre defendi. E o PMDB foi junto, o Temer e esse povo todo com quem o PT se juntou, foi tudo embora com a Lava Jato. Eu sempre defendi que essas pessoas, os pastores vendilhões do templo que hoje estão todos com Bolsonaro, eu sempre achei que eles nunca poderiam estar ao nosso lado. Eles sempre foram nossos adversários, adversário da esquerda e, portanto, do povo brasileiro. Então a gente nunca poderia ter disputado o apoio deles, como aconteceu desde 2002, principalmente em 2010. A eleição de 2010 a gente disputou com o PSDB quem ficava com pastor tal.

Mas assim, a gente foi vendo que a Lava Jato tinha lado e que o objetivo da Lava Jato era perseguir o PT. E aí começa o nosso desconforto. A minha grande crítica à Lava Jato é o fato de eles terem concretizado todas as nossas teorias da conspiração: que eles estavam agindo para destruir a indústria nacional e beneficiar a indústria dos Estados Unidos, a indústria estrangeira de forma geral. Isso é verdade, verdade verdadeira. Porque quando a gente começa a questionar a Lava Jato, dizia-se, como teoria da conspiração, que o objetivo da Lava Jato era destruir a Odebrecht e a indústria da construção civil brasileira para beneficiar a Halliburton, grande rival da Odebrecht no mercado internacional. Hoje, se você olha, essas empresas brasileiras não podem mais prestar serviço para a Petrobras. E quem é que está prestando serviço para a Petrobras? A Halliburton. Então ninguém pode, a Camargo Corrêa não pode, a Odebrecht não pode, e quem pode é essa empresa estrangeira. E ainda hoje as pessoas se sentem com um medo ou talvez não queiram se comprometer em defender a Odebrecht, que é uma empresa que era uma das maiores empresas de construção civil do mundo. A Lava Jato destruiu a Odebrecht. A Odebrecht precisava ser defendida. O jeito que eles [força-tarefa] fizeram aqui não se faz em nenhum país sério. O correto seria preservar a empresa. Você afasta os diretores e preserva as empresas. É assim. A própria Halliburton já foi acusada de corrupção nos Estados Unidos, várias vezes, e continua aí. Outro aspecto é que algumas, e isso eu cheguei a publicar, algumas das coisas pelas quais os executivos das empresas de construção civil e o Lula são acusados, nos Estados Unidos não são crime. Então o fato de um ex-presidente viajar promovendo a Odebrecht não é crime nos Estados Unidos. E nem aqui no Brasil. Não é crime. Então não se explica, é inexplicável. O Moro e o Dallagnol jamais conseguirão explicar porque eles destruíram todo o setor da indústria da construção civil brasileira. Eu não estou entrando nem na política, você está vendo? Eu estou questionando porque eles destruíram milhões de empregos. Só na Odebrecht, de empregos diretos, são 200 mil trabalhadores, 200 mil empregos. Você destruir uma empresa brasileira por ódio a um partido?! Isso em outros países seria considerado alta traição. Você destruir uma empresa, todo um setor da economia brasileira, para beneficiar indústrias estrangeiras? Isso seria considerado alta traição, o Sergio Moro e o Deltan Dallagnol seriam acusados de alta traição. Essa é a verdade, essa é a verdade. Para fazer um serviço sujo, que levou o bolsonarismo ao poder e prender uma pessoa injustamente, porque vasculharam a vida do Lula inteira e só encontraram uma porcaria de um apartamento fajuta. O Bolsonaro, qual membro da família Bolsonaro que passaria pelo escrutínio que o Lula passou sem ter pelo menos 10 imóveis pagos com dinheiro vivo? E isso não aconteceu. Pelo contrário, o homem que fez isso com o Lula é cupincha do Bolsonaro. É o lambe botas do Bolsonaro. Ambos, tanto o Moro quanto Dallagnol, são lambe botas do Bolsonaro. Levaram o Bolsonaro ao poder, são responsáveis por tudo de ruim, corresponsáveis por tudo de ruim que aconteceu no Brasil nos últimos quatro anos. São corresponsáveis, inclusive, pela morte das pessoas na Covid-19.

MLJ: E houve algum momento em específico que fez você visualizar que a Lava Jato não era uma operação imparcial? Teve alguma situação em específico que deu o primeiro ‘clique’, digamos assim?
CYNARA: Foi isso, foi a gente perceber que a coisa ia só para um lado. Foi muito antes da Vaza Jato, a Vaza Jato nem tinha surgido no horizonte. E eu questionava no Twitter: ‘Mas só vai pro lado do PT’. Eles diziam: ‘Mas prendeu o Eduardo Cunha’. Prendeu o Eduardo Cunha para poder fazer de conta que não era [parcial e partidário]. Mas depois na Vaza Jato a gente viu que os tucanos eram blindados. ‘Ah, mas os tucanos não estavam no poder no Brasil’. Uai, mas os tucanos também receberam doações de campanha! O próprio Instituto FHC recebeu doações da Odebrecht. Então não teve um momento específico, foi um acúmulo de coisas que você via que o negócio estava se direcionando. Se você for olhar meus tweets antigos sobre a Lava Jato, as vezes até me acusam de ser lavajatista, porque, como todo brasileiro, a gente tinha a esperança que fossem passar a política a limpo e que não ia proteger ninguém. Se fizessem uma coisa generalizada na política, para que a gente ia proteger alguém? Agora, você vê fazendo só de um lado, você vê revolvendo a luta, a perseguição só do Lula? Como é que você não se indigna de um negócio desse?

MLJ: Eu me recordo até um texto seu em que, a partir da histórica foto em que Aécio Neves e Sergio Moro aparecem confraternizando e rindo juntos num evento, você faz um paralelo, uma sugestão: ‘imaginem se fosse o Lula no lugar do Aécio Neves rindo como juiz’
CYNARA: É. Sobre essa relação promíscua que o PT estabeleceu com as empreiteiras, por isso eu digo que teve um lado positivo, porque agora não tem mais isso. Olha o ciclo que era… Você sabe que essa história do PT aceitar doação de empreiteira tem um período, né?! Ele a partir de um ano decide começar a aceitar doação de empreiteira e aí começam os problemas internos com as pessoas que depois fundariam o PSOL por conta disso. Claro que isso proporcionou que o Lula chegasse ao poder, porque com pouco dinheiro fica muito mais difícil. De um lado tem doações de empreiteiras do outro não tem… Eu entendo que o PT tenha feito a opção de fazer igual todo mundo fazia. Mas ali é um divisor de águas pro PT e uma promiscuidade que eu não gosto e que eu agradeço que tenha acabado, porque não é bom para a democracia. As pessoas que estudam corrupção falam que a doação de campanha leva à corrupção. Você acha que uma empreiteira vai doar dinheiro para um candidato ao governo e depois não vai querer receber as obras? Isso não existe, é ingenuidade pensar que isso não vai acontecer. Então acho que ali se cortou um ciclo. Mas o custo disso foi muito alto, o custo foi a destruição de um setor da indústria da construção civil inteiro.

Teve um episódio que foi muito emblemático da perseguição da Lava Jato, que foi a prisão do [Luiz Fernando] Pezão, governador do Rio [de Janeiro]. Foram perguntar para ele sobre Rio de Janeiro e crise e aí ele fala assim: “o problema do Rio de Janeiro de caixa, o problema do Rio de Janeiro de desemprego, a crise social do Rio de Janeiro, a culpa é da Lava Jato”. Ele fala “a culpa é da Lava Jato”. Um mês depois o Pezão foi preso. Então ninguém podia criticar a Lava Jato ou era preso. E não se comprovou nada contra o pezão, o que é que o Pezão fez? Quem roubou foi o Sérgio Cabral, ali ficou comprovado. O cara comprava joias e tal, pirou na batatinha. Agora, o Pezão? O que o Pezão fez? Falar mal da Lava Jato e é preso? Ele foi preso um mês depois de falar mal da Lava Jato, foi uma coisa de louco. Para mim, é um episódio emblemático. Em 30 de outubro de 2018 ele disse: “O que quebrou o Rio foi o petróleo, a Lava Jato, a queda da economia, tudo junto. A Lava Jato quebrou o Rio de Janeiro, entenderam?”. Aí, exatamente um mês depois dessa entrevista criticando a Lava Jato o Pezão foi preso.

MLJ: Até pela tua experiência nas grandes redações, como avalia a atuação da imprensa no período de auge da Lava Jato e do lavajatismo, entre 2014 e 2018?
CYNARA: Olha, hoje mesmo eu estava pensando: quando é que os meus colegas que hoje eu estou respeitando – estou respeitando a Miriam Leitão, estou respeitando a Vera [Magalhães] pela postura em relação ao Bolsonaro -, quando eles vão fazer um mea culpa em relação ao Sergio Moro, que é um imbecil? Por onde quer que você olhe, ele é um idiota completo. O filho da Miriam [Vladimir Netto] fez um livro sobre o Moro… Ele não tem vergonha, não, olhando o Moro hoje falando das urnas eletrônicas? Eu pediria desculpas, cara, tranquilamente. Diria ‘me enganei com essa pessoa’, sabe? Isso ia fazer bem. Eu acho que faria bem pro Vladimir Netto pedir desculpas pelo livro que ele escreveu sobre o Moro, porque o personagem não vale um livro. É um personagem triste figura, sabe? Ele é despreparado, ele é burro, intelectualmente limitado, ele tem deficiências cognitivas, o Moro. Nunca, ele nunca mereceria um livro de um jornalista. Eu, se fosse o Vladimir, eu pediria desculpas ao meu público por ter escrito um dia um livro sobre o Sergio Moro. A postura deles, ele [Vladimir] inclusive cobriu a Lava Jato diretamente, numa foto onde eles celebram a prisão do Lula, ele está lá junto com outros colegas do Estadão, da Folha e tal… Cobrindo a Lava Jato eles se comportaram como assessores de imprensa. Eles não fizeram jornalismo. Eles foram asessores de imprensa da Lava Jato. Não estou diminuindo os assessores de imprensa, não, porque eles são pagos para isso. Mas eles agiram como se fossem assessores de imprensa, porque eles recebiam do procurador, do Moro, do Deltan ou de outros da força-tarefa uma “denúncia” e não tinham nenhum tipo de trabalho a não ser reproduzir o que lhes tinha sido passado. Era uma espécie de release, isso se chama release. Você recebe uma informação e escreve em cima daquilo. Não havia checagem, não havia critério ético, porque o que foi aquela história dos setoristas da Lava Jato darem publicidade, escreverem sobre uma conversa particular entre a Marisa [Letícia, esposa falecida de Lula] e o seu filho? Entre a Marisa e o filho dela, uma conversa privada, vazada ilegalmente. É muito… é vergonhoso para nossa profissão o que fizeram. Essa parte da Marisa com o filho me choca muito e o fato de não ser jornalismo investigativo algum, algum. Não há jornalismo investigativo nas matérias da Lava Jato. O que há é confecção de release. Eles iam lá, o cara passava a informação e eles reproduziam no jornal acriticamente e sem nenhuma apuração extra, o que qualquer jornalista sério faria.

MLJ: Inclusive a Christianne Machiavelli, que era asasessora de imprensa da Justiça Federal de Curitiba e trabalhou sozinha no departamento de comunicação da Lava Jato por um bom tempo, ela deu uma entrevista ao The Intercept dizendo que ‘a imprensa comprava tudo’, o que era passado já era tomado como verdade e reproduzido acriticamente…
CYNARA: Ela, que era assessora de imprensa, foi mais jornalista do que eles. Foi mais repórter do que eles. Eles pareciam estar fazendo o trabalho dela.

MLJ: E em abrirl de 2018 você publica um texto marcante, um editorial no qual você defende que o Lula não deveria aceitar a prisão e deveria deixar o país e pedir asilo político. Hoje, com o privilégio de poder olhar retrospectivamente, você acha que o Lula tomou a decisão certa em ficar no Brasil e encarar os 580 dias de prisão ilegal?
CYNARA: O lado afetivo não gosta nem de imaginar que o Lula passou 580 dias na prisão. Porque é tão injusto… Desde 1978 a única coisa que o Lula fez foi lutar por um Brasil melhor para todos. A única coisa que o Lula fez nesses últimos 40 anos foi lutar por um Brasil melhor para todos. O crime de Lula foi lutar por um Brasil melhor para todos. Então eu considero de uma injustiça… A injustiça é uma coisa que machuca muito, né? A injustiça com a Dilma, a injustiça de prenderem o Lula. Até hoje eu fico pensando se o Lula tivesse ido pro Uruguai com a Dona Marisa, sabe? Mas ele tomou essa atitude e, politicamente, pelo visto, foi a atitude correta. O Lula estava certo. Mas eu não me conformo que o Lula tenha sido preso, não me conformo. Não me conformo até hoje de um desclassificado como o Bolsonaro atacar o Lula dessa maneira. É injusto. Um cara como o Lula nasce um a cada 100 anos. Isso é um líder, um líder assim… É muito triste o que fizeram com o Lula, é muito revoltante.

MLJ: E quais você acredita que foram e quais acreditam que ainda serão os impactos da Lava Jato, em especial tendo em vista que o Paraná colocou Sergio Moro e Deltan Dallagnol, dos dois principais nomes da operação, no Congresso Nacional?
CYNARA: Meu Deus… E são os três, né, amigo?! Porque teve em São Paulo a outra [Rosangela Wolff Moro], a outra burrinha. Oh, mulher infantil, burra e infantil, e foi eleita. Ela conseguiu enganar os paulistas também.

Ah, eles vão ficar lá falando, defendendo o Bolsonaro, defendendo a extrema-direita. Com a derrota do Bolsonaro [na eleição presidencial essas pessoas vão ficar na oposição e não duvido que a mídia continue dando voz a eles. Mas eu acho que são pessoas muito desmoralizadas no cenário nacional e acredito que vão ficar mais desmoralizadas a partir do momento em que essas coisas sobre a Lava Jato ficarem cada vez mais claras na cabeça da população, com o trabalho que vocês [Museu da Lava Jato] estão fazendo aí.

O filme do Grupo Prerrô sobre a Lava Jato [Amigo Secreto] não deixa pedra sobre pedra. Aquela parte da gente ter pago pros Estados Unidos dinheiro da Petrobras e pouco se saber disso? Como que a gente pagou aquela grana pros Estados Unidos? E o PT tem que fazer o que a França fez e criar uma lei para não possibilitar que uma empresa brasileira pague dinheiro para país nenhum. Tem que fazer, que a Carol Proner fala dessa lei, que impede que uma estatal brasileira indenize o governo dos Estados Unidos. Nós temos que ter essa lei, aquilo ali é um absurdo, é revoltante a gente saber disso. Eu não sabia, agora imagine o público em geral?

MLJ: E como que foi para você lidar com os ataques pessoais ao longo desse tempo, até porque você sempre teve uma presença muito forte nas redes sociais e, inclusive, apareceu na ‘lista negra’ do governo Bolsonaro?
CYNARA: Olha, eu confesso a você que essas questões dos ataques já me atingiram mais no começo. Depois a gente vai ficando safo, vai criando o couro grosso e… sei lá, desencana, silencia. Hoje em dia não me atinge mais. Hoje em dia o que me atinge são o que eu considero equívocos da nossa própria esquerda, algumas posturas que são incômodas para mim. Não aceito a existência de stalinismo no século XXI. Então sempre tenho problemas com os stalinistas. Eles existem, estão ainda aí. Eles sempre me atacam em grupo, em bando. Eles dizem que eu sou anticomunista porque eu sou antistalinista, como se uma coisa fosse sinônimo da outra, e não é. Pelo contrário, Stálin matou comunistas. Então esse campo aí, esse campo dos ataques dentro da esquerda, me incomoda mais do que ataque de bolsonarista, que para mim é natural. Se eles estão atacando é porque está funcionando. Agora, os ataques de dentro… Outro dia tive um dissabor horroroso. Publiquei um vídeo da Companhia das Letras com as pessoas abrindo um livro e eu fui atacada de uma maneira brutal por esse pessoal, brutal. Dezenas, centenas de pessoas me xingando por causa de um vídeo com um livro. Eu realmente… Isso sim me incomoda. E aí como eles estavam me atacando por causa do vídeo, o Rodrigo Constantino entrou na onda e aí eu passei um dia inteiro sendo atacada por esse setor da esquerda stalinista – que eu vou dar o nome, pessoal do PCB [Partido Comunista Brasileiro] – e fui atacada também pelos bolsonaristas. É onde se encontram as pessoas que têm dificuldade de conviver com o contraditório. Você atacar uma pessoa porque faz isso [abre um livro], sabe? Pelo amor de Deus… O vídeo nem era meu, era da Companhia das Letras. E eles xingavam as pessoas que apareciam no livro: “Quem são esses burgueses do Leblon?” Os maiores escritores brasileiros, tinha o Chico Buarque… Isso dá tristeza, viu? Dá tristeza ver que uma parte da esquerda não evoluiu ainda, ainda está perdida em dogmas do passado. A União Soviética! Qual o tipo de aporte que a União Soviética tem para o Brasil de 2022, do século XXI? Nenhum, não tem nada a ver e nem nunca teve. Meu site se chama Socialista Morena porque eu nunca acreditei nisso. O Darcy [Ribeiro] falava num socialismo nosso, sem seguir modelos preexistentes, muito menos modelos falidos preexistentes. E não falam de outros lugares, historicamente não falam, não falam da Iugoslávia de Tito, que tem experiências interessantes que estão sendo resgatadas agora, de trabalho, sobre relações de trabalho dentro das empresas. Então fica muito parada, restrita, só naquilo… Não gosto. E daí vai sempre ter pau entre eu e eles. Não posso fazer nada.

MLJ: E como você definiria o que foi a Operação Lava Jato, o que é a Operação Lava Jato?
CYNARA: Acho que a Lava Jato foi uma operação de lesa-pátria. É isso o resumo, lesa-pátria. Foi isso que aconteceu com a Lava Jato. A Lava Jato tirou milhões de empregos, acabou com um setor inteiro da construção civil e fez uma perseguição injusta a um líder operário. Jamais eu poderia ser a favor disso.

MLJ: E para quem quiser acompanhar mais sobre o seu trabalho, quais são os veículos, os canais com os quais tem contribuído?
CYNARA: Eu tenho o meu blog, Socialista Morena, tem a página do Facebook do Socialista Morena, tem o meu perfil no Twitter @cynaramenezes e no Instagram eu tenho dois perfis, o do Socialista Morena, que é mais profissional, e um perfil pessoal, que é o @cynaramenezes1967.

gustavo conde

Definir quem é o caçapavense Gustavo José Conde não é uma tarefa fácil. Linguista por formação, professor de português, músico, escritor, jornalista, comentarista e “desinfluenciador digital” são algumas das definições possíveis. Mas talvez o que melhor caiba é afirmar que se trata, como o próprio afirma, de um sujeito atravessado pela linguagem, pela linguagem humana, que está sempre se divertindo e divertindo aos outros, mesmo nos momentos mais difíceis.

Filho de uma professora e de um empresário apaixonados por música e política, Conde esteve desde sempre cercado pela cultura. Autodidata, já na adolescência começou trabalhar como músico na então vivíssima noite de Caçapava, no interior de São Paulo, e a partir dali foi expandindo seus interesses e horizontes para outras áreas, como a da literatura.

Começou a cursar Jornalismo (outra de suas paixões) numa universidade particular, mas acabou tendo de largar o curso pois não tinha condições de arcar com as mensalidades. Foi então tocar a vida, trabalhar, até que conheceu o curso de linguística na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Aprovado no vestibular, viveu intensamente a vida acadêmica e se especializou em teorias do humor e história da representação do riso, concluindo o Mestrado e trabalhando com áreas como análise do discurso, psicanálise e semiótica.

Virou professor e permaneceu dentro da sala de aula até 2015, que foi quando a vida política nacional começou a virar de cabeça para baixo e ele resolveu entrar com tudo no debate público brasileiro trazendo um toque especial às discussões relevantes para o país. “Tenho uma outra maneira de abordar os temas, diferente de analistas, de cientistas políticos, de jornalistas. Eu vejo por outro viés, eu trago muito a arte para dentro da minha reflexão, a música, e é isso. E eu estou me divertindo também [risos], eu não paro de me divertir”, comenta ele, que define a Operação Lava Jato como um dos capítulos mais tenebrosos da história brasileira. “Acho que ele [Lula] é a prova mais cabal, mais evidente do fracasso da Lava Jato e de como eles estavam equivocados, brutalmente equivocados. Ele é o novo presidente brasileiro, ele está sendo celebrado no mundo inteiro. Eles estão humilhados, os lavajatistas de turno estão todos agora humilhados. Nós temos a responsabilidade, no novo ciclo democrático, de consolidar essa humilhação.”

As 10 evidências da perseguição de Moro a Lula

Em 4 de dezembro de 2018, a ministra do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia negou habeas corpus ao ex-Presidente Lula. Tratava-se do julgamento de ação em que a defesa do ex-Presidente demonstrara a parcialidade de Sérgio Moro nas decisões até então proferidas pelo hoje ex-juiz. Lúcia considerou a tese de perseguição política e de comprometimento subjetivo de Moro “extremamente frágil”.

Mesmo que já se tenha passado um mês desde aquela declaração infeliz e descolada da realidade, ainda é tempo de mostrar ao público o que a ministra Cármen Lúcia não enxergou ou não quis enxergar nos autos do processo.

São, afinal, evidências adicionais de que o Judiciário brasileiro vem modulando a velocidade de suas decisões ao calendário político.

E para não sermos injustos com a ministra – vale dizer – é importante registrar que, antes dela, o relator Edson Fachin votou de modo semelhante, mas deste não se esperava outra coisa – uma vez que sua inflexão leitora na compreensão da semiologia jurídica assombrou o próprio mundo da magistratura.

A ausência é a forma mais poderosa de presença

Depois de tantas vezes que escrevi sobre Lula, tantas vezes que deixei a emoção tomar conta do meu texto, tantas vezes que fui buscar no âmago da história uma cifra, um sentimento, um fato, uma cor que desse a dimensão deste agente máximo da democracia, depois de tantos textos, esperanças, chamamentos, alertas, celebrações, relatos e contenções narrativas para controlar o ímpeto ou o ceticismo, no eterno jogo das acelerações e desacelerações que gerencia nossa percepção de mundo, vejo-me diante do impasse de testemunhar o momento fatídico de uma prisão criada para alimentar os desígnios fascistas do prolongamento do golpe de estado que parasita o nosso sistema político.

ão é fácil escrever diante de mais uma ruptura social em flagrante desacordo com o ordenamento jurídico. Ontem, o Brasil parou. Ontem, o Brasil deixou sua habitual indiferença de lado e mergulhou no espírito daquele que encarna a síntese de sua história, na personagem principal de todo e qualquer roteiro que se possa redigir a partir de todo insumo social desta terra. O Brasil entrou em vigília e está em modo de vigília. Uma vigília diferente, uma vigília de um povo inteiro, uma vigilia que pode demarcar, afinal, a nossa alvorada como nação interrompida, sufocada pelo próprio esplendor de seu berço escravocrata.

A palavra ‘vigília’ tem um significado muito preciso, para além de sua acepção clássica, de mobilização quase religiosa. Nos estudos da psicanálise, ‘vigília’ se opõe a ‘onírico’, a dimensão que representa o mundo dos sonhos, o mundo do inconsciente, o portal do sono profundo.

A violência burra das elites aprisionou Lula

A gente vê juízes e procuradores com salários milionários somados a um pacote absolutamente indecente – e ilegal – de auxílios e lamenta do fundo da alma democrática o que houve com o

Brasil. Esse é o nó. E é esse nó que será desatado, mais cedo ou mais tarde, com urna ou sem urna, com sangue ou sem sangue, com lei ou sem lei. Lula seria a chance de eles terem uma transição relativamente suave para a realidade ética que lhes falta.

A corrupção folclórica no Brasil migrou do executivo para o judiciário. Percebam que eu falo da “corrupção folclórica”, aquela que vai para a boca do povo. Mais um ou dois anos e o grande estereótipo de corrupto no Brasil não será mais o político habituê que transporta mala de dinheiro no nariz da imprensa e do Brasil noveleiro. Será o integrante do judiciário que legisla em causa própria e que acumula salários milionários.

O fato de um juiz ganhar dois milhões por ano – o maior salário do mundo – começa a se alastrar em esquinas e botecos, que é onde nasce a opinião pública real. O judiciário brasileiro virou uma casta. Eles já têm até dificuldade psicológica de sair às ruas. Transitam com medo porque sabem que usufruem de benefícios imorais. Um bom Dostoiévski seria a leitura adequada para suas pretensões de imunidade ética.

A verdade é que Lula seria a única chance de a elite brasileira, judicial ou não, livrar-se da cólera popular que vai tomando forma diante da violência diária e arbitrária promovida pelo estado. Não se iludam: “povo burro” e “povo quieto” são simulacros estimulados por nossas elites atrasadas, compostas em grande medida por falsos intelectuais. Simulacros que muita gente supostamente esclarecida compra sem questionar-lhes as cifras mais evidentes.

O habeas corpus da democracia

A vitória de Lula no STF foi maior do que se imagina. A lente do ceticismo que, de maneira compreensível nos toma a todos, impediu que assimilássemos sua dimensão real. E quem nos forneceu gratuitamente a “chave” dessa dimensão, ironicamente, foi a imprensa tradicional.

Ela interpretou o resultado com mais acuidade e interesse – e com profunda lamentação. A nossa leitura, acostumada com “derrotas” seguidas, não quis codificar o que estava diante de si: uma vitória espetacular.

A “mera” aceitação deste habeas corpus leva o processo de Lula ao labirinto infinito das subjetividades do Supremo. Isso eleva o cenário das possibilidades à décima terceira potência – o que continua sendo arriscado, mas agora para os dois lados.

Agora, pode-se pedir vista, pode-se adiar, pode-se enxertar, enfim, pode-se criar um debate sem fim. Sérgio Moro sofreu o seu maior cala-a-boca até aqui e ficou com a broxa na mão. A imprensa sabe que, a partir deste momento, o STF ficou menos manipulável. Em outras palavras: a infinitude narrativa migrou da Lava Jato para o STF.

Entrevista exclusiva do museu da lava jato

Vozes Dissonantes: Gustavo Conde

MUSEU DA LAVA JATO: Qual o seu nome completo, onde você nasceu, em qual ano, qual o seu signo…?
GUSTAVO CONDE: Meu nome completo é Gustavo José Conde. Eu nasci na cidade de Caçapava, interior de São Paulo, em 1973. Eu sou de libra, nasci em 1º de outubro de 1973. O José do meu nome vem do meu avô. A minha mãe, eu lembro que se falava isso em casa, gostava de Gustavo e aí acho que meu pai pediu para colocar o José. O Conde é o sobrenome do meu pai, que nasceu no Brasil, mas é filho de portugueses. Meus avós, meu avô paterno, que era o José Conde, veio para o Brasil nos anos 1920, numa leva de imigração. Era para ele ter ido para a Argentina, mas deu algum problema, ele teve de parar em Santos e aí começou a saga desse braço da família Conde no Brasil, porque tem vários outros galhos da família Conde. Mas a família do meu avô tinha uma quinta [propriedade rural] em Portugal, no século XIX. As vezes eu vejo a árvore genealógica, mas é tudo tão distante para mim que eu gosto mais de pensar mesmo é nos amigos e no futuro.

MLJ: E você cresceu em Caçapava mesmo? Como foi a sua infância?
CONDE: Eu cresci em Caçapava. A gente morava num apartamento, que era uma coisa rara naquela época aqui. Era um momento de dificuldade financeira do meu pai, ele teve de vender o apartamento quando eu tinha seis anos e a gente foi para uma casa alugada – eu tenho três irmãos. Mas fui muito feliz, minha infância foi muito bacana. Sempre brinquei muito, me relacionei muito, fiz amizades. Quando a gente foi para a casa alugada eu fiz amizade com todo mundo da rua, a gente brincava demais, jogava bola. E a minha mãe tem uma história: meus pais eram de Paraguaçu Paulista. A minha mãe tinha nascido em Lins, meu pai era de Paraguaçu, e eles casaram lá. Minha irmã mais velha nasceu lá em Paraguaçu, meu irmão mais velho nasceu lá em Paraguaçu Paulista, mas também por uma questão financeira… Meu pai tinha uma empresa de tratores chamada Agricon e era uma empresa grande, era muito dinheiro, ele sempre conta essa história. E meu pai foi roubado por dois diretores do Banco do Brasil. Desviaram um dinheiro que ele tinha para receber e aí faliu a empresa dele, ele teve um problema grave ali com a empresa. Esses diretores, segundo ele me contava, tinham sido presos, mas ele teve de recomeçar. E aí ele escolheu Caçapava porque o sogro dele, o pai da minha mãe, estava aqui em Caçapava, ele era diretor de um banco aqui, o Banco Comercial. O nome dele era Celiano Caçapava, ele tinha adotado o nome da cidade, que era uma tradição na época: você mudava para uma cidade e adotava o nome desse lugar. E aí minha mãe ficou conhecida aqui como Cecília Caçapava, era professora, professora alfabetizadora. Hoje tem uma escola com o nome da minha mãe aqui que se chama Cecília Caçapava Conde, onde o meu filho, Pedro, que tem 14 anos, estuda. Ele está indo agora para o primeiro ano do Ensino Médio e é craque de futebol. Jogou no Juventus, futebol de salão, se destacou muito lá, veio pro Taubaté agora também, se destacando muito, e daqui a pouco a gente vai fazer uma bateria de testes pros grandes times, porque a paixão dele é o futebol. Ele é um cara muito especial, o meu filho.

MLJ: E você, então, ainda está vivendo em Caçapava…
CONDE: Eu estou vivendo em Caçapava. Eu tive minha vida em Campinas, porque fui fazer Unicamp. Passei 12 anos em Campinas, fiz lá graduação, mestrado e doutorado. Não conclui o doutorado. E morei em São Paulo um tempo, no Rio de Janeiro também. O Lula estava preso ainda quando eu estava no Rio de Janeiro. Eu estava muito integrado lá no Rio, mas aí veio a pandemia, uma série de coisas, eu acabei voltando para Caçapava e como a gente começou a trabalhar sempre remoto eu me instalei, fiquei novamente aqui e fiquei bem. Para o trabalho que eu faço não preciso estar presencialmente, então aqui é uma espécie de porto seguro para mim. Mas eu tenho planos de ir para São Paulo, para Brasília, pro Rio, para voltar a fazer os encontros presenciais, eventualmente fazer um podcast presencial.

MLJ: No caso do teu filho, a paixão dele é o futebol. E você, como foi sua infância? Quais eram seus hobbies, seus sonhos?
CONDE: Eu comecei na música muito cedo. Eu sou músico profissional já de muito tempo. Meu pai foi cantor de orquestra quando era mais jovem, mas aí abandonou essa carreira, foi ser empresário. Mas eu sempre convivi com muita música em casa. Meu pai tocava bandolim também, aí eu aprendi bandolim sozinho, tinha seis anos de idade, e passei a tocar o bandolim, brincava. Aí fui crescendo, passei pro violão e fui sozinho me virando, aprendendo, tocando as músicas que eu ouvia na época e estudando. E sempre teve muita música de qualidade em casa. Muita música clássica, muito jazz, música brasileira. Ouvia-se muita coisa boa: Chico Buarque, Caetano, Gonzaguinha… Então eu tive essa educação musical desde muito pequeno e fui trabalhando essa coisa do violão, de cantar, e com 14 anos eu já cantava na noite. Com 14, 15 anos, eu já me apresentava em alguns bares, tinha uma noite muito boa em Caçapava. Hoje não é mais assim, mas nos anos 1980, 1990, era uma cidade que tinha um charme especial, tinham vários bares, aqui tem muita cultura, muito artista aqui na cidade, no Vale do Paraíba, que é um lugar muito rico nessa questão da cultura. E a música me deu uma coisa muito importante, porque quando você veste a sua vida com a questão da música, você vai aprendendo, você vai comprando métodos, vai ouvindo mais músicas, você vai expandindo. Então ela expande para todos os lados, ela expande pra literatura, pro cinema, e isso foi acontecendo comigo. E eu fui tocando, me apresentando, tive várias bandas na adolescência, tocava rock, tocava reggae, tocava blues, tocava de tudo. Mas eu fui sempre trabalhando uma questão mais individual, eu gostava de me apresentar sozinho, violão e voz. E aí a MPB foi ficando muito forte. Então eu fui me apresentando sozinho, com banda, e fui tocando a vida.

Eu ganhava, conseguia tirar um dinheirinho tocando, e aí comecei a investir em literatura, em livros, comecei a comprar livros. Eu ouvia muito a FM Cultura de São Paulo, que está aí até hoje, e a FM Cultura é uma referência para mim porque eu consegui ali conhecer música do mundo todo. Tinha um programa lá que chamava “Música do Mundo”, então você tinha música indiana, música do Tibete, música chinesa, música russa, música africana, celta… E aí eu fui adorando essa coisa de ouvir as músicas, de conhecer as histórias. Música experimental, poesia, rádio novela… A FM Cultura/Fundação Padre Anchieta é uma coisa muito especial, né? É um dos núcleos de cultura mais importantes do mundo, naquela época a gente já sabia disso. E aí eu fui gravando tudo isso, montei um acervo de mais de mil fitas que eu já doei para outros, dei. Porque a gente começa a ter música em pen drive e tal, mas eu me arrependo, porque eu amava aquelas fitas K7. Tinha um programa de jazz que eu gravava, gravava muita coisa também da TV para assistir depois: o programa “Ensaio” do Fernando Faro, o programa do Jô Soares de rádio, que era maravilhoso, na FM Eldorado em São Paulo, eu gravava também. Eu levava isso muito a sério, eu ficava em casa para gravar e, quando eu não podia, pedia pro meu pai gravar. Eu ia tocar na noite e pedia pro meu pai virar a fita. Meu gravador gravava, mas tinha que virar a fita no meio do programa, aí eu pedia para ele virar a fita para mim [risos].

Eu tô contando tudo isso porque foi coisa importante para mim naquele momento, era uma coisa que era muito sério, eu gostava, eu estudava, ouvia os clássicos todos ali, Beethoven, Mozart, aí ia pro livro para saber a história, biografia deles, a questão técnica, composição e tudo o mais. E ao mesmo tempo estudando. Eu entrei no Jornalismo numa faculdade aqui de Taubaté, UNITAU, mas no segundo ano eu saí, não estava conseguindo pagar, era uma faculdade particular. E fui tocar a vida, fui trabalhar, e um belo dia falei “vou prestar linguística na Unicamp”. Eu estava já com 25 anos, adorei o curso, comprei o manual da Unicamp. Estava querendo fazer filosofia, mas vi a descrição da linguística, fiquei apaixonado e foi espetacular, foi a melhor decisão que tomei na vida. Fui fazer o curso de linguística na Unicamp em 2000, o curso era absolutamente espetacular, a Unicamp também é de excelência em várias áreas e na área de linguística muito mais. Era o primeiro ano de graduação em linguística, então tive aula com grandes professores ali: Sirio Possenti; Eleonora Albano; Debora Mazza; Kanavillil Rajagopalan, um professor indiano de pragmática; então a gente teve um acesso muito forte ao que tinha de mais contemporâneo dos estudos da linguagem. A graduação era quatro anos, eu fiz em três de tanta vontade que eu estava, estava sedento por conhecimento, e entrei direto no Mestrado. E fazendo matérias na literatura, porque era junto ali. E aí eu estava muito feliz, estava como pinto no lixo. O Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp é maravilhoso. É um Instituto pequeno, você tem acesso a todos os professores facilmente. Naquela época tinha uma vida universitária muito forte, hoje já não é mais assim. Foi naquele momento que se parou de vender bebida alcoólica nas universidades, o que todo mundo achou um erro, porque você mata a vida social dentro das universidades e fica acumulando uma energia represada. Daí começa a ter restrição de show… Na minha época tinha show todo dia, em todo lugar da Unicamp. Tinha música em todos os institutos, você podia passar e escolher onde ia ficar. E era uma vida muito intensa, uma vida social, de interação, de integração muito intensa. Eu me diverti demais, demais, e fiz o curso com todo o tesão possível.

Eu me especializei em análise do discurso, que é uma subárea da Linguística, que é fantástica. Também uma escolha que eu fiquei muito feliz, sou feliz até hoje por ter feito. Passei a estudar o humor, porque tinha um professor lá, o Sirio Possenti, que se tornou meu orientador e era especializado em estudos de humor. Eu gostei muito, comecei a estudar e também me especializei nessa área dos estudos da linguagem. E é isso.

Depois as coisas foram se desdobrando, eu dei muita aula em faculdade, dei aula no ensino médio. Passei uns 10 anos em sala de aula, sou apaixonado pela sala de aula, mas aí, lá por volta de 2014, quando começa a se organizar essa coisa do golpe, o clima na sala de aula começa a ficar um pouco mais estressante, começa a ter um pouco mais de estresse por essas questões ideológicas. Eu sempre fui muito cuidadoso com isso, sempre soube separar política da aula, sobretudo no ensino médio em que as pessoas são mais sensíveis, mas algumas pessoas não entendem, os pais e etc.

Enfim, não foi exatamente por isso que parei, mas é que daí comecei a escrever muito nas redes sociais, comecei a participar muito de debates, e minha vida acabou mudando para a produção de conteúdo digital com viés político. Eu comecei a escrever texto defendendo a Dilma, defendendo o Lula, trazendo a argumentação, e eu acabei construindo um outro mundo para mim e que é esse mundo que eu habito hoje. Daí eu passei a fazer lives, a fazer entrevistas, continuei escrevendo e tudo o mais e passei nesse momento a participar muito intensamente do debate público nacional, ainda que eu me considere uma figura assim… quase que um penetra nessa história toda. Gosto de me sentir humilde aqui no meu canto, tenho uma outra maneira de abordar os temas, diferente de analistas, de cientistas políticos, de jornalistas. Eu vejo por outro viés, trago muito a arte para dentro da minha reflexão, a música, e é isso. E eu estou me divertindo também [risos], eu não paro de me divertir.

MLJ: E até considerando o fato de você ter começado o curso de jornalismo lá atrás, já tinha essa vontade de estar nessa área, ser um comunicador?
CONDE: Sim. Olha, é incrível. Porque eu devorava todos os jornais desde os 14, 15 anos de idade. Lia a Folha, Estadão, O Globo… Tudo que aparecesse eu lia, sobretudo os suplementos culturais, a parte de política… Eu sempre gostei muito de política, desde pequenininho em casa, porque meus pais eram politizados, assistiam muita coisa de política, a gente discutia e tudo mais. Hoje, inclusive, entrevistei o Leonardo Boff e lembrei que a minha mãe era fã do Leonardo Boff, minha mãe que já não está mais conosco há muito tempo, e falei isso para ele, porque sempre tinha lá o livro do Boff na cabeceira da cama dela. Tinha esse clima em casa, de sabor do debate público, da intelectualidade do Brasil. Sempre tinha revista em casa, Revista Veja, que naquela época era um pouco melhor do que hoje. E aí eu me apaixonei pelo jornalismo porque eu fiz o seguinte cálculo na minha vida: eu falei “olha, eu quero ter acesso a tudo” [risos]. Uma coisa bem, bem ambiciosa. Como é que eu vou ter acesso a tudo, acesso às pessoas? Sendo jornalista. Porque o jornalista tem essa coisa: eu posso entrevistar o [Noam] Chomsky, eu posso entrevistar o Boaventura de Sousa Santos, eu posso entrevistar a Daniela Mercury, o Caetano Veloso… Você tem acesso a todas as pessoas. O máximo que pode acontecer é você não conseguir por alguma razão, mas eu pensava isso naquela época. E você pode falar sobre todos os assuntos sendo jornalista. Claro que você pode se especializar, mas você tem de ter um repertório mais amplo. E aí eu falei “vou fazer jornalismo, acho legal” e aí fui, fui fazer.

Agora, como eu te disse, não deu certo, a gente não tinha condições de pagar e tudo mais. Eu até tive uma bolsa quando eu fiz jornalismo na UNITAU, mas eu interrompi esse processo. Eu tocava bastante, conseguia me manter com a música, então eu falei “bom, vou seguir na música”. Mas chegou um momento que daí eu abri a dimensão para outra paixão, que é a linguística. E assim, as duas coisas, jornalismo e linguística, lidam com a linguagem, é tudo linguagem. Então é isso, eu sou um sujeito atravessado pela linguagem, a linguagem humana, o português, português brasileiro. A linguagem, o Chomsky diria assim, é a linguagem humana: sujeito, verbo e objeto. Ela é universal, ela é igual para todos os falantes do planeta Terra, só tem diferenças de fonética, prosódia, sintaxe, morfologia, mas essencialmente todas são línguas humanas e isso me interessa muito.

E aí eu consegui reunir todos esses meus interesses, jornalismo, música, linguagem. Eu também fui muito pro mundo da psicanálise, estudei bastante, então eu consigo reunir tudo isso falando de Brasil, falando da nossa ferida, da nossa catástrofe e também das coisas bonitas. Por exemplo, Lula. Eu fiquei também conhecido por ser um apaixonado pelo Lula, porque sempre defendi o Lula com unhas e dentes, mesmo quando ele estava nos piores momentos. Aí que eu mergulhei mesmo para o defender e isso implicou na minha vida (e acho que na vida de muita gente), isso teve um preço, que eu também sou profundamente agradecido e feliz por ter escolhido esse caminho. Porque em meados de 2013, em que as coisas começaram a ficar muito cheias de ódio, antipetista e aquele negócio todo, eu fui tolerando até um certo ponto, como todo mundo creio que foi tolerando, falando “não, deixa esses caras falando aí e tal, vou seguir minha vida aqui, não pode contrariar, né”. O antipetista babando ali ódio e eu fui numa linha de não provocar, de achar que aquilo era uma histeria e que ia passar. Eram muitos amigos, muitas pessoas que trabalhavam comigo, tocavam comigo, eram professores colegas de colégio. E aí chegou um momento em que eu falei “chega, eu não vou mais tolerar nada disso” e passei a ser muito contundente e devolvi não o ódio que eles tinham, mas invoquei essas dimensões do humor, da arte, do cinismo, da ironia mais pesada, para produzir textos que machucassem o meu adversário, que machucassem fundo. E não só isso: eu cortei relações, realmente. Porque aí eu olhava o meu filho, o Pedro. Naquela época ele estava com quatro anos de idade, cinco anos de idade. Eu estava vendo o Brasil ser destruído e pensava no meu filho, “o que vai ser do meu filho nesse futuro?”. Essas pessoas que estão circulando ódio, elas estão ameaçando a vida do meu filho. Porque quando ameaça tua vida, você vai lá, você responde e tal. Agora, quando ameaça a vida de uma criança, bolsonaristas, essa loucura toda… E agora a gente viu na prática os bolsonaristas levando – os extremistas de direita, né, porque agora Bolsonaro morreu – os extremistas de direita levando as crianças para servir de escudo numa ocupação de estrada. Então, a partir desse momento, era guerra para mim. Cortei relações, não aceitava mais.

É doloroso, porque você fala assim “querido, não quero mais relações com você”. “Pô, mas a gente se conhece desde criança”. “Não interessa. Estou cortando tudo”. E assim, mais uma vez: foi a melhor coisa que eu fiz na minha vida, porque a partir dali eu tive de trabalhar a minha vida, a minha autenticidade, o meu discurso, essa batalha, enquanto eu via todo mundo se perdendo, sendo levado por efeitos manada e tudo mais, caindo nesse clichê de ser antipetista, aquela coisa irrefletida. E a partir daí a minha vida só melhorou, é incrível isso. Eu fiz novas amizades, evidentemente, e tudo foi se realizando. Por exemplo, no jornalismo eu comecei a ter acesso a todo mundo que eu queria ter, chegando até no próprio Lula. Um tempo chegou um texto meu para ele, chegou para mim que ele tinha lido e tinha gostado e aí eu arrumei um encontro. A partir daí a gente começou a ter não uma relação de amizade, mas uma relação um pouco mais próxima, de ter contatos e tudo mais. Quando o Lula estava na prisão, aí a minha relação com ele foi muito forte, porque eu fazia lives diárias, ele assistia essas lives e ele cobrava, porque eu tenho um estilo de fazer a resenha, o debate. Eu sou para cima, levantar. A coisa tá feia, eu vou lá levanto e trago essa dimensão da ironia, do humor e tudo mais. E ele gostava disso. Então ele me escreveu naquele momento três cartas e vários bilhetes e criamos essa conexão. E era muito forte, eu me sentia também conectado no sentido de dar para ele uma alegria, pelo menos. Uma hora do dia que ele vai ver a live e que ele vai se divertir, porque a live era um pouco stand up comedy com informação. E foi isso que aconteceu.

Enfim, estou te dizendo o seguinte: eu realizei aquilo que eu queria, ter acesso. Hoje posso convidar o Boaventura de Sousa Santos para fazer uma entrevista, o Leonardo Boff, artistas, muitos músicos também. Eu tenho a felicidade de ter muitos músicos que acompanham a live e que acabam aparecendo para mim para fazer uma entrevista depois. São músicos que sempre admirei. Teve uma vez, quando estava no Rio, eu fui… O Itamar Assiere, que hoje está tocando piano com o Chico Buarque – está substituindo o [João] Rebouças, que acho que ficou doente, eles deram um show em Porto Alegre agora -, e o Itamar Assiere acompanhava as minhas lives. A gente se aproximou pelo Facebook, pelas redes, e quando eu fui pro Rio a gente combinou de se encontrar numa pizzaria perto do Leme. E aí vários outros músicos foram lá, que curtiam a esquerda e tudo mais. E estava lá o Marco Pereira. O Marco Pereira é um dos maiores violonistas do Brasil, que eu sempre admirei, desde pequeno. E eu não sabia que era ele que estava lá, e ele estava lá falando de política e tal, falando que me assistia, não sei o quê. Depois fiquei sabendo [que era ele] e falei “olha que coisa fantástica, né”. Então a lição é essa: quando a gente mergulha naquilo que a gente acredita, tudo acontece. Tudo acontece, você só tem coisa boa te cercando. Então é isso. Eu sou privilegiado nesse sentido, porque também mergulho de cabeça e não ligo muito para consequências, entendeu? Então a coisa foi dando certo.

MLJ: E 2014, que é o ano que você entra de cabeça no mundo das mídias digitais, do jornalismo, é o ano da eleição da Dilma Rousseff contra o Aécio Neves, uma eleição muito acirrada, e é o ano em que nasce a Lava Jato, que a gente tem os primeiros desdobramentos da operação. Teve algum fato, algum fator que foi determinante para você deixar a sala de aula e migrar para a comunicação definitivamente?
CONDE: Eu ainda estava em sala de aula até 2015, se não me engano. Eu dava aula de redação, literatura, gramática para o ensino médio e o ensino fundamental também, em escola particular. Não houve um episódio específico, mas posso lembrar de algumas coisas. Por exemplo, desde que a Lava Jato apareceu, quando a Lava Jato apareceu, muita gente de esquerda celebrou, falou “puxa, corrupção, é contra a corrupção”. Eu participei de alguns debates desses, mas sempre olhando com certa desconfiança aquilo ali. E num dado momento eu percebi, já muito lá atrás, que a Lava Jato era uma fraude. Mas eu não sou especialista, não sou jurista. Eu fiquei com aquela pulga atrás da orelha, eu me lembro. E quando chegou essa coisa de perseguição ao Lula, eu comecei a lembrar do Mensalão, do Zé Dirceu, porque eu também vivi isso, também tive uma percepção específica que o Mensalão foi uma tentativa de golpe contra o Lula que não deu certo. Na verdade deu certo, porque minou um pouco a credibilidade do Partido dos Trabalhadores. E tudo, a imprensa tradicional naquela época, fazendo uma campanha horrenda contra o PT e contra o governo. Mas aí o Lula saiu ileso, porque o Lula também, além de tudo, tem muita habilidade. E assim, ver o Joaquim Barbosa apoiando o Lula hoje foi uma coisa especialmente saborosa. Mas tudo bem, muita gente que apoiou o Lula estava lá naquele momento e em tantos momentos gritando palavras de ódio e de ordem contra o Lula.

Eu me lembro da queda do avião do Eduardo Campos. Esse momento marcou a minha entrada para as mídias digitais muito fortemente. Isso faz oito anos e aquilo para mim, para todo mundo, aquilo não foi um acidente. Aquilo foi… Tinha que se investigar aquilo lá. Ele era um candidato à presidência. Quando morre um candidato à presidência da República num acidente de avião, é básico que se faça uma investigação detalhada, e não fizeram. Ele tinha acabado de dar uma entrevista fantástica pro Jornal Nacional, em que ele se saiu muito bem. Possivelmente ele ia ultrapassar o Aécio Neves naquele momento e o avião caiu no dia seguinte, quando ele sai do Rio para Santos. É uma loucura. E quem não estava no avião? Marina Silva, que hoje está com o Lula. Marina Silva, vice do Eduardo Campos, que tinha muito mais patrimônio eleitoral que o próprio Eduardo Campos e que depois assumiu a candidatura dele. Então essas coisas eu comecei a falar “não, o Brasil precisa entender isso” e comecei a comentar e a coisa começa não a viralizar, mas começa a pegar tração as teses que você apresenta e tudo mais. Então a partir desse momento eu passei a escrever regularmente, sem remuneração. Escrevia no Facebook, mas a coisa foi ganhando uma dimensão sempre mais aprofundada no debate público.

É curioso, o Facebook de 2014 no Brasil era o lugar onde se melhor debatia, é incrível. A imprensa tradicional estava totalmente cega a tudo que estava acontecendo. E as mídias alternativas traziam debates e tudo mais, mas no Facebook progressista, se é que pode se falar que existe um – e eu acho que existiu um, certamente, e ainda existe -, mas ali que… Sabe, os comentários, era um debate profundo. Eu fazia um textão, era sempre grande. Se fosse colocar no jornal impresso era umas duas páginas. Então fazia aquele textão, o pessoal lia, fazia comentários textão também, então você tinha uma massa de texto e debate muito rica, que você não tem isso hoje mais. Você não tem isso mais, porque isso também foi sendo esmagado. Eu mesmo me profissionalizei e textão eu já não escrevo mais, porque exige tempo, exige aquela energia maluca, aquela coisa toda. Estou me dedicando mais a lives, entrevistas. Estou até em dívida com a escrita neste momento.

Então esse é o momento quando eu mergulho definitivamente. E aí eu e o Leonardo Attuch, do Brasil 247, começamos a interagir nas redes e eu fui pro 247 como músico. Ele me viu tocando e falou “pô, vamos fazer alguma coisa aqui com a música” e a gente começou a fazer o “Pocket Show da Resistência Democrática” nos estúdios de São Paulo do 247. Então eu ia lá, levava o violão, a gente fazia um programa de uma hora e homenageava um compositor como o Luís Melodia, o Milton Nascimento… Eu tocava as músicas, fazia um repertório todo e analisava semioticamente as letras de música desse compositor. E a partir dali eu passei a colaborar também na dimensão do comentário político e aí aprendi a fazer live, aprendi a fazer as coisas, estimulado pelo Leonardo também. E aí pegou no breu, é uma coisa assim impressionante. Hoje o volume de trabalho que eu tenho é uma loucura, uma enormidade.

MLJ: E você trabalhou no 247, no Grupo Prerrô, na TVT, no GGN…
CONDE: A história do Prerrô é engraçada, porque é mais recente. O Marco Aurélio de Carvalho fazia as lives do Prerrogativas todo sábado, junto do Fabiano Silva dos Santos e da Gabriela Araújo. Estava super bonita, sempre foi super bonita a produção, o debate jurídico e tudo mais. E teve uns momentos que ele precisava de ajuda técnica e eu falei que para o que ele precisasse eu ajudava. Aí eu fazia para ele, abria o link, colocava eles na tela, eles faziam o debate e eu ficava só no bastidor. E sempre me coloquei à disposição, sem nenhum interesse, sem cobrar nada, porque gostava do trabalho e para mim é muito natural fazer isso. E aí começou a ficar tão forte a nossa interação que eu comecei a moderar os programas. Ele falou “Conde, você precisa aparecer, o pessoal gosta de você”. Aí comecei a moderar e a gente criou essa química. O Prerrogativas foi ficando mais interessante ainda, porque a gente começou a ampliar o leque de entrevistados. Então minha conexão com eles é de afinidade mesmo, de muita afinidade. A gente desempenhou um papel importante naquele momento de o Lula recuperar os direitos políticos. A gente passou a fazer debates intensos, entrevistar ministros do STF e os integrantes do Prerrogativas, com tanta competência… Você pensar em Lênio Streck, Pedro Serrano, Carol Proner, o próprio Marco Aurélio, todos produzindo, escrevendo nos grandes jornais do país o tempo todo, falando da questão a segunda instância, dando uma interpretação qualificada, técnica, sobre as questões do Direito que circundavam a vida do Lula, a perseguição da Lava Jato. Então a gente, o Prerrogativas, construiu um arcabouço técnico e jurídico que permitiu o próprio STF… Evidentemente o STF é soberano, mas o [Ricardo] Lewandowski citava o Lênio Streck quase toda sessão do STF. Então são grandes juristas.

Eu permaneço no 247 hoje como colaborador. O que aconteceu: eu passei uma temporada no 247, com o programa de música, escrevendo quase todo dia, e depois eu comecei a sentir que eu tinha um território para explorar melhor, que era a integração das redes e poder fazer outros, dar outra linhagem editorial para o que eu fazia em vez de estar atrelado ao 247 de maneira exclusiva. Então eu passei a fazer isso, saí do 247 e passei a produzir conteúdo para outros canais. Foi o momento em que me aproximei da TVT. Sempre assim: eu produzo meu conteúdo, no meu canal, e aí distribuo para outros canais, vou distribuindo e vou trazendo as possibilidades tecnológicas no sentido de poder também publicar uma entrevista minha diretamente ao vivo num outro canal. Isso foi avançando, muita gente começou a me procurar para moderar entrevista: pessoal da cultura, pessoal do direito, pessoal dos partidos políticos, sobretudo do Partido dos Trabalhadores, e aí a coisa começou a crescer e eu trabalhando sozinho. Eu fazia o conteúdo, fazia a arte do conteúdo, fazia tudo. E aí a coisa começou a crescer e num dado momento o Leonardo me chamou de novo para ir para lá, mas de uma outra maneira. Ele falou “eu compro seu conteúdo e aí você vem aqui pra gente de novo”. Hoje eu produzo conteúdo para 10 canais no YouTube, todos voltados para política: TV GGN do Nassif, o Opera Mundi, Jornalistas Livres, tem a TV Resistência Contemporânea, a TVT (que se tornou um canal muito grande, que também tem a TV aberta)… Então é essa coisa, eu tenho de me divertir, entendeu? E eu sou inquieto. Então eu vou buscando todos os lugares, aquela coisa do “não coloque todos os ovos na mesma cesta”. Eu vou distribuindo conteúdo em vários lugares. Eu estou trabalhando muito.

Esses dias perguntei pro Fernando Brito, que é um dos grandes jornalistas brasileiros, foi assessor do [Leonel] Brizola, e perguntei como ele conseguia cuidar do blog dele sozinho. Ele falou assim: “é fácil. É só você não ter vida social” [risos]. Eu falei “então é isso, né”. Porque não ter mais vida social é um pouco o meu caso. Mas era tudo, tudo para eleger o Lula. Tudo para a gente voltar a ter democracia. E agora que ele foi eleito a gente também não pode parar porque senão acontece um golpe, acontece alguma coisa. Então é isso. Eu acho que a gente, jornalistas, militância, sociedade brasileira, tem que se orgulhar. Porque essa vitória de agora foi uma vitória contra um sistema de desinformação global perigosíssimo, que ia levar muito mais gente à morte no Brasil e o Brasil ia virar um país periférico, de quinta categoria e sem credibilidade nenhuma. Você vê que só o Lula ser eleito já mudou tudo isso e o Bolsonaro desapareceu das manchetes, parece que está recluso no Palácio da Alvorada.

Então, só para conectar com a minha história, eu sou um sujeito inquieto, gosto de sempre ousar, inovar, correr riscos. Não gosto de coisa muito bem comportada, tanto que nas lives que faço, que é o grande termômetro hoje do meu trabalho, eu solto os cachorros para tudo quanto é lado, eu falo mesmo e falo o que estou sentindo. E acho que é isso o que criou uma empatia e uma conexão com o público. “O Conde fala mesmo, ele sente mesmo aquilo lá, não problema se ele perder alguma coisa com o que ele acredita, com o que ele diz”. Vou citar um exemplo: o hacker de Araraquara, Walter Delgatti. Teve um momento em que as redes queriam porque queriam que o hacker fosse premiado, que ele era o responsável pelo Lula ter sido solto e não sei o quê. Era uma coisa muito forte, coletiva. Eu fui contra essa tese. Falei assim: “Não, gente. Não é isso. Tem muita coisa envolvida”. Pessoal queria heroificar o hacker, o que eu acho um erro. Essa coisa de botar alguém para ser herói é o que aconteceu com o [Sergio] Moro, vai dar errado! E aí o pessoal ficou bravo comigo, a militância. Mas aos poucos eles foram entendendo, até que um dia apareceu aquela coisa do hacker com o Bolsonaro, que daí todo mundo ficou confuso, falou “mas o que está acontecendo aqui?”, né?! Então essa é a característica. Eu erro, até porque quem produz tanta coisa como eu vai errar, vai errar o julgamento e tudo mais. Mas eu acerto bastante também. Por exemplo, a libertação do Lula eu fiz uma live com o Prerrogativas cobrindo a sessão do STF. Os juristas que estavam ali, nenhum deles acreditava muito que o voto do Dias Toffoli, que foi de minerva, ia ser para libertar o Lula. E eu disse: vai libertar. E libertou, aí todo mundo chorou, aquela coisa toda. E ninguém estava acreditando nesse momento que o Lula ia ser solto, mas aí aconteceu e foi impressionante. E a gente está aqui hoje.

MLJ: Você comentou sobre a lembrança que tinha do início da Lava Jato, quando até parte da esquerda chegou a ter alguma esperança com a operação. Quais as tuas lembranças mais remotas com relação à Lava Jato e como eram esses debates dos quais você participava, especialmente ali entre 2014 e 2015, nos primórdios da operação?
CONDE: Naquele momento a gente percebia que tinha um objetivo ali que era chegar até o Lula, mas muita gente não acreditava nisso na época. E quando esses procuradores… Aí entra a questão da linguagem. Quando eu via uma entrevista do Deltan Dallagnol ou do Sergio Moro, eu falava assim: “Não, não é possível, não é real isso”. Porque eu achava eles intelectualmente muito limitados. Quando o… Acho que esse é o momento de inflexão total. Quando o Deltan Dallagnol faz aquela coletiva e mostra aquele PowerPoint, eu me lembro que eu estava online e uma amiga minha, historiadora, mandou para mim pelo WhatsApp e perguntou se aquilo era real. Daí eu fui ver e estava lá na capa da Folha de S. Paulo, era real. Uma capa de PowerPoint precária, com erro de português, uma coisa assim medonha e flagrantemente delirante. Virou meme já de cara. Agora, a imprensa perseguiu, continuou acreditando naquilo. Eu falei “está todo mundo dopado neste país”. E a própria coletiva do Deltan, um sujeito que não tem lastro, não tem conhecimento técnico das coisas. A gente via aqueles procuradores, aquela força-tarefa, todos ali oportunistas, dava para sentir isso. Todos ali querendo ascender, aquela coisa de carreirismo, tirar proveito político e mirando esse fuzil jurídico só para um lado do sistema partidário brasileiro. Então a partir dali eu comecei a ler, estudar um pouco mais o que estava em jogo na Lava Jato. Quando o Lula estava preso cheguei a publicar um artigo mais detalhado, que foi publicado em todas as redes do PT e em vários outros meios que é “10 evidências da perseguição de Moro a Lula”, um artigo importante que saiu em livro agora. E veja: a Lava Jato destruiu o país de maneira dramática. Quantos debates, quantas entrevistas eu fiz, conduzi, sobre a Lava Jato e as pessoas, economistas, advogados, me traziam dados do prejuízo que ela tinha causado? Tem um estudo clássico da USP que fala em R$ 100 bilhões ou R$ 70 bilhões, mas o prejuízo acho que é imprecificável. É uma coisa que tem a ver com emprego, tem a ver com o fim da vida das pessoas, tem a ver com o suicídio, com o assassinato do reitor Cancellier [Luiz Carlos Cancellier de Olivo, da UFSC], com muita violência, com muita pressão. É isso que gerou esse clima de ódio, de guerra no Brasil, é decorrente desse clima de ódio, que foi semeado por setores do mercado financeiro, das elites brancas brasileiras e, consequentemente, dos grandes jornais. E agora está todo mundo fazendo cara de paisagem. Eu sei que, sobre Lava Jato, eu acho que a minha contribuição foi sempre denunciar. Não foi fácil, porque até hoje existe, os próprios advogados me dizem que existe um clima lavajatista em muitos setores da Procuradoria, do Ministério Público, mas acho que a resposta da história está aí. As coisas já tomaram um outro rumo. A minha participação eu acho que é trivial. Eu me lembro muito do Reinaldo Azevedo, pegando como mote. Eu não usei a Lava Jato como mote pro meu set de textos e tudo mais. Ela vinha transversalmente. Eu usei mais a função de defender o legado do Lula e de mostrar como as acusações contra ele eram todas mentirosas. E assim foi a minha experiência com relação a isso naquele contexto.

MLJ: E o caso do Reinaldo Azevedo, aproveitando sua citação, ainda teve um impacto simbólico muito forte, porque ele até então era uma pessoa mais ligada à direita, né…
CONDE: A história do Reinaldo é um capítulo à parte. Mas no caso da Lava Jato ele também muito cedo percebeu que era um engodo aquilo lá. Estou me lembrando agora de alguns momentos. Por exemplo, no Prerrogativas nós recebemos o Randolfe Rodrigues. O Randolfe hoje está com o Lula, pode ser até ministro, muito em função daquela live do Prerrogativas que a gente fez. Porque naquele momento o Randolfe fez um mea culpa, ele se retratou, porque ele foi lavajatista, ele elogiava o Moro, Deltan Dallagnol e tudo mais. E ele se retratou de uma maneira comovente ali com a gente. E a partir dali também o Randolfe ganhou uma força política, porque não é fácil. Quando você reconhece um erro, você fica mais forte. Isso é fatal. Se você continuar escondendo esse erro, você vai se enfraquecendo cada vez mais. E a partir dali o Randolfe criou a CPI da Covid, tudo mais, ganhou muito destaque e passou a ser uma força, realmente, da cena brasileira. Como o Randolfe, outros passaram por nós ali. Porque o Prerrogativas tinha o condão, sem querer fazer trocadilho comigo mesmo [risos], tinha o condão de furar as bolhas, de trazer pessoas não da esquerda para dentro. Por isso também o Prerrogativas tem papel importante nesse desenho que o Lula construiu de amplíssima aliança. Por exemplo, a gente recebeu o Felipe Neto, o próprio Reinaldo Azevedo. Felipe Neto naquela época também se retratou com a gente, pediu desculpa. O vídeo viralisou, é um vídeo clássico, o primeiro em que o Felipe Neto se desculpa do ódio que ele ajudou a propagar naquele momento contra o Lula e contra a Dilma. E depois a gente viu o que aconteceu, inclusive ele se tornou uma das figuras centrais da campanha do Lula nessa reta final. Então eu meio que estava presente. O Forrest Gump, sabe? O cara está presente nos momentos cruciais, nos lugares cruciais, sem ter tanto a ver assim com as coisas. Eu tinha a ver, sempre trouxe essa reflexão, mas eu acabei estando em momentos cruciais, conduzindo o debate sobre a Lava Jato e fico muito feliz que, acho que antes da hora – foi até uma surpresa -, tudo isso mudou antes do que a gente esperava. O Lula foi solto antes do que a gente esperava e ele recuperou os direitos antes do que a gente esperava, a verdade é essa. Foi muito rápido historicamente falando, e graças a Deus. Porque se não fosse assim, a gente estaria hoje num momento perigosíssimo.

MLJ: Como o apaixonado que você sempre foi pelo jornalismo, considerando o trabalho jornalístico que já vinha fazendo, como avalia a atuação da imprensa – em especial da grande imprensa – no período de auge do lavajatismo, entre 2014 e 2018?
CONDE: Foi um papel muito pobre do ponto de vista técnico, e eu falo isso com conhecimento de causa na área da linguagem. Até hoje o jornalismo e esses setores da imprensa profissional – eles gostam de dizer profissionais, o que pode ser até um problema para eles, esse conceito de jornalismo profissional. William Bonner se jacta o tempo todo de fazer jornalismo profissional, mas eu acho que isso é até ruim. Agora, eles não se atualizam do ponto de vista técnico. Quer dizer, da interpretação de texto. Por isso que eu faço sempre um lobby para que políticos e jornalistas se debrucem um pouco mais sobre os estudos contemporâneos da linguagem. Por exemplo, pragmática. Vai ler um livro de pragmática, um livro de análise do discurso, vai ler uma pesquisa, uma tese de doutorado da Unicamp, da USP, sobre política. Se atualizem, sejam ousados. Ousem sair de uma linha editorial degradada, cansada. Ninguém fez isso naquele momento. Eles estavam todos ali, inclusive, tomados por esse ódio, por esse antipetismo, esse antiesquerdismo patológico, que eu acho que finalmente, pelo menos parte da imprensa, tomou conhecimento. Agora, seria… E essa crítica eu sempre fiz, essa é uma especialidade minha. Eu sempre denunciei as manchetes enviesadas da Folha de S. Paulo, até me comunicava com os ombudsmans da Folha. Eu mandava, falava “isso aqui não tem condições”. Lembro que quando o Luciano Huck publicou um texto na página 3 da Folha, eu escrevi para a ombudsman na época, não me lembro o nome, e falei “olha, esse texto aqui, como é que vocês aprovaram a publicação? Tem problemas de coesão, tem problemas de coerência”. Eu fui corretor do Enem por 10 anos, trabalhei com essa questão de coerência, fuga ao tema, adequação lexical, e o texto do Luciano Huck parecia o texto de um adolescente que tiraria 300 no Enem, tiraria nota 3, tal era a quantidade de erros, de problemas de progressão textual. E aí eu mandei. Não são nem erros de lado político, eram desvios da norma culta, da norma padrão. E aí levei isso para ela e ela falou “é, você tem razão, vou levar pros editores”, tudo mais. Acabou que não deu nada, mas eu joguei nas redes. Eu peguei o texto do Luciano Huck e fui perguntando a cada parágrafo, “como assim esse cara escreve isso?”. Ele falava assim: “Errou na mosca”. Como assim “errou na mosca”? Tudo bem você subverter uma expressão idiomática popular. Mas “errar na mosca”? Caracterizavam equívocos graves, que seriam penalizados numa redação do Enem. Esse é o ponto. Eu cheguei a dar aula pros meus alunos com isso. Por isso que muita gente depois… Que tinha o problema ali que muitos eram fãs do Luciano Huck. Eu falei assim: “Como não escrever uma redação do Enem”. E os meus alunos, no Enem, tiravam só 800 para cima. Toda vez que eu levava o Luciano Huck, o texto dele pra sala de aula, era uma alegria, porque era muito engraçado, ele escrevia muita bobagem.

Enfim, isso tudo a imprensa brasileira aceitou naquele momento. Publicou o Aécio Neves, o golpismo do Aécio, sem nenhum espírito crítico, sem nenhum contraponto. Nesse sentido a imprensa independente, o jornalismo independente foi crescendo, foi ganhando substância, porque ele foi também todo sabotado depois do golpe contra a Dilma. Os poucos, era uma coisa ínfima, o jornalismo independente tinha patrocínios miseráveis da Caixa Econômica, era uma coisa ridícula em comparação com o que a grande imprensa ganhava. Mas tiraram até isso. E aí como é que ele se manteve vivo? O jornalismo independente aprendeu a trabalhar com o público, com o internauta. Monetizando o YouTube, monetizando seus sites via Google. E aí foi ganhando substância e hoje aprendeu a viver sozinho, não precisa do patrocínio de ninguém. Ao contrário da grande imprensa. A grande imprensa não sobrevive sem o anúncio direto de setores do governo, do setor público. Quem mama na teta do governo brasileiro é a grande imprensa. Eles não sobrevivem, porque a operação deles é muito cara. Tudo isso é uma questão técnica, precisa fazer uma oficina, se reciclar, ver o que está acontecendo no exterior, senão vai ficando para trás. Então sempre denunciei e agora você tem um movimento diferente. Nós estamos já no meio de um cavalo de pau semântico da operação editorial dos jornais. Porque passamos quatro anos falando para o nada, porque o Bolsonaro não é responsivo, ele não respondia absolutamente nada das interpelações técnicas de governo, e o Lula é responsivo, vai responder. Então a gente vai ter uma mudança. Vai dar a impressão, de novo, de que a imprensa aliviou pro Bolsonaro e vai pegar no pé do Lula. Ossos do ofício, não tem jeito.

MLJ: E quais os momentos que lhe fizeram identificar que havia algo de estranho na operação Lava Jato, que a força-tarefa tinha uma atuação politicamente interessada?
CONDE: A condução coercitiva do Lula. Aquilo foi uma coisa, assim, de uma indignação, de uma indignidade… A gente soube que os policiais invadiram a casa do Lula, reviraram colchão, pegaram o celular da Dona Marisa, pegaram o iPad do neto do Lula. Uma coisa assim que… O Roberto Jefferson foi tratado agora quase como um lorde, foi levado no tapete vermelho. Um cara que jogou granada na Polícia Federal. Naquele momento, e naquele momento toda a imprensa já estava esperando, uma coisa mancomunada da Lava Jato com a imprensa, com a Globo sobretudo. Eles filmaram essa condução coercitiva, inclusive fez parte do filme da Lava Jato ou de um documentário, e aquilo foi chocante, aquilo me chocou muito. Estava tudo preparado ali para levar o Lula naquele momento para Curitiba, tinha um avião esperando lá no aeroporto de Congonhas. Eu sei que, se não fosse a militância do PT ir para a frente da sala em que o Lula estava dando depoimento no aeroporto gritar e protestar, a nossa história poderia ter sido outra, porque poderia ter mudado tudo. Esse ponto específico para mim é o mais chocante. Depois vieram muitos outros. O juiz que despacha 90 mil páginas em três dias, essas coisas malucas. Quando o Lula também ganhou o habeas corpus do desembargador [Rogério] Favreto, e entrou em operação o Moro, que estava de férias em Portugal, Ministério da Justiça e tudo mais. Maior sucessão de ilegalidades que naquela época, inclusive, o STF foi conivente. Então é um crescendo, não tem muito um momento específico. Tem momentos que marcaram, como a condução coercitiva, a própria prisão. Quando o Lula estava em São Bernardo do Campo, o povo não queria que o Lula se entregasse. O Lula teve de ser muito habilidoso, e isso ninguém reconhece. Ele teve de ser habilidoso para poder ir para Curitiba, porque o povo não ia deixar e você poderia ter uma convulsão social no país, e o Lula não queria isso. Quer dizer, é uma figura que está num nível de ética e princípios que pouca gente no mundo chegou.

MLJ: Sobre a condução coercitiva, inclusive, até hoje me recordo de uma matéria da Folha de S. Paulo, publicada no dia seguinte, com os repórteres relatando que estavam já desde a madrugada em frente ao prédio onde o Lula morava. Ou seja, eles já sabiam de antemão do que aconteceria e para eles aquilo [vazamentos] era uma situação normal…
CONDE: Pois é. É o lawfare. Hoje o Brasil é a referência máxima no lawfare no mundo todo, no mundo todo. Você quer saber o que é lawfare, vai estudar o livro do Cristiano Zanin e da Valeska Martins.

Eu lembro também do Guido Mantega, ele estava com a esposa em estágio terminal de câncer, no hospital e a Polícia foi na casa dele. O filho dele teve de ligar para ele no hospital, falar assim “pai, a polícia está aqui, veio para te pegar”. Uma covardia, uma truculência. Se esses procuradores, essas pessoas que trabalharam aí nesse circuito da Lava Jato não forem punidos devidamente, o país vai estar prevaricando. Não pode acontecer isso. Aliás, é o que mais tenho ouvido ultimamente, que não pode ter anistia para ninguém. Pro Bolsonaro, pra família do Bolsonaro, e inclua-se aí Sergio Moro, Deltan Dallagnol e Lava Jato. Tem que ter um prosseguimento, espero que tenha. Porque o brasileiro tem uma tradição de “não, deixa, agora vamos, deixa tudo passar”. Não, acho que dessa vez a gente precisa fazer um basta para tudo isso.

MLJ: E tendo hoje o privilégio do olhar retrospectivo, você vê algum impacto de positivo que a Lava Jato teve no país, no sistema político?
CONDE: Zero, impacto positivo nenhum. A Lava Jato só destruiu tudo. Ela desacreditou, inclusive, o combate à corrupção. Os governos Lula foram os que mais investiram, mais criaram organismos, instrumentos, ferramentas para combater a corrupção no país. E a Lava Jato simplesmente desacreditou tudo isso. Agora vamos ter de fazer um trabalho, de novo, para que a gente possa voltar. Porque combater a corrupção não é com pirotecnia, o Lula já dizia. O combate não pode ter essa associação com a imprensa dessa maneira, porque senão você corrompe o processo. Você tem que trabalhar em silêncio, para ser justo, para poder levantar as coisas. E se vazar uma ou outra coisa, é a exceção, não pode ser a regra. senão você compromete as investigações de qualquer processo, porque as pessoas que são investigadas de corrupção são poderosas. Por que o Lula ficou tanto tempo enroscado com isso, não conseguiu se safar? Porque ele não compra ninguém. Se você tem um acusado de corrupção, ele compra um, compra o juiz, compra não sei mais quem e o negócio morre. O Lula não, ele queria provar a inocência dele na unha, como foi o caso que ele fez.

MLJ: E você acabou até já comentando um pouco sobre na sua resposta anterior, mas quais foram os impactos negativos da Lava Jato para o Brasil? E acredita que pode se afirmar que o bolsonarismo é uma espécie de filho da Lava Jato, uma cria da Lava Jato?
CONDE: Sim, essa tese é muito corrente. Mas acho que tem um cenário que é mais complexo. Eu acho que as universidades brasileiras já têm muitos estudos sobre Lava Jato, bolsonarismo, o jornalismo de conveniência venal brasileiro. As ciências humanas brasileira, a pesquisa brasileira é muito forte nesse sentido, ela só precisa ser mais exposta. Já tem muitos estudos fortes, sobretudo na área da análise do discurso, mas eu acredito que o Bolsonaro é um capítulo à parte na história brasileira. Ele vai ser estudado muito a fundo nos próximos anos e décadas, como o getulismo foi estudado, como a ditadura militar. Então Bolsonaro vai ser estudado, esse processo do Lula também já está sendo muito estudado. Então agora a gente tem que ter um pouco de paciência para… Você falou assim, “agora dá para olhar retrospectivamente”, mas ainda está muito recente tudo isso. Então eu acho que vai demorar um pouco pra gente começar a ter as teses estabelecidas, a primeira família, primeira safra de teses e de hipóteses sobre o ocorrido no Brasil. Você vê que nem 2013 a gente sabe muito bem o que aconteceu. Até hoje ninguém sabe explicar muito bem 2013. Mas é isso, o Brasil é um grande laboratório. Isso agora estimula que a gente pesquise muito mais. Por isso o Museu da Lava Jato é tão importante, para não deixar a memória se perder. Mas acho que não vai se perder, porque isso demarcou realmente um processo deletério para a sociedade brasileira. Eu estou ansioso para ver as pesquisas que virão sobre todo esse momento dentro dos seus vieses, dentro da ciência política, da historiografia, da linguística, da sociologia, da questão da identidade do brasileiro, da permissividade. Enfim, todas as teses que podem aparecer, que vão se cruzar também com a questão do racismo, com a questão da misoginia. A Lava Jato permeia tudo isso. Você vê que são só procuradores brancos. Aliás, se você for ver a Procuradoria do Brasil, Ministério Público, parece que tem 2% de negros. Esse também é outro desafio que a gente precisa enfrentar.

MLJ: E agora, olhando mais para o presente, tivemos Sergio Moro eleito senador, a esposa dele e o Deltan Dallagnol chegando à Câmara dos Deputados. Quais podem ainda ser os impactos do lavajatismo no Brasil?
CONDE: Eu acho que o Moro e o Dallagnol vão ser devorados por Brasília. Eles não têm condições para… Eu converso com parlamentares e todos eles estão felizes de o Moro e o Dallagnol estarem ali, porque eles vão estar agora na cova dos leões, vamos dizer assim. O Moro não tem, ele é inapto politicamente. Ele é um produto e o Dallagnol do mesmo jeito. Como é que eles vão se sair na Câmara? Eles vão ter que mostrar alguma coisa ali e eles têm problemas pregressos. Eu acho que a Lava Jato, o que pode acontecer com essa dimensão que devastou o Brasil? Já tem muita literatura atestando isso. Ninguém leva a sério mais o livro do Sergio Moro herói e da Lava Jato, aquele filme ridículo que saiu, “A lei é para todos”. Isso aí virou tudo chacota, virou tudo meme ao meu ver. Porque a gente sabe que hoje o antibolsonarismo é muito forte. O antibolsonarismo ficou maior que o antipetismo, mas muito maior nesse momento. Agora resta saber se vai dar para produzir, se vai acontecer um antilavajatismo. Eu acho que não, acho que o fenômeno é diferente. Agora, nós temos… Eu acho que o ponto nodal de tudo isso, que é também político, mas ele é da esfera jurídica, como a Lava Jato foi uma das maiores distorções do processo técnico, judicial, jurídico, o Brasil acabou formando uma geração de juristas e advogados muito atenta a tudo isso, que produziu muita tese, muita literatura técnica, do campo, que serve como alerta e como vacina para tudo isso. Vamos falar da produção, por exemplo, do Pedro Serrado, do juiz Rubens Casara, a própria Carol Proner, o Lênio Streck… Então você tem uma somatória de reflexões do direito que faz com que o Brasil seja uma potência da produção teórica do direito neste momento, porque teve uma experiência traumática como a Lava Jato. Então, nesse sentido, Lava Jato ela acendeu uma resposta. E eu acho que essa resposta pode se consolidar, como já começou a se consolidar no STF e na própria prática, nas próprias universidades. A gente sabe que a Lava Jato é um dos temas das universidades de direito no Brasil, e hoje apontada da maneira tal qual ela deve ser interpretada, como um crime. Então eu acho que o caminho é esse, para se contrapor, para saber o legado. O legado econômico já foi um desastre, mas e o legado intelectual e tudo mais? Também é um desastre, mas acho que está em via de ser consolidado nos próximos ciclos, nos próximos anos.

MLJ: E como que você definiria a Lava Jato, o que foi a Lava Jato, o que ela representou e representa ainda?
CONDE: Olha, a Lava Jato foi… A gente ainda vai saber corretamente se houve um núcleo, um cérebro que disparou esse gatilho ou se é uma somatória do processo da característica de mau perdedora da elite brasileira e daí brota um processo desse para criminalizar, demonizar, prender uma pessoa em especial, o ex-presidente Lula. É isso, esse foi o objetivo da Lava Jato. Criminalizar, demonizar um partido político. Um partido político que até hoje representa o povo trabalhador brasileiro. É covardia você ver a popularidade do PT, mesmo nos piores momentos, foi o partido mais popular do Brasil, continuou sendo e agora disparou de novo. 30%, o partido preferido do brasileiro e o segundo lugar nem tem mais direito, porque os partidos políticos se diluíram nesse processo de degradação que a própria Lava Jato semeou. O surgimento disso pode estar atrelado à serviços de espionagem dos Estados Unidos, à questão da Petrobras, isso tudo pode ser ainda investigado, comprovado. São teses e rumores que são muitos fortes, temos dados sobre isso: roubo de notebook da Petrobras, espionagem dentro do governo Dilma, essa associação que a Lava Jato fez com o serviço de inteligência estadunidense. O fato é que o Brasil deixou um câncer desse, que foi a Lava Jato, se instalar, deturpar a ferramenta da colaboração premiada, dentre outras coisas. Então eu creio que, na verdade, a Lava Jato foi uma resposta distorcida, criminosa, à desproporcionalidade política do Lula. O Lula é um cara que é bom de voto. A gente acabou de ver, ele acabou de vencer um sistema internacional de desinformação. Não foi o Bolsonaro que ele venceu. Então a Lava Jato é isso, são os maus perdores. Não aceitavam, eles não entendiam o que é um governo, como é que são as nomeações nas estatais brasileiras. Eles não estudaram isso, ELES não foram a fundo. Foram tomados apenas por ilações, notas, notícias de revistas de segunda classe, como a Época, por exemplo. Eles construíram um arcabouço de acusação muito frágil, mas que foi aceito pelas elites brasileiras porque tirava de competição o mais competidor, o mais forte competidor, desde sempre, da cena política brasileira. Agora todo mundo aprendeu a lição, entenderam que o Lula é essencial, inclusive, para a própria democracia brasileira. Então acaba sendo uma lição, mas quanta gente perdeu a vida, quanta gente perdeu emprego, quanta tristeza, quanto ódio que a Lava Jato, junto com o bolsonarismo, criaram no Brasil? Não é fácil, mas somos privilegiados de ter alguém como o Lula nesse momento. Acho que ele é a prova mais cabal, mais evidente do fracasso da Lava Jato e de como eles estavam equivocados, brutalmente equivocados. Ele é o novo presidente brasileiro, ele está sendo celebrado no mundo inteiro. Eles estão humilhados, os lavajatistas de turno estão todos agora humilhados. Nós temos a responsabilidade agora, no novo ciclo democrático, de consolidar essa humilhação. Eles são agora notas de rodapé de um processo histórico e notas de rodapé tenebrosas. Talvez não de rodapé, porque eles destruíram muita coisa no Brasil. São um capítulo inteiro, mas é um capítulo tenebroso, uma das piores páginas da nossa história. E eu acho que a gente teve competência suficiente, paciência suficiente para mostrar isso para a sociedade brasileira. E agora temos de consolidar isso em alguns outros setores cuja ficha ainda não caiu. Dentro do próprio Ministério Público talvez seja o grande desafio pros próximos anos.

MLJ: Por fim, quais os canais para quem quiser seguir você, acompanhar o seu trabalho.
CONDE: Muito fácil. Se colocar Gustavo Conde no Google, vai achar todas as minhas redes. Tem o Facebook, o YouTube, o Twitter. E eu estou na cena. Se você entrar na TVT, 247, tenho programa semanal com o Nassif, Fernando Horta, Vinícius Carvalho, Fernando Brito… É difícil não se deparar comigo nas redes se você consome a imprensa independente.

NatAlia VIana

Curiosa por natureza, escritora por paixão e jornalista por vocação. Essa é Natalia Viana, paulistana nascida e criada no boêmio bairro de Vila Madalena e que desde sempre tinha o sonho de ser jornalista, atraída por uma visão romântica da profissão – aquela ideia dos filmes de que jornalistas seriam quase que aventureiros, um Indiana Jones com caneta e bloco de nota.

Uma visão romântica, mas que ela conseguiu concretizar ao longo de duas décadas de carreira.

A história de Natalia no mundo da reportagem começa cedo, quando ela tinha cerca de 20 anos e começou a trabalhar como estagiária na histórica e saudosa revista Caros Amigos. “Foi ali, no final dos anos 1990 e começo dos anos 2000, que eu aprendi jornalismo, com o fundadores da revista”, conta ela.

Com o tempo, foi se especializando em fazer grandes reportagens, trabalhando com jornalismo investigativo como freelancer e contribuindo com veículos diversos. Escreveu sobre a guerra às drogas, acompanhou e cobriu de perto a ascensão de governos de esquerda na América Latina no começo do século e passou a estudar a forma como os Estados Unidos se relaciona com os povos latinos e de que formas as ações americanas prejudicam os países da região.

Em 2010, já reconhecida por suas reportagens aprofundadas, foi convidada por Julian Assange, do site WikiLeaks, para fazer parte da estratégia de vazamento do Cablegate (telegramas diplomáticos dos Estados Unidos). Um trabalho que lhe rendeu notoriedade e permitiu a criação, em 2011, da Agência Pública de Jornalismo Investigativo, projeto que foi fundado por ela e Marina Amaral (que era uma das proprietárias da Caros Amigos).

Com seu conhecimento em geopolítica, ainda em 2019 foi convidada para fechar uma parceria com o The Intercept, para a cobertura da Vaza Jato. Sua investigação, que durou meses, resultou na descoberta de relações ilegais entre a Operação Lava Jato e o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, fazendo surgir algumas das mais interessantes e importantes reportagens da série da Vaza Jato.

O FBI e a Lava Jato

Nos seus pouco mais de 20 anos no FBI, a agente especial Leslie R. Backschies esteve diversas vezes no Brasil. Backschies, cujo nome do meio é Rodrigues, com a grafia portuguesa, é fluente na língua nacional e vem ao país desde pelo menos 2012, ano em que há um primeiro registro de uma visita sua à Polícia Militar de São Paulo. É, também, a única foto que se encontra na internet dessa notável agente do FBI – embora esteja longe da câmera e de óculos escuros. O objetivo daquela visita era firmar parcerias para capacitação de policiais para responder a ameaças terroristas antes da Copa de 2014.

Ao longo de sua carreira, Leslie trabalhou na divisão de Segurança Nacional do FBI, atuando nas áreas de contraterrorismo e resposta a armas de destruição em massa – ela foi co-autora de um guia sobre armas biológicas para o site Jane’s Defense.

Trabalhando para a Divisão de Operações internacionais do FBI, em 2012 Leslie mudou-se para a América do Sul, passando a viver em local não revelado, de onde supervisionava os escritórios do FBI nas capitais do México, Colômbia, Venezuela, El Salvador e Chile, além dos agentes do FBI lotados na embaixada em Brasília. No mesmo posto, comandou operações da polícia federal americana em Barbados, República Dominicana, Argentina, Panamá e no Canadá.

Mas nos últimos anos, a carreira de Leslie deu uma guinada. De especialista em armamentos e terrorismo, ela passou a se dedicar a investigar casos de corrupção e lavagem de dinheiro na América Latina – com destaque para o Brasil.

Como a Lava Jato escondeu do governo federal visita do FBI e procuradores americanos

No dia 5 de outubro de 2015, Deltan Dallagnol, procurador-chefe da força-tarefa da Lava Jato, mal dormiu; chegou de uma viagem e foi direto para a sede do Ministério Público Federal (MPF) no centro de Curitiba, onde trabalhou até depois da meia-noite. No dia seguinte, acordou às 7 da manhã e correu de volta para o escritório. Ele já havia avisado a diversos interlocutores que aquela seria uma semana cheia e não poderia atender a nenhuma demanda extra.

Não era para menos. Naquela terça-feira, uma delegação de pelo menos 17 americanos apareceu na capital paranaense para conversar com membros do MPF e advogados de empresários que estavam sob investigação no Brasil. Entre eles estavam procuradores americanos ligados ao Departamento de Justiça (DOJ, na sigla em inglês) e agentes do FBI, o serviço de investigações subordinado a ele. Todas as tratativas ocorreram na sede do MPF em Curitiba. Em quatro dias intensos de trabalho, receberam explicações detalhadas sobre delatores como Alberto Youssef e Nestor Cerveró e mantiveram reuniões com advogados de 16 delatores que haviam assinado acordos entre o final de 2014 e meados de 2015 em troca de prisão domiciliar, incluindo doleiros e ex-diretores da Petrobras.

Mas nem tudo foram flores para a equipe de Deltan Dallagnol. No final do dia 6 de outubro, às 23h16, ele foi chamado ao Telegram pelo diretor da Secretaria de Cooperação Internacional (SCI) da Procuradoria-Geral da República (PGR), Vladimir Aras: “Delta, MSG DO MJ”.

A mensagem era grave. O Ministério da Justiça acabara de tomar conhecimento da visita dos americanos pelo Itamaraty – quando eles já estavam em Curitiba.

Mensagens indicam parceria com FBI na operação que mirou tríplex do Guarujá

Novos diálogos analisados pela Agência Pública em parceria com o The Intercept Brasil revelam o interesse de agentes do FBI e do Departamento de Justiça americano (DOJ) nas investigações relativas à Operação Triplo X, que mirou a empresa de offshores Mossack Fonseca e o tríplex no Guarujá atribuído ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Segundo um diálogo travado no Telegram, a Polícia Federal (PF) foi procurada pelo FBI um mês antes de a operação ser deflagrada, em dezembro de 2015. A PF então requereu o aval da força-tarefa para compartilhar a investigação com os americanos. E recebeu sinal verde de Deltan Dallagnol.

“O compartilhamento pode ser policial”, disse Dallagnol, orientando o procurador Julio Noronha a não passar por um acordo de cooperação oficial nem pela autoridade central – nesse caso, o Ministério da Justiça.

Mas isso é irregular.

Quem são os agentes do FBI que atuaram na Lava Jato

São de dois tipos os agentes do FBI que atuaram na Lava Jato em solo brasileiro. Alguns são figuras públicas, dão entrevistas e aparecem cada vez mais frequentemente em eventos elogiando o trabalho da força-tarefa e dando conselhos a corporações sobre como seguir a lei americana.

Outros tiveram atuação temporária e são conhecidos por apelidos ou nomes tão comuns que é muito difícil encontrar algo sobre eles em fontes abertas na internet. Essa é uma prática comum nos escritórios do FBI no exterior, para evitar a exposição de agentes que realizam operações secretas ou controversas em território estrangeiro. Hoje, a agência mantém escritórios em embaixadas de 63 países e sub-escritórios em 27. Em 2011, o FBI empregava 289 agentes e pessoal de apoio nesses escritórios no exterior.

Embora as duas maiores investigações de casos de corrupção originados na Lava Jato pelo Departamento de Justiça (DOJ) americano já tenham terminado, com os acordos bilionários da Odebrecht e Petrobras, o FBI ainda tem muito a fazer para investigar corrupção no Brasil, nas palavras do atual chefe do FBI no país, David Brassanini, em palestra no 7º Congresso Internacional de Compliance, em maio de 2019, em São Paulo. A cooperação foi descrita como “fluida, sem problemas e transparente”, pois seus agentes já tinham familiaridade com a cultura e a sociedade brasileiras. “A habilidade de desenvolver e entender as peculiaridades locais é grande. Não só a questão da língua, mas em entender realmente como o Brasil funciona, entender as nuances”, afirmou. Brassanini relatou também, no mesmo evento, que agentes do FBI vêm a São Paulo “toda semana para tratar de diferentes casos que envolvem FCPA e lavagem de dinheiro”.

Com base em documentos da Vaza Jato entregues ao The Intercept Brasil e apuração em fontes abertas, a Agência Pública localizou 12 nomes de agentes do FBI que investigaram os casos da Lava Jato lado a lado com a PF e a Força-Tarefa, além da agente Leslie Backschies, que hoje comanda o esquadrão de corrupção internacional do FBI. E descobriu que essas investigações viraram símbolo de parceria bem sucedida e levaram à promoção diversos agentes americanos. Segundo um ex-promotor do Departamento de Justiça americano contou à Pública, a presença de agentes do FBI no Brasil foi fundamental para o governo americano concluir suas investigações sobre corrupção de empresas brasileiras.

Entrevista exclusiva do museu da lava jato

Vozes Dissonantes: Natália Viana

MUSEU DA LAVA JATO: Qual seu nome completo, onde nasceu, está com quantos anos, qual seu signo…?
NATALIA VIANA: Meu signo é ótimo [risos]. Eu sou Natalia Viana, tenho 42 anos, sou jornalista há mais de 20 anos e sou fundadora e diretora executiva da Agência Pública de jornalismo investigativo. Eu nasci e cresci aqui em São Paulo mesmo, na Vila Madalena, um bairro muito conhecido, um bairro boêmio. Nasci e cresci lá também, estudei lá. Minhas primeiras escolas foram todas na Vila Madalena.

MLJ: E na juventude, quais eram as suas ambições, os seus sonhos…
NATALIA: Desde sempre, desde que eu me entendo por gente, eu queria ser jornalista. Eu queria ser escritora, na verdade. Foi por isso que eu fui me tornando jornalista: sempre gostei muito de escrever, sempre fui muito curiosa, e na realidade nunca conheci um jornalista até eu chegar na escola, no colégio. Mas eu queria ser jornalista porque eu tinha aquela imagem romântica, que jornalista é uma pessoa que escreve muito e eu achava que eu poderia liberar, dar vazão à minha curiosidade, que é muito nata, é muito obsessiva, no caso. Isso faz muito parte da minha personalidade.

Quando eu comecei a ser jornalista eu tive um choque logo no começo, porque eu fui contratada para trabalhar num site que estava começando na época, o Terra. Na verdade, fui trabalhar como repórter numa agência do Terra, um site do Terra sobre eventos culturais. E eu passava o dia inteiro só reescrevendo release. Aquilo me chocou, eu não imaginava que tinha gente que passava a vida fazendo isso, mas tem. É o lado do jornalismo – que nem é jornalismo, na verdade – que chega muito perto da assessoria de imprensa.

Aí eu desisti desse emprego e consegui um trabalho quase não pago, quase voluntário, com um salário muito pequeno, como estagiária da revista Caros Amigos. Foi o que eu considero o meu primeiro emprego de verdade. Foi na revista Caros Amigos, que foi uma publicação de esquerda, uma publicação de muita qualidade. Foi ali, no final dos anos 1990 e começo dos anos 2000, que eu aprendi jornalismo, com os fundadores da revista. E hoje uma das donas da revista, que é a Marina Amaral, é minha co-diretora na Agência Pública. A gente fundou a Agência Pública junto, há 10 anos.

MLJ: Você nunca teve dúvida de que seria jornalista? Na hora de pensar qual curso escolher para prestar vestibular, por exemplo, chegou a cogitar alguma outra graduação ou Jornalismo sempre foi o que vislumbrava no horizonte?
NATALIA: Sempre foi… Eu cheguei a fazer História e cheguei a fazer Letras durante um tempo, mas eu acho que sempre quis fazer Jornalismo. Na verdade, a ideia que eu tinha do jornalismo é uma ideia muito romântica, é aquela ideia de filme, que o jornalista vai viver várias aventuras e tal, o lobo solitário. É uma ideia muito masculinizada também, o jornalista é sempre um homem. Mas no final eu acabei, na minha vida, conseguindo criar uma carreira muito diferente, muito única, e eu consegui viver muitas aventuras [risos], no caso. Consegui fazer o tipo de jornalismo que é o que se aproxima desse sonho, que é o jornalismo investigativo. Só que naquela época, quando fui fazer faculdade, não se falava em jornalismo investigativo. Não existia esse termo, não se falava esse termo, que foi se fortalecer no Brasil um pouco depois, após a morte do Tim Lopes, que é quando foi fundada a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo [Abraji].

Quando eu entrei no curso, eu fiquei muito decepcionada com a faculdade, a faculdade foi muito ruim para mim. Mas quando eu comecei a trabalhar, eu fazendo reportagens como freelancer e trabalhando na Caros Amigos, eu já me apaixonei muito profundamente pelo jornalismo. Assim que eu entrei na Caros Amigos, acho que eu tinha 20 anos, eu nunca mais… Eu sou uma jornalista nata, como dizia um dos grandes editores da Caros Amigos, o Renato Pompeu. Eu nunca pensei, nunca cheguei a duvidar se era isso que eu deveria fazer da vida.

MLJ: E desde então você passou pela Terra, pelas Caros Amigos… Em quais outros veículos trabalhou ou com quais outros veículos contribuiu até a fundação da Agência Pública em 2011?
NATALIA: Ah, eu contribui com muitos veículos. Mas eu trabalhei mesmo em poucos, porque eu… Depois da Caros Amigos eu fui fazer um Mestrado em Londres, em 2006-2007, em rádio jornalismo. Eu aprimorei meu inglês e quando eu voltei pro Brasil eu entendi que para poder me focar em reportagens aprofundadas, em reportagens investigativas, eu teria, sendo uma repórter freela, de fazer uma reportagem e vender subprodutos dela para vários veículos diferentes. Então eu fiquei muitos anos como uma agência de mim própria [risos].

Então eu fazia uma investigação longa. Por exemplo, eu fiz uma reportagem sobre ciganos no Brasil. E aí eu fazia ela, vendia para uma revista brasileira – naquela época tinha muitas revistas, tinha revistas que falavam sobre cultura, revistas como a National Geographic, esse tipo de revista que comprava grandes reportagens. Mas ao mesmo eu fazia um programinha de áudio, em inglês, para uma rádio americana, fazia em espanhol também e tentava vender para a BBC. Então assim eu conseguia me aprofundar nas histórias, ficar tempo suficiente nelas e me sustentar. Por isso eu não trabalhei mais fixo, né?! Eu tive poucos trabalhos fixos, na verdade. Eu sempre inventei meu próprio trabalho.

Depois de fazer esse tipo de freela eu comecei também a escrever pro site Opera Mundi, que cobria América Latina e eu já cobria América Latina. Então eu juntava dinheiro para ir fazer uma viagem pela América Latina para cobrir algumas pautas, duas ou três, em lugares específicos, e fazia a mesma coisa: vendia matéria para a BBC, vendia para a Opera Mundi, para o Terra, outros sites, e aí juntando tudo cobria o custo da minha viagem e me dava um dinheirinho para eu viver.

Eu fiquei um tempo fazendo isso. Quando eu fui para Londres eu fui correspondente por um pequeno período da TV Bandeirantes, mas era um emprego que eu realmente não gostava, porque eu tinha um minuto para falar. A gente fazia entrada de um minuto na televisão e falava durante um minuto sobre algo que alguém, outra pessoa ou alguma agência de notícias, já estava falando. Meu trabalho era só resumir alguma coisa, não tinha trabalho de apuração de campo, que é a base do jornalismo. Então eu odiava esse trabalho, mas enfim, precisava para ganhar dinheiro [risos].

E aí, quando eu voltei de Londres, aconteceram duas coisas. A primeira é que fui convidada para fazer um livro sobre o jornal Movimento, que foi um jornal de resistência contra a ditadura militar, tocado pelo Raimundo Pereira e outros jornalistas da época. Então eu fiz essa apuração desse livro, também com a Marina Amaral e com outro colega nosso, que é o Carlos Azevedo. Fiquei fazendo esse livro, fazendo freela…

Aí em 2010 o Julian Assange me convidou para fazer parte da estratégia de vazamento do Cablegate, dos documentos das embaixadas americanas, e eu participei durante um ano da coordenação desses vazamentos, que foi um marco na história do jornalismo, mudou o jornalismo, e foi nessa época em que eu fiquei famosa, comecei a dar muita entrevista na televisão, como [jornalista] independente. Eu fui a primeira jornalista a ganhar o Troféu Mulher Imprensa como independente, não sendo funcionária de nenhum veículo. E foi nessa época que eu e a Marina fundamos a Agência Pública, em 2011, justamente para ser uma agência que poderia dar conta desse tipo de jornalismo aprofundado, que eu fazia, que a Marina fazia também, e que não existia, na verdade, um lugar especializado nisso – não só jornalismo investigativo, mas jornalismo investigativo focado em direitos humanos.

Faz 11 anos já e a Agência Pública abriu todo um campo no Brasil, ela mostrou para vários jornalistas que é possível você criar seu próprio meio, mas ela também deu uma dinamizada na produção de jornalismo investigativo. Então hoje em dia você tem núcleos de jornalismo investigativo em vários veículos, como é o caso do UOL, que não tinha, e você tem vários veículos fazendo jornalismo investigativo de forma independente, vários: The Intercept, Ponte Jornalismo, O Joio e o Trigo, Repórter Brasil, obviamente. E isso aconteceu um pouco desde essa fundação da Agência Pública, a gente foi meio que inspiração para essa nova geração.

MLJ: E quais as coberturas, entrevistas, matérias que você fez e colocaria como as mais marcantes?
NATALIA: Antes ou depois da Pública? Porque assim, depois da Pública eu acho que mudou um pouco, porque antes eu vivia só de fazer reportagens, né, só que eu vendia essa reportagem para vários veículos e eu me sentia um pouco sem uma casa, sem um lugar onde tivesse toda a minha produção. Quando a gente fundou a Pública, obviamente metade do meu tempo e hoje em dia mais da metade do meu tempo não é em fazer reportagem, mas é em editar, em coordenar equipes, fazer projetos, dirigir a organização, pensar estrategicamente e tal. Mas eu consegui dentro da Pública fazer reportagens mais aprofundadas. Eu gosto mais das que eu fiz dentro da Pública.

Mas antes da Pública eu já tinha ganhado prêmio, o primeiro prêmio Vladimir Herzog que eu participei foi em 2004, pela Caros Amigos. Eu fiquei um mês inteiro vivendo em subempregos, como anônima, infiltrada, mas não era para expor uma cadeia de exploração, não era uma reportagem investigativa. Estava fazendo um jornalismo de vivência. Passei um mês em subempregos, que pagavam muito mal e exploravam os trabalhadores. Isso antes do Uber, eram outros tipos de exploração: entreguei folheto no farol, montei joias, vendi sapato e escrevi uma grande reportagem sobre exploração do trabalho, que foi menção honrosa do Vladimir Herzog.

Eu fiz outras duas na Caros Amigos que acho que foram importantes para a minha carreira. A primeira foi um perfil do Evo Morales, que foi a primeira vez que eu comecei a cobrir América Latina, e começar a cobrir América Latina me ajudou muito, inclusive, na Lava Jato, porque foi nessa época, em 2004, que eu comecei a ter meu foco mais em internacional, que é meu foco hoje em dia, cobertura internacional e cobertura da influência americana no nosso continente, porque o Evo Morales é um líder cocaleiro, que cresceu na Bolívia principalmente em reação à guerra contra as drogas. A guerra contra as drogas, eu acompanhei várias iniciativas do governo boliviano da época de erradicar [as plantações de coca]. Eles entravam na terra dos camponeses que plantavam coca com machados, para cortar as folhas de coca, tirando o sustento daquelas famílias, porque aquelas famílias viviam de plantar coca, depois vendiam no mercado central e dali era transformado por traficantes em cocaína. Mas os agricultores não tinham nada a ver com isso. E o Evo Morales, além de prometer acabar com esse abuso contra as populações locais feita pelo governo americano, ele sempre advogou – ainda não conseguiu, mas acho que a gente está cada dia mais perto disso – pela legalização da folha de coca, que é uma planta medicinal, tradicional dos povos andinos, que foi proibida, foi criminalizada por pressão americana. E aí eu comecei a estudar, a cobrir a guerra as drogas, que naquela época, 2004 e 2005, ainda estava bastante forte. Recentemente, principalmente desde o governo Obama, deu uma arrefecida porque é uma coisa que não funciona. Mas eles deram muito dinheiro, equiparam polícias, equiparam exércitos, mandaram muitos oficiais da DEA [Drug Enforcement Administration] para a América Latina inteira para reprimir, principalmente, a produção e o consumo de cocaína. Isso influenciou enormemente a política desses países, principalmente Bolívia, Paraguai e Colômbia. E aí eu me especializei nessa cobertura sobre a guerraàs drogas, viajei muito pela América Latina, sempre de maneira independente, para fazer essas coberturas.

Ao mesmo tempo, você vai se lembrar que foi nessa época que começou a ascender justamente o que foram os governos de esquerda daquela época, com Evo Morales [Bolívia], Hugo Chávez [Venezuela], o próprio Lula, o Fernando Lugo [Paraguai]… Todos eles um pouco numa visão de resistência às imposições e ao poder americano e numa promessa de soberania dos povos. Então eu também cobri, como jornalista independente, cobri essa onda. E é por isso que eu sou uma das poucas jornalistas do Brasil que tem essa perspectiva geopolítica, porque consistentemente na minha carreira investiguei sobre a influência americana no Brasil e no continente. Eu tenho esse olhar de quem estuda, de quem investiga como é que os Estados Unidos se relaciona com a América Latina e como é que as ações americanas prejudicam os povos da América Latina.

MLJ: E no caso da Agência Pública mesmo, tem algumas reportagens, algumas matérias que destacaria?
NATALIA: Teve mais uma importante, que também é outra coisa que acompanho há muito tempo, que foi uma matéria sobre as private military companies. São empresas militares privadas, é uma terceirização da guerra, que é também uma coisa que inventaram nos Estados Unidos. Você deve conhecer a empresa Blackwater, que é uma dessas. São contratistas de segurança que o aparato de defesa americano, principalmente na época do Bush, começou a contratar para terceirizar certos serviços no teatro da guerra. E eu descobri que tem empresas e brasileiros que vão trabalhar para esse tipo.. É gente que hoje em dia com certeza é bolsonarista, né?! São pessoas que saíram do Exército, não tem mais o que fazer com as suas vidas, adoram a guerra e acabam virando mercenários para esse tipo de empresa.

Depois, na Pública, eu fiz várias coberturas. Mas depois desse momento de ter sido chamada para trabalhar com os documentos do WikiLeaks, que são todos sobre esse tema que eu estava te falando, sobre a influência americana no mundo (mas o nosso foco foi Brasil e América Latina), todas as próximas coberturas que eu fiz mais relevantes foram dessa perspectiva. Eu cobri o impeachment do Lugo, que foi uma reportagem finalista do prêmio Gabo; eu cobri, fiz várias matérias sobre financiamento americano para operações contra o Chávez na Venezuela e no Paraguai, utilizando os documentos do WikiLeaks durante muito tempo. E fiz no Brasil uma reportagem que ganhou o prêmio Gabo, uma reportagem que não tem nada a ver com tudo isso, mas que é interessante, fala sobre um surto de suicídios indígenas, que aconteceu em 2014 e 2015 no Alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira. Foi a única vez que eu fui fazer uma reportagem que eu fiquei um mês na Amazônia, uma reportagem sobre povos indígenas, que não é minha especialidade, mas foi uma reportagem muito intensa e muito importante para mim, porque era um tema muito tabu e um tema muito novo para mim e ela acabou sendo uma reportagem histórica, importante, que demonstra como persiste o trauma sofrido pelos indígenas na época da neocolonização, quando houve a chegada das missões ali na época do Juscelino Kubitschek e essas populações foram torturadas, crianças foram retiradas de seus pais, eles eram proibidos de falar suas línguas. Essa foi uma matéria que mexeu muito comigo e é um tema para o qual eu não voltei desde 2014, mas pretendo voltar muito em breve.

MLJ: E em 2011 como que surge a Agência Pública, que é uma agência fundada por mulheres?
NATALIA: A Pública foi fundada pela Marina e por mim. Eu estava com os documentos do WikiLeaks, estava conhecida naquela época e ao mesmo tempo eu não estava recebendo dinheiro do WikiLeaks, eu continuava tendo de ser jornalista freelancer e pagar minhas próprias investigações. Então o Julian Assange me deu acesso aos documentos da América Latina e me permitiu, falou “Olha, já que não posso te remunerar por esse trabalho, eu te dou esses documentos e você pode vender reportagens com base nesses documentos”. Só que quando eu comecei, naquela época eu estava famosa, fui procurar veículos grandes, bem especificamente o jornal Valor Econômico, que já tinha me procurado, queriam os documentos. Eu propus para eles uma reportagem sobre esses documentos da América Latina, que eram muito importantes, e o editor me falou que ele não poderia contratar uma reportagem minha porque eu seria uma fonte não objetiva, que eu era uma fonte interessada, digamos assim. Primeiro que ele me via como uma fonte e ele me via como uma parte interessada nos documentos e eu não tenho a menor ideia do porquê. Mas nesse dia eu fiquei muito chocada, porque você ser mulher, ser freelancer e trabalhar com direitos humanos, naquela época era uma pecha muito grande. A gente não era bem-visto pela imprensa tradicional. Eu trabalhava na Caros Amigos, era visto não como jornalista, mas como ativista, embora fosse uma das revistas mais lidas naquela época. Tinha uma pecha muito grande contra quem era associado à esquerda e, principalmente, quem cobria movimentos sociais. Era naquela época que a Revista Veja colocava o [João Pedro] Stédile com a cara vermelha, como se ele fosse um diabo. Havia muito preconceito contra esse tipo de pauta. E eu liguei para a Marina para falar disso, estava muito chateada, e aí ela no dia seguinte apareceu lá em casa.

A gente já tinha conversado, porque quando eu morei na Inglaterra eu tinha conhecido outras organizações sem fins lucrativos que fazem jornalismo investigativo e eu já tinha falado pra Marina que esse modelo existia e tal, e no dia seguinte ela falou que “talvez seja o momento para a gente fundar aqui aquela agência que você tinha pensado”. E a ideia sempre foi fazer uma agência focada em reportagens investigativas, de direitos humanos, que era o tipo de jornalismo ao qual a gente se dedicava e que não era coberto pela imprensa, era solenemente ignorado pela imprensa, uma imprensa muito classista, muito racista – que mudou muito, ainda que continue com seus problemas. Aí fundamos a Pública em 2011 para fazer uma agência focada nesse tipo de cobertura.

MLJ: Imagino que a sua experiência com o WikiLeaks tenha sido fundamental para a criação da Pública…
NATALIA:
A gente só conseguiu fundar a Pública porque eu estava muito famosa naquela época, por causa dos documentos do WikiLeaks, que foi uma cobertura histórica. Também consegui utilizar o modelo do WikiLeaks, porque o WikiLeaks fazia assim: como ele tinha os documentos, ele fazia parceria com vários veículos e o conteúdo era publicado em vários veículos. Eu fiz a mesma coisa na Agência Pública, só que em vez de documento a gente publica a reportagem e distribui livremente para republicação. Então cada uma das reportagens que a gente publica são republicadas por mais ou menos 10 outros veículos. Ou seja, é uma agência, nosso conteúdo se espalha por vários lugares. Hoje em dia publicamos em inglês e espanhol também, somos publicados em 25 países e somos republicados por todos os maiores veículos do Brasil, mas isso foi um trabalho de onze anos.

O pulo do gato da Agência Pública, eu acho, foi naquela época, em 2011, conseguir demonstrar que existia apetite, que existia demanda para a cobertura de violações de direitos humanos no Brasil. Ninguém fazia isso porque os veículos tinham preconceito com esse tipo de cobertura. Mas como a Agência Pública começou a fazer isso e começou a distribuir gratuitamente, fez um sucesso grande muito rápido, porque as pessoas tinham apetite, porque as pessoas queriam ler sobre isso, as pessoas queriam ler sobre violência de gênero, as pessoas queriam ler sobre racismo, as pessoas queriam ler sobre violência contra populações vulneráveis na cidade e no campo, violência contra indígenas… Aí os jornais se ligaram que valeria a pena eles terem os seus próprios jornalistas cobrindo esses temas também.

MLJ: Sobre a Lava Jato, quais foram os seus primeiros contatos com a operação, as suas mais remotas lembranças?
NATALIA: A Operação Lava Jato foi muito bem-vista pela imprensa. Ela nasceu bem numa época muito bem pensada, digamos, uma época em que o Brasil estava nas ruas e pedindo mudanças, pedindo mudanças profundas. E um dos grandes problemas do Brasil sempre foi a corrupção, sempre foi e continua sendo. Então é uma operação muito nova, com pessoas do Ministério Público que já tinham feito apurações antigas que tinham sido silenciadas. Vários dos procuradores tinham se envolvido em outras coberturas que também envolviam empreiteiras e que haviam sido caladas pelos procuradores-gerais da República anteriores, no governo Fernando Henrique. Então a Lava Jato, quando ela começou, ela foi muito bem-vista, foi muito bem-vista por todo mundo, inclusive pela gente. Eu sou absolutamente a favor que se investigue corrupção.

Ela [Lava Jato] também fez outra coisa que foi muito esperta, que foi… Como você ganhar a imprensa, né? Isso foi uma estratégia muito bem pensada. Além de você produzir muito escândalo, muitas notícias, você dava acesso a todo jornalista do Brasil de todos os conteúdos, de todas as investigações. Então toda semana a assessoria de imprensa mandava pros jornalistas, eu também estava nessa lista, o número de todos os processos e a chave de todos os processos. Então a gente tinha acesso como advogado, a tudo. Então cada vez que tinha uma nova delação, um novo depoimento, todo mundo recebia. Isso gerava notícias constantemente e gerava notícias muito antes do julgamento, o que permitia a condenação pela opinião pública muito antes do julgamento. Isso contribui pro sucesso da Lava Jato.

Outra coisa é que o PT estava no governo há muito tempo. Lula tinha entrado em 2003 e a gente já estava em 2014. Havia um cansaço da população com aquele governo, assim como teria com qualquer outro, e havia um antipetismo enorme na imprensa. Sempre houve, né, mas naquela época ele estava pior, acredito que por conta do quarto mandato consecutivo do PT. Então a imprensa cobriu com muita fome a Lava Jato.

E havia também uma outra coisa, que… Eu já conversei muito com colegas de imprensa sobre a cobertura que foi feita, que eu acho uma cobertura errada, que abraçou demais a versão dos procuradores, e uma cobertura muito pouco investigativa. Inclusive os jornalistas investigativos do país ficaram na mão dos procuradores, ficaram sendo garotos de recado. Era coisa vazada que era publicada na imprensa, não houve investigação. Mas um argumento importante, que eu acho que é um argumento importante mesmo, de um desses editores, ele era editor do Estadão, ele falou: “Olhe, só que o PT tem um telhado de vidro muito grande, porque o PT sempre foi, na oposição, o partido que falava da moralidade pública, da corrupção, do fora FHC, etc”. O PT tinha essa bandeira da corrupção, então o PT ser pego num esquema de corrupção muito bem documentado, que é o que fez a Lava Jato, realmente era notícia.

No entanto, a minha grande questão, e aí eu acho que a Pública também falhou, foi não ter investigado a Lava Jato em si. Quando a gente resolveu investigar a Lava Jato já era lá por 2018, 2019. Já estava ficando muito claro que havia um foco no PT, isso sem a gente ter nenhuma informação interna, mas observando como estava caminhando muito rápido, como o caso do Lula, por exemplo, caminhou muito rápido. Já tinha tido o rolo do Bessias, o Moro já tinha vazado ilegalmente grampos contra a Dilma, então a gente, só aí a gente falou “bom, acho que a gente precisa investigar”.

MLJ: É a partir daí que surge a parceria com o The Intercept e a Vaza Jato?
NATALIA: Então, a gente começou a fazer algumas investigações, publicar algumas coisas. Era muito difícil, era muito difícil. É muito difícil você investigar o Ministério Público e a Justiça. A gente já fez investigações da Justiça, mas é difícil, porque a Justiça é muito pouco transparente, é muito difícil você ter alguém de dentro que fale. Aqueles procuradores eram muito fechados em si, só falavam com os jornalistas que diziam “amém” para tudo que eles falavam, então a gente não conseguiu grandes matérias de impacto antes da Vaza Jato. E bem quando aconteceu a Vaza Jato, eu já tinha colocado na minha cabeça que eu precisava olhar com calma, fazer uma investigação que eu não sabia no que daria, sobre a relação entre a Lava Jato e o governo americano. Porque já haviam estado no Brasil uma comitiva de procuradores americanos, já havia sido anunciada a

contra a Petrobras, a Odebrecht foi depois, e eu já tinha começado a olhar. Só que era uma coisa enorme que eu estava começando devagar a ler os documentos, entender como era essa relação entre a procuradoria brasileira e o Departamento de Justiça Americano. Estava nessa.

Quando chegou em junho de 2019, eu estava nos Estados Unidos, para uma viagem institucional da Pública e estava aproveitando para conversar com alguns advogados lá, inclusive com ex-procuradores que atuaram nos casos da Lava Jato nos Estados Unidos. Tinha acabado de fazer algumas entrevistas nesse sentido quando o The Intercept publicou os primeiros documentos da Vaza Jato. E eu fiquei enlouquecida, enlouquecida, porque era esse o meu foco e eu sabia que ali ia ter alguma coisa sobre os Estados Unidos. Liguei loucamente para o Demori, para a Cecília Olliveira, para todo mundo no Intercept, implorando pra Pública fazer parte dessa parceria. Eles já lançaram parceria com a Folha e depois foram expandindo para outras redações. E demorou dois meses até eles chamarem a Pública, permitirem que a Pública entrasse na parceria. E eu com muito medo que alguém olhasse os documentos americanos, mas como eu sou uma das poucas jornalistas que olha esse assunto, ninguém tinha visto a riqueza de material que tinha ali.

Quando eu cheguei na redação do Intercept eu perguntei “vocês olharam a parceria com os Estados Unidos?”. Eles falaram “a gente olhou, mas não achou nada”. Só que eu já tinha o nome dos procuradores que atuaram nos Estados Unidos. Como era uma quantidade muito grande de diálogos e tinha um sistema para buscar, eu consegui buscar as palavras-chave em inglês e em português, que me levaram aos resultados. Então eu fiquei dois meses investigando a base, o que me foi permitido pelo Intercept, depois mais dois meses fazendo apuração. Demoramos para caramba para publicar as reportagens. E aí é uma das reportagens dignas de nota, que é uma série que conta como funcionou a parceria da Lava Jato com os agentes americanos e quem eram os agentes do FBI que investigaram, no Brasil, os acusados brasileiros da Lava Jato.

Duas coisas importantes de contexto: a primeira é que nos Estados Unidos não existe separação completa entre o Ministério Público e o Executivo. Os procuradores são funcionários do Departamento de Justiça, que é o Ministério de Justiça deles, e eles respondem ao ministro de Justiça, que lá é um procurador-geral, tem um nome específico. Ou seja: eles são parte do governo americano. Esses procuradores com quem os nossos procuradores, que são independentes do governo brasileiro, estavam falando são parte do governo americano. Acho que isso é importante falar.

Outra coisa importante é que o FBI não pode fazer investigações em outro país. Não pode, isso é proibido. A não ser que o outro país o convide ou permita que faça investigações. No Brasil a gente sabe que o FBI faz investigações, apoia a PF, de maneira ilegal.

Esses dois fatos é o que me chamava a atenção para essa parceria. E aí, olhando os documentos, ficou muito claro que os procuradores de Curitiba, tanto os procuradores de Curitiba quanto os procuradores americanos, sabiam desses problemas legais e discutiam o tempo inteiro como você fugir dessas amarras legais. Então você tem uma discussão por escrito, um e-mail enviado pelo Deltan, em que ele sugere maneiras de fugir da determinação do Supremo Tribunal Federal, que diz que uma autoridade estrangeira não pode vir no Brasil interrogar um réu brasileiro sem autorização do governo brasileiro, o que é normal, é básico para a soberania. E aí ele indica alguns caminhos para fugir do entendimento do Supremo. Você tem viagens, você tem conversas em que são pedidos sigilo, são pedidos para não serem incluídos, tem falta de transparência, e tem uma visita que é ilegal, que é a primeira visita, que vem acho que 17 americanos, incluindo gente do FBI, gente que tem toda a cara da CIA – que eu não posso falar que é da CIA porque não tenho prova, mas pessoas que atuaram em inteligência na guerra do Iraque, por exemplo -, que estavam, foram até Curitiba e entrevistaram os advogados dos réus da Lava Jato antes de haver um procedimento instalado e antes de haver permissão do governo brasileiro.

Então, assim, havia uma ilegalidade muito grande. E essa série vai se desdobrando, eu consigo chegar no nome do pessoal do FBI que atuou aqui no Brasil, tudo com base nesses documentos, e também consigo determinar, na última matéria dessa série, que a operação que mirou o Lula, que foi a operação sobre o Triplex, houve compartilhamento de informação com os americanos, autorizado pelo Moro numa véspera de férias. Os americanos queriam ter a documentação antes, bem antes, um mês antes da operação ser deflagrada. Então os americanos acompanharam todo esse processo.

MLJ: E o que tudo isso significa, o que tudo isso nos diz sobre a Lava Jato?
NATALIA: O que isso significa? Obviamente, quem é de esquerda e gosta de ver teorias da conspiração acha que houve uma mão pesada aí americana, um soft power para prejudicar o governo brasileiro ou, pelo menos, as empresas brasileiras, que eram muito alinhadas ao governo Lula: a Petrobras e a Odebrecht.

Eu não tenho dados para dizer que era essa a intenção, que era esse o plano. O que eu tenho é a realidade de fato: não só o governo Lula foi prejudicado como essas duas empresas foram muito prejudicadas. Então o resultado, de fato, prejudicou duas empresas que eram campeãs nacionais nas suas respectivas indústrias e um governo que era um governo de esquerda e um governo de esquerda que atuou contra os interesses americanos ao longo de toda a sua existência durante esses 14 anos (2003 a 2016). Então esse é o resultado prático.

Outra coisa que dá, claramente, para afirmar é que sim, os escalões mais altos [do governo americana] estavam acompanhando a investigação. Ou seja, o governo americano sabia que isso estava acontecendo, sabia da ajuda dos americanos para a Lava Jato, e também dá para dizer claramente, que aí depois eu continuei a observar essa atuação em vários outros países, que o Departamento de Justiça se aprimorou em usar casos de corrupção em alinhamento com a sua política externa para enfraquecer países, atuando em nações com as quais os Estados Unidos tenha algum problema. Por exemplo, fez isso com a China, com a Venezuela, com o Equador e está fazendo isso muito com a Rússia agora. Então existe um alinhamento entre o Departamento de Justiça e essa atuação internacional dos Estados Unidos. E o Brasil é um grande case nesse sentido.

Isso tudo dá para dizer. Eu só não posso te dizer que a Lava Jato foi plantada pela CIA, porque eu não tenho elementos para dizer isso.

MLJ: Você comentou que, até por volta de 2018, a própria Agência Pública e você mesma tinham uma visão positiva com relação à Lava Jato, em especial com relação ao combate à corrupção, que é algo que todo brasileiro anseia…
NATALIA: Eu tinha [essa visão], eu acho que outras pessoas da Agência Pública não tinham. Então não vamos colocar todo mundo no mesmo balaio. Eu tinha, mas assim: eu acho que é muito importante a gente reconhecer que a Lava Jato, em termos técnicos, foi uma puta de uma força-tarefa. Não houve nada do gênero mesmo. Ela só chegou a se desenvolver ao nível que se desenvolveu por causa da Dilma Rousseff, porque a presidente Dilma Rousseff é uma mulher honesta, a presidente mais honesta que o país já teve e, infelizmente, a que mais foi castigada, né, também por ser mulher. Ela acredita em combate à corrupção, ela acredita em transparência. Ela publicou a Lei de Acesso à Informação. Ela acredita nos princípios da transparência e de uma administração ilibada, ela acredita nisso. E foi por causa dela que os procuradores chegaram até onde chegaram.

Ela deixou a Lava Jato correr solta. Havia pressão do PT, e isso saía na imprensa, para que [a operação] fosse barrada. O PT já com uma visão mais política e a Dilma com uma visão técnica, de que corrupção tinha que ser investigada. E obviamente o impeachment da Dilma foi feito para estancar a sangria, o impeachment da Dilma foi feito para acabar com a Lava Jato.

Gosto de lembrar, não sei se já está muito claro aí para quem está vendo o Museu da Lava Jato, mas uma das principais reportagens da época do impeachment foi publicada pelo Rubens Valente, que hoje, aliás, é repórter da Agência Pública, e que mostra o Romero Jucá conversando com o Sérgio Machado, que era um homem forte do governo Temer, e dizendo: é preciso fazer um acordo, com o Supremo e com tudo, para estancar a sangria. Ou seja, é preciso parar com essa investigação porque ela vai destruir o poder político brasileiro. Porque o poder político brasileiro não existe sem corrupção, e nós não estamos falando do PT, estamos falando de todo o poder político brasileiro: estamos falando dos partidos do Centrão, estamos falando do PMDB, estamos falando dos partidos tradicionais.

O PT, obviamente, também fez muita corrupção, muita. Mas ele entrou dentro de um sistema que é corrupto, um sistema em que o Congresso não faz nada que o presidente quer se não receber dinheiro. Isso é o que está mais comprovado no governo Bolsonaro. E ninguém gosta disso. Eu não gosto disso, eu acredito que você também não e tenho certeza que esses babacas aí que estão pedindo golpe militar em porta de quartel também não gostam. A gente tem um problema, é um problema fundamental, é o grande bode na sala. Como é que a gente consegue transformar nossa democracia numa democracia funcional, que não precise de corrupção para existir? Muito mais complexo, muito mais profundo e que o PT não conseguiu mudar, nem enfrentou nem quis enfrentar. E a Dilma fez o seu papel, só que com isso ela caiu.

Acho que é sempre importante voltar nesse áudio que foi publicado pelo Rubens Valente porque naquele acordão o próprio Romero Jucá dizia que estava consultando os comandantes militares. Os comandantes militares estavam monitorando o MST. Ou seja, até os militares entraram nesse grande acordão para estancar a Lava Jato. Então assim, todo mundo queria que houvesse, depois de 2013, algo que limpasse o nosso país da corrupção e que as pessoas pudessem receber, de fato, as benesses do nosso trabalho e da riqueza que a gente produz. Só que, obviamente, a Lava Jato no fundo, no fundo, e principalmente… provavelmente desde o começo, mas chegou numa fase que ficou muito claro que era uma operação classista, preconceituosa e que queria mirar o Lula. Muito mais que o PT, o Lula. E foi o que aconteceu.

MLJ: E quais acredita que foram as consequências dessa atuação politicamente direcionada da Lava Jato?
NATALIA: Acho que a consequência… Acho que tem algumas consequências que são muito importantes. Sempre que eu falo com os americanos, hoje em dia o Joe Biden, por exemplo, por conta de tudo que aconteceu, os democratas americanos tem uma visão muito diferente do que é o PT, obviamente porque o resultado da Lava Jato foi Bolsonaro e o fascismo. Mas tem duas coisas muito importantes: a primeira é que a Lava Jato destruiu as empresas brasileiras. Destruiu, não. Prejudicou muito as empresas brasileiras, empresas importantíssimas. A Odebrecht teve que pedir concordata e a Petrobras ficou no vermelho durante muitos anos. Houve consequências que não são ainda dimensionadas na história, mas uma das consequências da queda da Petrobras, que veio junto com a queda do preço do petróleo, foi o Rio de Janeiro ter quebrado. O Rio de Janeiro quebrou, porque vive de petróleo. E o que aconteceu quando o Rio de Janeiro quebrou? A intervenção militar, em 2018, que foi um assunto que eu cobri. Meu assunto mais recente após a Lava Jato são os militares, como eles voltaram ao Poder. A intervenção federal no Rio de Janeiro só aconteceu por causa da Lava Jato, só aconteceu porque o Rio de Janeiro quebrou, o Rio de Janeiro parou de pagar a sua polícia, a polícia estava em estado deplorável, e aí houve um acordo e o Temer mandou os militares para assumirem o Rio de Janeiro, que é a raiz, o ovo da serpente do que veio a ser o governo militarizado do Bolsonaro. É a história, uma coisa leva à outra, uma coisa concatena a outra. Isso é uma das coisas importantes de reparar.

Outra coisa importante de reparar é a atuação do Supremo. E quando você olha no tempo, você vê que chocante o que aconteceu. Porque o Supremo criou uma interpretação que vai contra todo o seu histórico de garantista e que só funcionou durante dois anos. Foi uma exceção na regra do Supremo que funcionou durante dois anos. O único efeito prático dessa exceção da prisão em segunda instância foi tirar o Lula da eleição. Não teve nenhum outro efeito. Quando você conta isso, você fala: “Pô, houve alguma coisa muito errado aí”. Houve uma exceção de uma visão que sempre era garantista e que afetou uma pessoa, que era quem estava na frente da corrida eleitoral.

Se eu fosse da Venezuela, eu fosse do Paraguai, todo mundo ia falar “ah, mas isso aí foi uma roubalheira, que absurdo”. Porque nós, brasileiros, temos a impressão… Ou melhor, tínhamos, né, acho que agora caiu por terra. Mas tínhamos a impressão que nosso país é muito organizado, que nós temos instituições muito fortes, que aqui não é uma república de bananas. Mas é, gente. A verdade é que tendo vontade de perverter as regras, perseguir politicamente pessoas, se consegue se você criar massa de apoio suficiente. Mas também, como a gente viu nos Estados Unidos, lá também basta ter pessoas canalhas o suficiente e convincentes o suficiente para conseguir apoio, para você conseguir mudar a história com ações politizadas.

MLJ: Além das reportagens da Vaza Jato, na sequência dessa parceria com o The Intercept a Agência Pública lança, na 10º edição do projeto Microbolsas, desta vez incentivando uma série de investigações sobre a Lava Jato. Foi uma ideia que veio por conta da Vaza Jato, como surge esse projeto?
NATALIA: Foi antes da gente entrar na parceria da Vaza Jato. Foi logo depois que a Vaza Jato começou, quando o assunto voltou, e a gente pensou: como é que a gente pode usar os nossos mecanismos, a gente enquanto Pública, para ajudar o assunto a vir à tona ainda mais? Mas, por outro lado, também para incentivar os jornalistas a investigar, para não ficar naquilo de “ah, só dá para investigar eles com vazamentos”. E a gente sabendo que não tinha capacidade interna, dentro da Pública, porque a gente não tinha ninguém que era especializado em Ministério Público, ainda mais o Ministério Público de corrupção, baseado em Curitiba. Então a gente propôs uma microbolsa.

Foi uma microbolsa difícil, porque… Fazemos o programa de microbolsa desde 2012 e propomos temas variados, desde maconha, petróleo, fome, são temas bem amplos. E a gente resolveu fazer sobre a Lava Jato e recebemos poucas propostas, porque a verdade é que são poucos jornalistas que sabem investigar Ministério Público, que sabem investigar Justiça. Mas a gente conseguiu trazer reportagens com base em análise de dados, em análise dos processos. A gente conseguiu, por exemplo, mostrar que os processos do Moro contra o Lula andaram muito mais do que outros processos do próprio Moro. A gente conseguiu ver que muitos dos processos que o Moro condenava foram absolvidos nos tribunais superiores. A gente conseguiu entender também, através desses repórteres, um pouquinho mais sobre como funcionava aquele mundo.

Outra matéria que foi superinteressante, que não era da Vaza Jato, é uma matéria que mostrava… Tem um pesquisador [o professor de Sociologia Ricardo Costa de Oliveira] que estuda as famílias da Justiça do Paraná e mostrou quem que são essas figuras. Primeiro Deltan, Moro, de que famílias eles vêm, de que dinastias eles vêm, de que classe eles vêm, qual que é a visão de mundo dessa classe, que forma muito a Lava Jato, a visão de mundo do Paraná, que continua sendo um estado extremamente de direita, muito bolsonarista, inclusive, e essa era a visão daquele grupo de pessoas que estava conduzindo a investigação. Foi interessante também.

Mas não é nada que se compare com a Vaza Jato, que foi um marco no jornalismo brasileiro, foi tocada muito bem pelo Intercept, toda a estratégia deles, as reportagens que eles fizeram, as parcerias foram extremamente bem feitas e com veículos diferentes, que olharam coisas muito diferentes. E assim, mudou a história, né. A gente… O Lula, ficou comprovada a perseguição ao

Lula, ficou comprovado que o Moro era um juiz parcial, tanto que ele foi considerado um juiz parcial pela Suprema Corte. Se não fosse a Vaza Jato, a gente estava em outro momento político.

MLJ: E como que você avalia a atuação, a cobertura da própria imprensa sobre a Lava Jato, em especial nos anos de auge do lavajatismo, ali entre 2014 e 2018?
NATALIA: A Lava Jato era uma unanimidade. E acho até que não falei de um outro aspecto: jornalistas investigativos já tinham acompanhado várias outras tentativas de investigação de corrupção, nas quais, inclusive, o Moro esteve envolvido e que não iam pra frente porque os governos sentavam em cima. Então quando essa avançou também houve um certo alívio dos jornalistas, que viam que haviam grandes casos de corrupção que não eram investigados. Todo mundo sabia que a Odebrecht era corrupta, gente. Quem não sabia que a Odebrecht era corrupta? E era tudo muito impressionante porque a equipe da Lava Jato era muito boa tecnicamente, eles conseguiram desvendar detalhadamente como funcionava a corrupção. O setor de Operações Estruturadas da Odebrecht, que era um setor só de corrupção para todos os lugares do mundo, era incrível. Não é à toa que teve uma série sobre isso, é incrível a história da Lava Jato e é incrível a corrupção que ela desvendou.

Obviamente, a Lava Jato não teria chegado onde chegou se não fosse pelo apoio dos americanos e dos suíços e se não fosse pela muito questionável prisão de vários dos acusados, por períodos prolongados (o que é uma tortura), até que eles assinassem delações que interessavam aos procuradores. Foi muito mal utilizado o expediente da delação premiada, muito mal utilizado. E isso foi pouco investigado também, foi pouco denunciado na época.

Então, assim, a imprensa aplaudiu demais, fez muito pouco seu trabalho crítico, de criticar os poderes. Tem que ter isso, principalmente quando um grupo ganha tanto poder a ponto de se impor frente às instâncias superiores, que foi o que aconteceu. Então quando você vê um grupo ganhando muito poder, muita proeminência, você precisa monitorá-los, você precisa investigá-los, você precisa ver o que está por trás disso, e isso não foi feito.

E aí a gente tem um problema muito grande, hoje em dia com a imprensa, que a imprensa segue nesse problema. A imprensa aplaudiu muito a Lava Jato, a imprensa cobriu a Vaza Jato e cobriu as decisões do Supremo quando ele decidiu que o Moro era um juiz parcial. Mas a imprensa não fez um mea culpa. Então teve uma coisa muito esquisita na cobertura das eleições agora que eu acho que é fruto da imprensa não ter falado muito claramente aos seus leitores “nós erramos”, que é o seguinte: ou você acredita na decisão do Supremo, que encontrou que os processos contra o Lula eram enviesados porque havia um juiz parcial e uma decisão de condená-lo a priori e que toda a investigação era focada para isso – e hoje em dia isso está comprovado, o Moro, a mulher dele e o Deltan foram eleitos apoiando o Bolsonaro e falando que são inimigos do PT. Não dá nem para negar.

Mas se você acredita nisso, se você acredita que aquela investigação, portanto, é nula, você acredita na inocência do Lula. Só que a imprensa não acredita na inocência do Lula, ou não se porta como quem acreditasse. Então você tem um monte de malabarismos retóricos, que para mim são uma tremenda babaquice. A quantidade de matérias que eu vi falando “Lula é inocente sem ter sido inocentado, entenda porquê”, é uma babaquice, assim, sinceramente, para um nível estratosférico. Lula é inocente, ponto. Não tem isso. “Ah, não foi inocentado”. Foi! A pessoa estava lá, sendo condenada, e o processo foi eliminado. Ele foi inocentado!

Só que a imprensa não conseguiu, eu acho que a imprensa não fez sua mea culpa, não reconheceu que ajudou num processo que foi parcial. E eu estou dizendo aqui que eu estou reconhecendo a culpa da Agência Pública, tá? Pelo menos eu quero me safar dessa, eu quero ir pro céu. Nós também não investigamos. Nós não batemos palmas para a Lava Jato, mas nós não a investigamos a tempo, investigamos já muito tarde.

E por não querer assumir que foi coparticipante num processo enviesado, que prejudicou a nossa política, prejudicou o nosso país, que ajudou a eleger um populista assassino, um populista de ultra-direita que destruiu, que matou mais de 700 mil pessoas, por não querer aceitar essas responsabilidades a imprensa fica nessa retórica esquisita, que no final acaba dando fomento a todo mundo que continua chamando o Lula de ladrão, o que é uma puta sacanagem, uma puta sacanagem. Até porque, mesmo condenado, não tinha de dizer nada que o Lula era ladrão. O que se dizia é que ele tinha ganhado um apartamentinho lá, um triplex que ele nunca usou e um sitiozinho, não sei onde, que ele usava e que era do amigo.

Ou seja, mesmo depois de todas as investigações você não encontrou R$ 10 milhões, R$ 100 milhões, vida de luxo. O Lula não é ladrão, essa é a verdade. Houve corrupção, houve corrupção que foi utilizada para manter o sistema rodando, um partido que não fazia parte dos partidos da elite, os partidos que sempre dominaram o poder, e que também foi, de certa maneira, uma imposição de como as coisas são.

Então para mim o que levou ao Mensalão, ao Petrolão, é a mesma coisa que levou ao Orçamento Secreto: nós temos um Centrão, as pessoas que estão nesses partidos, que são os partidos que comandam a nossa política, eles exigem corrupção e é isso.

MLJ: E o que você avalia que a Lava Jato possa ter trazido de positivo para o Brasil? O que ela conseguiu encaminhar de positivo para o país?
NATALIA: Olha… Eu acho que a Lava Jato trouxe muitas coisas positivas, viu. De novo, eu acho que a qualidade do Ministério Público deu um salto enorme, em investigação de corrupção, inclusive. Eu acho que ela trouxe condenações que foram importantes. Antes da Lava Jato empresário não ia para a cadeia. E isso era um tabu, baseado numa coisa classista, um país classista e racista que está em transformação. Ou seja, empresário vai pra cadeia, sim, e eu acho isso importante. Também acho que ela desnudou como funcionou muito a corrupção durante muito tempo. Eu acho que o governo Bolsonaro, pelo menos no plano federal, inaugurou um novo tipo, uma nova era da corrupção brasileira, digamos. Acho que a Lava Jato enterrou um tipo de corrupção. Por conta da Lava Jato se mudou a regra do financiamento de campanha, então você teve as campanhas do Lula e do Bolsonaro [na eleição de 2022] financiadas com muito menos dinheiro, muito menos dinheiro. Obviamente que tem muita coisa por baixo dos panos, mas não é aquela quantidade bizarra, que era vergonhosa e escandalosa, que aqueles publicitários ficaram riquíssimos nessa época, como João Santana, que foi pra cadeia também. Eles ganhavam, era um absurdo aquilo. Então a gente mudou o tipo da nossa propaganda eleitoral, eu acho isso superimportante.

Mas ela também demonstrou uma fraqueza, e aí eu acho que nesse sentido ela também já é um adianto ao que está acontecendo hoje no mundo, que é o fato que qualquer sistema democrático consegue ser pervertido. Você precisa ter pessoas que são canalhas o suficiente e que convençam pessoas suficientes para entrar nisso, que é o que aconteceu com o Trump e o que o Bolsonaro fez no Brasil. A Lava Jato demonstrou que você consegue perverter um sistema usando as regras do próprio sistema. Isso é o que está muito bem colocado no livro “Como morrem as democracias”, do Steven Levitsky [e Daniel Ziblatt]. Você usando o sistema você consegue perverter o sistema.

Mas ela também demonstrou, e nisso eu me surpreendi muito (e graças à Vaza Jato e muito graças ao trabalho do Intercept) que a história não acaba, né?! E que existem figuras… Olha, eu acho que o Lula teve uma participação muito ruim e muito negativa na questão da Dilma Rousseff. Eu acho que o Lula abandonou a Dilma, e isso, eu como mulher, vendo a primeira mulher eleita nessa situação, que é uma vergonha para esse país, a única que foi honesta, o tempo inteiro, é uma vergonha o que aconteceu e foi um ataque misógino. Eu, realmente, acho isso imperdoável na trajetória do Lula. Mas eu acho que são poucas figuras históricas que conseguiriam ter a grandeza que esse homem teve no processo. Muito impressionante tudo o que ele fez. Ele se entregar para a polícia, se entregar daquele jeito, ele ficar em Curitiba, não aceitar ir para uma prisão domiciliar, não aceitar ir para uma cadeia. Ele falar: “Eu não saio daqui”…

Entrevistei o Fernando Morais e ele me falou que o Lula lia muito na cadeia, muito, muito, muito. O Lula aproveitou para ler. E, segundo a legislação, cada livro que você lê, você reduz um dia da pena. E o Fernando perguntou se ele ia pedir. O Lula falou “não. Eu não vou sair daqui porque eu li livro, eu vou sair daqui porque eu sou inocente”. Uma pessoa que tem consciência do papel que ele tem na história e que tem consciência da sua inocência, convencer um país inteiro, que estava absolutamente convencido da sua culpa, é muito impressionante. Eu acho que a Lava Jato teve como consequência reforçar quem é Lula, e isso é muito importante. E acho que a imprensa brasileira também hoje peca em não reconhecer quem é Lula. Eu não sei porque a gente não viu grandes editoriais… Gente, esse homem é uma figura impressionante, é uma figura impressionante. É uma figura política de estatura semelhante ou superior ao que foi Getúlio Vargas na história brasileira. E eu acho que a nossa imprensa continua com ranços e não está reconhecendo. Obviamente, não é que agora Lula é um deus, vamos aplaudir tudo que ele fizer. Não é isso. Mas acho que você tem de colocar o peso histórico que as pessoas têm, e eu acho que isso ainda a imprensa continua pecando.

MLJ: E o que imagina que será daqui para frente do lavajatismo, até tendo em vista a eleição do Sergio Moro, de sua esposa, Rosângela, e do Deltan Dallagnol?
NATALIA: Eu acho que o lavajatismo, na verdade, acabou, tanto que esses três aderiram ao bolsonarismo. O bolsonarismo abraçou o lavajatismo e ele abraçou o lavajatismo porque ele trouxe… O bolsonarismo é muito relacionado com a ditadura, e na ditadura também era assim: você pode matar e torturar, mas você não pode roubar. Não que eles não roubassem, obviamente eles roubavam. Mas como a imprensa era silenciada não se aparecia. Então você tem até hoje uma visão de que os militares não roubam, de que os militares são ilibados, que os militares são bons administradores da coisa pública, que foi uma imagem muito bem construída pelos militares. E o bolsonarismo vive disso.

O que aconteceu: esses ex-membros do Poder Judiciário foram eleitos, mas viram que ou você se alia com as forças democráticas que estão com PT ou você se alia com as forças antidemocráticas que estão com Bolsonaro. E aí eles foram para lá. As pessoas que dizem “ah, estamos contra a corrupção”, essas pessoas já estão em outra, elas já estão falando que são contra o comunismo, que o Brasil vai virar Venezuela… Elas estão em outra. O que elas têm é ódio ao PT. O que eles têm é ódio à política de distribuição de renda. Então, assim, no fundo, no fundo, eu acho que o que é o “lavajatismo” chegou ao seu âmago, ao que há de mais profundo de quem são essas pessoas, que é o que estava naquela matéria que eu te comentei [com o professor da UFPR]. É uma visão classista do mundo. É uma visão de que tem gente que merece as benesses do Estado e tem gente que não merece. É a visão de quem acha que quem recebe bolsa-auxílio é vagabundo, esse tipo de coisa. Você tem uma série de valores ali que é o que forma a base do antipetismo.

Eu acho que o lavajatismo acabou, até porque essas figuras são figuras tão inábeis, são figuras inábeis politicamente… Não são políticos, né?! O próprio Moro jogando fora uma tremenda carreira de juiz, poderia ter sido levado pro Supremo, para ir pro governo Bolsonaro, acreditando no Bolsonaro, que o Bolsonaro tinha prometido que ele ia pro Supremo. Uma burrice sem tamanho, você entrar no governo de uma pessoa que é aliada, que defende a ditadura. E depois sair escorraçado do governo e voltar pro bolsonarismo só demonstra que a pessoa não tem jogo político. Eles poderiam ter criado um movimento deles, eles não conseguiram. Eu acho que o lavajatismo morreu e eles vão cada vez mais se aproximar do bolsonarismo, que esse sim está vivo, está muito forte, e obviamente com todos os percalços que vai ter o governo Lula, principalmente num momento de crise, de guerra, de alta no preço de alimentos que vai ter, só vai se fortalecer mais.

MLJ: E como que você definiria a Operação Lava Jato e o lavajatismo? O que foi esse capítulo da história brasileira?
NATALIA: A minha perspectiva é assim: foi uma força-tarefa que conseguiu galvanizar uma vontade da população, uma vontade da sociedade de mudança e vontade de combate à corrupção. A vontade de mudança e a vontade de combate à corrupção não são a mesma coisa, mas as duas vontades existem, existem em todo mundo: em mim, em você, em todo mundo. Foi uma operação estrategicamente muito inteligente, conseguiu durante muitos anos pautar a imprensa, ganhar a imprensa. Mas os seus membros se tornaram muito gananciosos – não sei se desde o começo eles tinham essa visão ou se no meio se tornaram gananciosos, passaram a buscar interesses próprios, vender palestra… Eles estavam muito, é o que ficou demonstrado ali na relação com os americanos, eles ficaram muito prestigiados, se sentiam muito prestigiados por serem chamados para falar nos Estados Unidos, sabe? Se achavam, enfim, um complexo de vira-lata estranhíssimo. E passaram a buscar o seu próprio poder, a sua própria ascensão, e aí que acho que é muito natural, vendo o percurso da Lava Jato, que hoje em dia Deltan e Moro estejam na política, porque ficou muito claro que era uma operação política. Então eu acho que foi uma operação que marcou a história, mudou a história do país, sem dúvida, e que foi desvirtuada, não sei se já no princípio ou no meio, pelas suas lideranças terem se tornado excessivamente gananciosas.

MLJ: Por último, quem quiser acompanhar o tsu trabalho quais são os canais, por onde acompanhar tudo o que você está escrevendo, produzindo?
NATALIA: Na Agência Pública, eu tenho um perfil Twitter, no Linkedin também. Mas só procurar Natalia Viana, da Agência Pública, que você me encontra.

José Augusto Ribeiro

Nascido no Rio de Janeiro e criado em Curitiba, José Augusto Ribeiro inicia sua carreira como jornalista ainda na adolescência, escrevendo e dirigindo um jornal publicado pelo diretório estudantil do Colégio Estadual do Paraná (CEP) e fazendo um estágio no Diário do Paraná, com Luiz Geraldo Mazza.

Em 1956 ingressa na Faculdade de Direito da Universidade do Paraná e, no mesmo ano, começa a trabalhar no jornal O Estado do Paraná, onde pouco tempo depois se torna editor de Política e editorialista e se empenha na elaboração de históricos editoriais em defesa da Campanha pela Legalidade em 1961, em prol da posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros.

Em 1963, quando Amaury Silva assume o Ministério do Trabalho, José Augusto vai para o Rio de Janeiro atuar como assessor do novo ministro, escrevendo, concomitantemente, para o Correio da Manhã. Deixa a administração pública após o golpe militar e então finca seu nome na imprensa carioca, sendo editor-chefe de O Globo, maior e mais importante jornal da época, por anos.

Foi ainda assessor de imprensa de Tancredo Neves na campanha presidencial de 1985 e de Leonel Brizola no pleito de 1994

Recentemente, lançou o livro “As duas guerras da Lava Jato contra Lula”, em parceria com o Instituto DECLATRA e com o apoio do GIPLAWFARE e do Museu da Lava Jato. A obra, disponível gratuitamente em versão digital, resgata e detalha os meandros da perseguição judicial e ideológica contra Lula e a democracia, num movimento que tentou destruir a Petrobras e possibilitou a ascensão de um governo de extrema-direita no Brasil. Esse resgate é enriquecido pela utilização de associações históricas, que recordam momentos importantes da história brasileira e de outros países.

É também autor de obras como “De Tiradentes a Tancredo Neves: Uma história das constituições brasileiras”, “A Era Vargas”, “Jânio Quadros: O romance da renúncia” e “Tancredo Neves: A Noite do Destino”.

Lançado em parceria com o Instituto DECLATRA e com o apoio do GIPLAWFARE e do Museu da Lava Jato, o livro “As duas guerras da Lava Jato contra Lula”, de José Augusto Ribeiro, detalha e recorda vários momentos marcantes da Operação Lava Jato, sempre fazendo associações com outros momentos da história do Brasil e de outros países. O livro ainda conta com o prefácio de Wilson Ramos Filho, presidente do conselho curador do MLJ. No seguinte link você encontra a obra, disponibilizado de forma gratuita:

entrevista exclusiva do museu

Vozes Dissonantes: José Augusto Ribeiro

MUSEU DA LAVA JATO: Primeiramente, qual seu nome completo, idade, a data de nascimento…
JOSÉ AUGUSTO RIBEIRO: O meu nome completo é comprido. Eu reclamava muito disso, até que um dia eu fui preso na época da ditadura. Perguntaram se eu era José Augusto Ribeiro e eu apontei para a minha identidade, o meu RG, como hoje se chama, que estava numa mesa e disse “não, é José Augusto Miranda de Souza Ribeiro”. Graças a Deus o cara que estavam procurando era só José Augusto Ribeiro. A acusação, o pretexto que eles tinha era contra José Augusto Ribeiro. Contra o José Augusto Miranda de Souza Ribeiro eles não tinham o mesmo pretexto, a mesma alegação, então, pela primeira vez na vida, esse nome compridíssimo me favoreceu.

Eu nasci no Rio de Janeiro, em 1938, no dia 11 de março.

MLJ: Como que o senhor acabou vindo parar no Paraná? Por que o senhor faz a faculdade de Direito aqui…
JOSÉ AUGUSTO: A minha mãe era de família de Santa Catarina, que se mudou para Curitiba quando ela estava no Rio, recém-casada com o meu pai, que era de Pernambuco. Eles se conheceram no Rio porque ela tinha primos que eram primos de pernambucanos. Então, numa festa de família, havia o pessoal catarinense e havia o pessoal pernambucano. Aí ela conheceu meu pai, acabaram se casando, moraram mais de um ano no Rio e eu nasci no Rio. Mas quando eu estava recém-nascido o meu avô materno e minha avó materna tinham se mudado para cá porque eles tinham 13 filhos e em Florianópolis, onde eles moravam, havia muita pouca faculdade e aqui [em Curitiba] havia já universidade. Não era reconhecida como universidade, mas havia faculdade de tudo, então se mudaram para cá em busca, exatamente, de dar oportunidade de educação para os filhos.

Meu pai e minha mãe se conheceram no Rio, casaram em Florianópolis, foram morar no Rio, e quando ela estava grávida e faltavam dois meses pro meu nascimento eles resolveram vir para Curitiba, onde ela teria o apoio da família dela. No Rio era um casal que tinha parente mais distante, não teria a cobertura que teriam junto com a família dela. Quer dizer, se a família dela tivesse continuado em Florianópolis, nós teríamos ido para Florianópolis, eu recém-nascido. Como tinham se mudado para Curitiba, viemos também para Curitiba. Eu morei aqui até 1963, quando já tinha 25 anos.

MLJ: E em 1956 o senhor ingressa na faculdade de Direito da Universidade do Paraná (hoje UFPR), no mesmo ano em que o senhor também começa a trabalhar como jornalista…
JOSÉ AUGUSTO: Eu já era jornalista. É uma afirmação pretensiosa que eu estou fazendo, mas eu estudei no ginásio alguns anos no Colégio Santa Maria. Depois meu pai não conseguiu mais pagar e eu fui pro Colégio Estadual, que foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida, porque eu tinha devaneios literários e o Colégio Estadual tinha um jornalzinho na época que era publicado pelo diretório estudantil, que se chamava Centro Estudantil do Colégio Estadual do Paraná. Eu primeiro colaborei nesse jornal e depois eu virei diretor desse jornal. Eu era estudante no segundo ano clássico – eu fiz o clássico porque pretendia estudar Direito e o clássico facilitava o vestibular. Então eu fui diretor desse jornalzinho já com fantasia de ser jornalista. E quando eu estava no último ano do colégio eu fiz um estágio no Diário do Paraná, que era um jornal recém-fundado dos Diários Associados [de Assis Chateaubriand]. A gente podia, na época, começar cedo a trabalhar, até porque a família precisava de ajuda. Então em 1954, com 16 anos, eu tive um emprego que durou pouco tempo num órgão federal, chamado Samdu. Era muito fácil na época, se você tivesse parentes que fossem bem relacionados, conseguir, sendo estudante, um emprego em Curitiba. Era a cidade que dava emprego para estudante.

Então eu trabalhei alguns meses no Samdu, que era o Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência da Previdência Social, agora se chama Samu. Mas depois eu consegui um emprego na Câmara dos Vereadores como redator, porque o ensino no Colégio Estadual era tão bom que o aluno ainda do curso clássico podia ser redator na Câmara Municipal de Curitiba. E foi aí que eu mudei, virei diretor do jornalzinho do colégio, em 1954. Já com fantasias políticas, tanto que o jornal era meio literário, mas quando houve a crise de agosto de 1954, que eu acompanhei muito de perto – meu pai era do PTB, o PTB da época, de Getúlio [Vargas], não era o PTB de Roberto Jefferson. Então eu era, como o meu pai, muito getulista e quando houve a crise de agosto de 1954 nós resolvemos tentar fazer uma homenagem ao Getúlio no jornal da escola, quando ele se suicidou. Mas o jornal era mensal e nunca tratava de assuntos políticos. Aí nós fomos conversar com o diretor do Colégio, o diretor Ribeiro, um diretor famoso do Colégio Estadual, e ele disse assim: “Mas vocês querem colocar política no jornal dos alunos, do colégio?”. Estávamos eu e meus dois colegas da direção do jornal, Rodolfo Konder e Paulino Kotaka. Então nós fomos conversar com o professor Ribeiro e ele fez sua objeção e eu comecei a dizer “professor, é que o Getúlio criou o Ministério da Educação, fez isso, fez aquilo”, e o professor Ribeiro foi se deixando envolver e no fim ele deixou a gente fazer o jornal com a capa com o presidente Getúlio Vargas. Foi a primeira vez que o jornalzinho do Colégio Estadual do Paraná publicou alguma coisa política. Claro que nós fizemos com cuidado, ele disse “vocês explorem não o lado político do Getúlio, mas a importância dele para a educação”. E a conversa virou tão boa que nós já estávamos saindo da sala dele quando ele chamou de novo: “Ei, ei. Vocês esqueceram uma coisa: ele [Getúlio] que criou a faculdade de Filosofia, para formar professor. Ponham isso”. Então você vê que coisa inacreditável na década de 1950 acontecer um episódio desse tipo… Então eu já tinha essa propensão por hereditariedade.

Daí fui trabalhar como redator na Câmara Municipal e os colegas meus da nossa seção, chamada de Redação de Debate, eles percebiam o meu interesse por jornalismo e um deles era muito amigo do Lulu Mazza [Luiz Geraldo Mazza]. Ele me disse um dia assim: “Você não quer fazer um teste no Diário do Paraná?”, que era o jornal onde o Mazza era chefe de jornalismo. Eu disse “quero, você me apresenta lá?”. Aí esse colega me apresentou, eu fui falar com o Mazza, fiz um teste lá, durou um mês e tanto. Mas era até complicado, por questão de tempo, porque eu estava no último ano do curso clássico, me preparando para o vestibular, não tinha recursos para frequentar um cursinho pré-vestibular e tinha que me preparar para o vestibular em casa, trabalhando a tarde na Câmara Municipal, tendo aula de noite… Então fiquei um mês e pouco como estagiário com o Mazza lá no Diário do Paraná.

No ano seguinte, em 1956, eu já estava na faculdade quando a empresa que publicava O Estado do Paraná, que era o maior jornal daqui, criou um vespertino, que existe até hoje, a Tribuna do Paraná. E um amigo do meu pai, que ficou meu amigo, companheiro dele no PTB, era jornalista, gostava muito de mim, me tratava muito bem e um dia me procurou na Câmara Municipal e disse “Olha, acho que vou conseguir para você um trabalho em jornal. Você topa?” Eu disse: “Claro que topo!” Então me apresentou para o pessoal da Tribuna do Paraná e eu comecei trabalhando na Tribuna e pouco depois fui transferido para O Estado do Paraná.

No Estado do Paraná eu comecei em 1956 e um ano depois o editorialista e colunista político do jornal saiu, foi trabalhar em outro jornal. E quem ficou escrevendo o editorial do jornal foi o secretário de redação do jornal, o João de Deus Freitas Neto. Num dia ele estava assoberbado de trabalho, não estava conseguindo dar conta de tudo, ele me chamou e disse para fazer o editorial. Quer dizer, eu era estudante de Direito, coisa e tal, ele devia saber do jornalzinho do colégio, achou que eu podia em uma noite fazer o editorial e eu fiz sobre a Petrobras. E passou, no outro dia ele pediu de novo e eu acabei sendo promovido a editorialista e passei a fazer também a coluna política do jornal. Daí eu enveredei por esse ramo e fiquei no estado até que em 1963 foi nomeado ministro do Trabalho um senador recém-eleito do PTB, Amaury Silva, que eu tinha conhecido na Assembleia Legislativa – porque depois da Câmara eu fui trabalhar na Assembleia e lá conheci os deputados

todos. E ele me convidou, assim como ao Jairo Régis, outro jornalista daqui, para trabalhar com ele no Ministério. E eu fui para lá, tive um convite para trabalhar no Correio da Manhã, que era dirigido pelo Jânio de Freitas, mas o trabalho no Ministério era tão absorvente que eu só conseguia trabalhar dois dias no Correio da Manhã. Mas foi bom porque eu finquei o pé na imprensa carioca, então quando o governo do Jango foi derrubado eu continuei no Rio, até porque que oportunidades eu teria de voltar a fazer jornalismo no Paraná, eu tendo trabalhado como assessor de um ministro que teve o mandato e os direitos políticos cassados?

MLJ: E em 1961 o senhor participa também ativamente, como editorialista e editor de política, da Campanha pela Legalidade, uma mobilização para garantir a posse de João Goulart à sucessão de Jânio Quadros…
JOSÉ AUGUSTO: Sim. O dono do jornal, o doutor Aristides Merhy, não era um homem de esquerda, era um homem de centro, esclarecido. Tanto que eu já tinha posições de esquerda e fui editorialista e editor político do jornal desde esse momento em que o Freitas me chamou para fazer aquele tal editorial. Era uma época de muita abertura política, você podia ter pessoalmente as suas ideias. Claro, você não ia abusar da sua função para fazer proselitismo político, mas sempre um pouquinho influenciava. Então o jornal, por decisão do dono, do doutor Merhy, apoiou a Campanha pela Legalidade e eu que escrevi os editoriais, que tiveram repercussão porque eram a favor da legalidade e o movimento foi muito grande. Então fora do jornal eu participava de comício, um movimento popular muito grande na época. Eu, como editorialista, eu tenho de escrever a opinião do jornal. Mas é claro que a gente tem maneiras, ainda que não queira influir, você influi. E o que eu propunha o doutor Merhy achava que eram ideias simpáticas e deixava, tanto que o jornal lutou pela posse do Jango, em regime presidencialista, depois da renúncia do Jânio Quadros. Além dos editoriais a favor da posse do Jango, por sugestão minha nós pusemos um letreiro, em letras grandes vermelhas, enviesadas, atravessando a página na diagonal, dizendo assim: “Parlamentarismo é golpe”. O jornal atravessou uma fase de muita popularidade por essas posições que eram sugeridas por mim.

MLJ: E depois do golpe militar de 1964, da passagem pelo Ministério do Trabalho, o senhor começa a construir uma carreira nas grandes redações do Brasil, trabalhando em O Globo, O Cruzeiro, Jornal do Brasil, Correio da Manhã, Rede Bandeirantes…
JOSÉ AUGUSTO: Deu para perceber que eu não tinha condições de voltar [para Curitiba] naquele momento e os jornais estavam muito abertos para jornalistas ligados ao governo do Jango, como eu, que trabalhei no Ministério do Trabalho. Eu dirigi um setor de sindicalização rural no Ministério do Trabalho, até fui alvo de um inquérito administrativo. Mas logo me apareceram duas chances de trabalhar em jornal. Fui trabalhar no Diário Carioca, um jornal pequeno, mas muito gostoso de trabalhar. O jornal inteiro tinha 12 páginas, o noticiário internacional era uma página só, enquanto que no Jornal do Brasil eram três, quatro, cinco páginas. Eu fui contratado para fazer o noticiário internacional, depois fui editorialista também. Com isso me enraizei no Rio. Depois apareceu uma chance de trabalhar n’O Cruzeiro, aquela revista semanal.

Quer dizer, eu nem podia pensar em voltar para o Paraná porque eu não teria, em Curitiba, a mesma situação profissional que eu tinha no Rio. Aí o Vicente, meu filho, já tinha nascido e eu fiquei em definitivo lá.

MLJ: E como era ser jornalista nesse período? O senhor chegou a ser preso, sofreu algum tipo de represália do regime?
JOSÉ AUGUSTO: Não, eu fui preso bem depois. No começo [do regime militar], não. Havia uma infusão de inteligência nos grupos militares mais retrógrados, por influência do Dr. Roberto Marinho. Isso depois eu fui trabalhar n’O Globo e ele contava. Ele contava, por exemplo, que a primeira pessoa a quem ele ofereceu emprego depois do golpe foi o Franklin de Oliveira, que até então trabalhava com o Brizola. Brizola era deputado federal, tinha sido governador do Rio Grande [do Sul] e era candidato à presidência da República. O Franklin já tinha trabalhado n’O Globo e quando caiu o governo [Jango], uma das primeiras coisas que o Dr. Roberto fez foi chamar o Franklin para trabalhar n’O Globo. Alguém na área militar reclamou, e isso ele contava com o maior orgulho, e ele disse: “Olha, eu acho que eu pratico um ato patriótico dando emprego ao Franklin de Oliveira, porque se ele não tiver uma oportunidade profissional para sustentar a família, ele vai acabar entrando em algum grupo de contestação armada do governo. Eu estou protegendo o regime de vocês”. Ele era muito independente em relação aos militares.

Então eu trabalhei no Diário Carioca em 1964 e em 1965 o jornal fechou. Trabalhei também no O Cruzeiro, uma revista semanal que depois fechou. Ainda não existia um modelo de revista tipo Veja, eram revistas grandes, como a Manchete. Depois eu fui trabalhar no jornal…

Havia muita chance de emprego, a verdade é essa. As pessoas sabiam qual era teu passado político, mas havia [muita oportunidade]. E no começo eu não fui incomodado lá no Rio. Eu comecei a ser incomodado pelo famoso inquérito da Última Hora aqui do Paraná. Eu no Rio e fui denunciado por um promotor chamado Benedito Felipe Rauen, que era muito ligado à Igreja [Católica]. Eu já tinha uma história com esse camarada.

Enquanto eu trabalhava n’O Estado do Paraná, o Dr. Aristides Merhy, que era o dono, um dia me disse “eu acho que devíamos fazer um editorial sobre a inauguração do novo prédio da reitoria da universidade, porque eu soube que esse prédio vai ter uma capela católica e é uma universidade pública. Por que você não faz um editorial dizendo que a universidade deve ter uma sala de cultos abertas a todas as confissões?”. Eu disse “ótimo”. O reitor era o famoso Suplicy [Flávio Suplicy de Lacerda], que foi ministro [da Educação] depois do golpe. Daí eu fiz um editorial no jornal, não assinado, porque não era minha opinião, era a opinião do jornal. Eu sei porque o Dr. Merhy me sugeriu isso. É que o filho dele tinha um problema de nascimento na perna, ele usava um aparelho na perna, era uma forma de paralisia infantil, e como as soluções habituais não deram resultado, ele acabou indo procurar a medicina espírita e ficou muito agradecido pela atenção. Ele não era pessoalmente espírita, ele era filho de libaneses, era católico maronita, se eu não me engano, mas muito grato ao pessoal espírita e esse pessoal é que foi falar com ele para contar da capela católica no prédio da reitoria, que ia ser inaugurado.

Eu escrevi o artigo como ele tinha sugerido, dizendo que a universidade devia ter uma sala de cultos abertas a todas as confissões. Na semana seguinte um jornalzinho católico que existia aqui, chamado Voz do Paraná, um jornal pequeno com circulação semanal e que era oferecido nas igrejas nas missas de domingo, publicou um artigo de um colaborador, que vinha a ser também promotor da Justiça Militar. O artigo ia contra o editorial d’O Estado dizendo que aquele artigo não assinado tinha sido escrito pelo jornalista comunista José Augusto Ribeiro. O cara era meio… meio não, era inteiramente pirado. Eu vi o artigo, achei graça, mas quando começou o IPM [Inquérito Policial Militar] da Última Hora, que foi produto de uma denúncia-crime dele [promotor Rauen], eu que tinha trabalhado na Última Hora, em 1962, fui denunciado como um dos réus, sendo que em 1964 eu já estava no Rio há mais de um ano.

Então no Rio eu não fui processado depois do golpe. Houve uma investigação, houve um inquérito administrativo no Ministério do Trabalho, não fui indiciado, e fui indiciado depois aqui em Curitiba por esse promotor Benedito Felipe Rauen e volta e meia eu tinha que vir aqui para as audiências na auditoria militar. E o processo acabou por um habeas corpus ou do STM ou do Supremo, que foi impetrado pelo René Dotti.

Quer dizer, diante desse processo eu não podia nem pensar em voltar para o Paraná. Já que eu tinha emprego no Rio, fico no Rio. Aí eu trabalhei no Diário Carioca, em O Cruzeiro, trabalhei no Jornal do Brasil, na Última Hora. Onde eu mais tempo trabalhei foi no O Globo, eu fui editor-chefe d’OGlobo, com os antecedentes que eu tinha. E o Dr. Roberto Marinho dizia “Olha, eu prefiro gente como vocês, que vocês sabem tomar cuidado. O pessoal que não tem problema como vocês têm não toma cuidado nenhum e vive fazendo besteira”. Então eu fui editor-chefe d’O Globo, numa época em que ser editor-chefe era a mesma coisa em qualquer jornal porque tinha a censura.

MLJ: Agora entrando no assunto da Lava Jato, a operação começa em 2014. O senhor recorda quais foram os primeiros contatos que teve com a Lava Jato?
JOSÉ AUGUSTO: Quando a Lava Jato começou, em março de 2014, eu estava muito mal informado sobre tudo, não só sobre a Lava Jato. Eu tinha tido um AVC em julho de 2013 e passei os meses seguintes em casas de repouso de idosos e no hospital Sarah Kubitschek, em Brasília. E tanto nessas casas como no hospital o único acesso que eu tinha à informação era o televisor na enfermaria, mas nem sempre eu via, nem sempre estava no local e essa coisa toda. No fim de 2013 eu vim para Curitiba e aí voltei a ter computador, no computador tinha acesso ao O Globo, UOL, acesso à Globonews, e comecei a acompanhar de longe a Lava Jato.

Em nenhum momento eu tive qualquer expectativa boa em relação a ela. Só depois é que eu percebi qual era a verdadeira origem da Lava Jato, mas naquela época o que eu percebia é que estavam caçando o Lula e a minha reação era a seguinte: nunca me passou pela cabeça, em nenhum momento me passou pela cabeça, que o Lula pudesse ser beneficiado dos fatos que eram denunciados. Eu achava que talvez ele não tivesse experiência de controlar toda a equipe do governo, porque a presidência da República foi o primeiro cargo público que ele exerceu de função executiva. Ele tinha sido candidato várias vezes e tinha sido deputado constituinte. Antes disso, só a experiência sindical dele.

Eu tinha trabalhado anos antes com o presidente Tancredo Neves e com o Brizola, verdade que em eleições presidenciais, mas sabia da experiência dos dois: Tancredo foi prefeito, foi ministro, foi governador, foi primeiro-ministro. Quer dizer, quando chegou à presidência tinha um lastro de experiência muito grande. E o Brizola foi secretário de Estado, foi prefeito, governador do Rio Grande [do Sul] e depois foi duas vezes governador do Rio [de Janeiro]. Então o que dá para comparar em matéria de experiência é que tanto o Tancredo como o Brizola tinham sintonia mais fina pra controlar a ação dos seus subordinados. Eu fui testemunha na campanha em que participei com os dois dos cuidados que eles tinham, da maneira competente e delicada com que eles controlavam a sua equipe. Eu achava que o Lula estava sendo vítima de não ter uma experiência comparável à do Tancredo e do Brizola.

Eu fui acompanhando de longe e até me lembro que na época surgiram notícias de que o Sergio Moro seria ligado ao PSDB. O meu amigo Fábio Campana, que era o jornalista mais bem informado de Curitiba, eu perguntei a ele e ele disse “não, o Sergio Moro não tem ligações com o PSDB. A mulher dele tem ligações, pela Associação de Pais e Amigos Excepcionais, com o senador Flávio Arns, que era do PT. Portanto, nesse ponto, essa acusação parece que não procede”. Mas nessa mesma hora ele me disse: “Olha, esse promotor aí, o Dallagnol, sobre ele eu tenho outras informações. O Dallagnol, além de procurador, é pregador numa igreja neopentecostalista e, além disso, é uma pessoa de perfil psiquiátrico muito discutível. Pelo que eu sei”, disse o Fábio, que não era nenhum simpatizante do PT, pelo contrário, era insuspeito porque era um antipetista por definição, ele disse “olha, esse Dallagnol aí não faria feio em nenhum hospício do mundo”.

Aí já deu para perceber, eu comecei a prestar atenção nos procedimentos, e fiquei escandalizado já em 2016, em março de 2016, quando houve a condução coercitiva do Lula. Eu sou formado em Direito, na minha época de estudante ainda não havia aqui em Curitiba nenhuma faculdade de Comunicação, então estudei Direito. E pelo que eu tinha aprendido na faculdade, muitos anos antes, condução coercitiva só pode ser decretada quando uma pessoa foi intimada para comparecer perante à Justiça e não comparece e nem oferece uma justificativa plausível. Eu fiquei tão chocado com aquilo que eu resolvi escrever um artigo para O Globo. Estava afastado do jornal há muito tempo do jornal, mas tinha encontrado um ex-colega, o Aluizio Maranhão, que era o editor de Opinião d’O Globo, o encontrei por acaso, num lançamento de livro, e ele disse “olha, quando o senhor tiver um assunto interessante, escreve e me manda”. Aí eu escrevi contra a condução coercitiva do Lula e nesse artigo teve um trecho que eu precisei cortar, porque o tamanho era muito limitado. Eu dizia que o Sergio Moro estava fazendo com o Lula o equivalente à melhor coisa que os colonizadores ingleses tinham feito com o Gandhi durante a campanha pela independência da Índia. Cada vez que prendiam o Gandhi, davam uma reação incisiva do oposto. O Gandhi vinha com uma greve de fome e coisa e tal e acabou jogando os ingleses fora da Índia quando conseguiu a independência. Esse trecho tive que acabar tirando, mas eu descrevi, situei mais ou menos a situação e terminei dizendo o seguinte: “o Lula, aparentemente, não tinha maiores pretensões de voltar à Presidência. Mas com essa condução coercitiva conseguiram uma coisa: ele se transformou num candidato forte para voltar à Presidência”. Isso em 2016.

MLJ: Mas no livro “As duas guerras da Lava Jato contra Lula” o senhor relata que foi um outro episódio, ocorrido cerca de um ano depois, que lhe motivou a começar a produzir a obra, pesquisar mais a fundo…
JOSÉ AUGUSTO: Fiquei acompanhando e houve, no início de 2017 – e foi aí que eu comecei a escrever meu livro – houve a prisão do Eike Batista. Foi decretado acredito que numa sexta-feira e o fim de semana inteiro foi ocupado pela GloboNews com uma expectativa sobre a prisão dele. O Eike tinha viajado para Nova Iorque usando o passaporte alemão, do qual ele era portador, a mãe dele era alemã. Ele podia tranquilamente pegar um avião em Nova Iorque e ir para a Alemanha, que não o extraditaria. A Alemanha não extradita cidadão alemães a não ser por um motivo muito forte, o sujeito é pedófilo, traficante de droga… O Eike não seria extraditado, mas ele resolveu voltar pro Brasil.

Eu pensei “bom, chegando lá vão dispensar a prisão porque é uma demonstração de boa-fé que ele está dando”. Até grandes milionários dão demonstração de boa-fé, eu pensava assim. E, ao contrário, o que aconteceu foi a prisão dele transformada num espetáculo hollywoodiano. Um helicóptero da GloboNews acompanhou o carro em que a Polícia Federal levou o Eike do Galeão até o presídio de Benfica, que era uma espécie de entreposto de presos. Ele foi primeiro a Benfica para depois decidirem em que presídio ele ficaria. E ele chegou a ir para Benfica com a roupa e aparência que ele tinha ao embarcar em Nova Iorque. Quando ele saiu de Benfica ele estava com o cabelo tosado. O cabelo, não, a peruca. Foi até um episódio engraçado, porque em Benfica iam passar a máquina de cortar na peruca do Eike, que devia ser uma peruca high-tech, a melhor peruca do mundo. Parece que ele foi quem avisou “olha, eu tiro a peruca”. E eu achei aquilo uma coisa imprópria, um escândalo. Os jornais já detalhavam como é que era a cela que ele ia ficar, era uma cela coletiva, não tinha chuveiro, a água vertia da ponta de um cano, não tinha privada, tinha um buraco no chão. Isso não é para cumprir uma ordem judicial, isso é para humilhar, para pisar em cima. E ele de fato saiu do presídio de Benfica já tosado, com o uniforme de presidiário: uma camiseta, uma calça jeans e de sandália Havaiana.

Aí na mesma hora eu comecei a escrever o que eu estava vendo pela televisão e lendo pelos jornais. E isso virou o que na primeira edição do livro foi o primeiro capítulo. Ao acompanhar aquilo tudo, me surgiam associações e ideias. E eu me lembrei, por exemplo, que esse negócio de tosar o cabelo das pessoas acontecia nos campos de concentração nazista. Os judeus, que eram levados pros campos de concentração, tinham o cabelo raspado. Foi o que aconteceu com o Eike. E eu me lembrei também que isso era uma maneira de estigmatizar a pessoa, não era de cumprir aquela ordem judicial, que era simplesmente de prender para ele não prejudicar provas. Fugir não tinha cabimento ele pensar depois de ele não ter ido, como homem livre, de Nova Iorque para a Alemanha. Então eu comecei a escrever, vieram associações e ideias.

Além dos campos de concentração eu lembrei que sempre você acaba dando uma rasteira nesses perseguidores tão extremados. Me lembrei que quando o Hitler invadiu a Europa, a parte ocidental da Europa, um dos países invadidos foi a Dinamarca. E ele deu ordem para que na Dinamarca os judeus que viviam em liberdade fossem obrigados a andar com aquela estrela de Davi colada na lapela da roupa. E eu me lembrei, coisa que eu tinha lido, que foi um episódio que me marcou muito, achei uma coisa genial o que aconteceu. Quando houve a ordem do Hitler para os judeus todos da Dinamarca usarem a estrela de Davi, o rei mandou um dos conselheiros dele avisar o general nazista que, se a ordem fosse posta em prática, ele próprio, o rei, iria usar na roupa dele a estrela de Davi. Era uma forma de resistência muito inteligente e emocionante. E foi aí que eu comecei, de fato, a trabalhar no livro e resolvi me informar melhor.

Eu fui procurar o Nilo Batista, ex-governador do Rio, meu amigo, meu companheiro de luta no PDT junto com Brizola. O Nilo é um dos maiores criminalistas brasileiros, eu liguei no escritório dele, fui lá e expus as minhas dúvidas sobre o caso do Eike. Ele concordou comigo, disse que a minha interpretação sobre a condução coercitiva ainda estava em vigor, aquilo parecia uma arbitrariedade. Aí um sócio dele do escritório, Rafael Borges, participou da conversa e achou no computador decisões do STJ e do próprio Supremo dizendo que a prisão se torna dispensável quando a pessoa se apresenta ou mostra boa-fé. Quer dizer, o Supremo já tinha decidido, antes do fato, que aquela prisão do Eike era tão ilegal quanto tinha sido, no ano anterior, a condução coercitiva do Lula. Aí eu vi que o negócio era muito mais assustador do que parecia até então. Já era assustador no caso do Lula e fica mais assustador no caso do Eike.

Aí eu passei a trabalhar sistematicamente no livro. Não era em tempo integral porque eu estava com outros trabalhos na época, mas o que é que eu fazia: a edição digital dos jornais, na época, permitia que você copiasse as notícias. Então eu copiava a notícia da Folha, d’O Globo, do UOL, e colocava no computador por ordem cronológica, por data. E coisas que apareciam na GloboNews eu escrevia, eu reconstituía e fui assim criando uma base de dados. E na medida em que os fatos iam acontecendo, eu ia escrevendo, porque a Lava Jato foi uma coisa vertiginosa. Hoje eu suponho saber porquê.

Eu ignorava na época, um buraco de memória por causa do AVC, eu ignorava quase todos os fatos relativos ao escândalo que motivou o cancelamento de uma viagem da Dilma, que era presidente da República, aos Estados Unidos. Foi a espionagem da NSA (National Security Agency), tanto em relação à Dilma, que eles conseguiram até o prontuário médico do caso de câncer que ela tinha tido anos antes, e espionaram a Petrobras. Eu tinha uma vaga noção disso, mas agora, mais recentemente – isso até não figura no livro da Lava Jato, figura no livro que estou terminando de escrever agora que é a história da Petrobras – e escrevendo agora a história da Petrobras é que eu fui investigar isso e verifiquei que em 2013 teve a espionagem americana na Petrobras. Em 2014 começou Lava Jato. Eu não pude ir muito longe nessa pesquisa porque, não sei se desde o governo Temer, mas no governo Bolsonaro os arquivos da Petrobras estão praticamente fechados. Se a gente entra no site da Petrobras, tem muita pouca coisa. Mas eu acho que agora, com a mudança de governo, vai ser possível fazer uma investigação reversa, investigar como foi a Lava Jato. E eu tenho a intuição ou a expectativa de que o que a espionagem na Petrobras procurou em 2013 não foram dados sobre o pré-sal, foram dados sobre diretores. Os mesmos diretores que um a um, numa coisa rapidíssima, a Lava Jato foi pegando, prendendo e impondo as delações premiadas.

Eu faço questão de dizer isso nesse depoimento porque é até uma sugestão ao Museu da Lava Jato investigar a Lava Jato. Não com intuito punitivo, mas para que não aconteça de novo. Foi uma frase que eu ouvi de um deputado judeu, Alberto Goldman, na época da ditadura militar, ele falando numa CPI da Câmara dos Deputados. Estavam investigando a possibilidade de ter havido ações antissemitas na política da ditadura, em relação à questão nuclear. E o Goldman, que era deputado eleito pelo MDB, mas era do partido comunista… Eu lembro que estava prestando depoimento na tal comissão da Câmara o ministro de Minas e Energia, César Cals. E o Goldman disse assim: “Ministro, nós, judeus, não podemos esquecer. Não porque queiramos vingança, mas para que não aconteça de novo”.

Eu acho que a Lava Jato precisa ser investigada para que não aconteça de novo. Porque ela pôs na cadeia um ex-presidente absolutamente inocente, ela agiu contra Deus e o mundo no quadro político brasileiro e ela destruiu empresas cujos dirigentes podem ter cometidos infrações penais da maior gravidade, mas quantos milhões de brasileiros ficaram sem emprego por causa disso? Quanto economias estrangeiras penetraram na economia brasileira? A engenharia brasileira era famosa no mundo. Depois da construção de Itaipu, o governo chinês mandou técnicos aqui para aprenderem como é que se fazia uma usina desse tamanho. A China construiu a usina de Três Gargantas, que é com Itaipu uma das duas maiores do mundo, foi porque a engenharia brasileira tinha um expertise que outras não tinham.

Então juntando as duas coisas, juntando a espionagem da NSA no governo brasileiro e na Petrobras com a Lava Jato, você vê que a Lava Jato é fruto dessa ação para destruir não só a Petrobras, como destruir a engenharia brasileira.

Quer dizer, a Lava Jato, na verdade, foi uma operação de espionagem realizada sob orientação de centrais estrangeiras de diligência contra a República e o povo do Brasil. Foi isso, né. Acho muito importante o trabalho que vocês estão fazendo em relação a tudo isso, porque é inacreditável como isso pôde acontecer. É claro que contou com a cumplicidade de uma mídia cujos controladores estavam com sede de liquidar o Lula, não pensaram que estavam no fundo prejudicando os próprios interesses deles. Porque se o Brasil entrou em recessão a partir desses episódios todos, eles também, as televisões deles e tal, foram prejudicadas, a ponto de hoje não terem o peso econômico que tinham dez anos atrás.

MLJ: E logo na abertura da segunda edição do livro o senhor recorda uma entrevista muito curiosa do Onyx Lorenzoni ao Roberto d’Ávia, na GloboNews.
JOSÉ AUGUSTO: Foi por acaso que eu peguei isso. Eu sempre vi o programa do Roberto d’Ávila porque nós somos amigos há muitos anos, inclusive fomos companheiros juntos com o Brizola no PDT. E eu fui ver a entrevista porque era feita pelo Roberto, não pelo entrevistado, que para mim era uma figura insignificante – e continua sendo.

Lá na entrevista ele começou a contar e eu prestando atenção, fui pro computador, fui anotando o que ele ia dizendo, que o Moro acompanhou a CPI do Mensalão e que ele disse que se houvesse certas mudanças [na legislação] que vieram depois, como a implementação da delação premiada, o Mensalão teria chegado ao Lula. Quer dizer, o Moro estava lá atrás [perseguindo o Lula]. Há muitas suspeitas, o Moro andou estudando nos Estados Unidos e essa coisa toda. E na época da CPI da qual participou o Lorenzoni, que foi a CPI do Mensalão, ele participava da CPI e acompanhou, orientou… Orientou não digo, porque não acho que ele tivesse essa importância na época. Eu acho que ele estava fazendo um estágio no Supremo e dava uma fugidinha para acompanhar os trabalhos da CPI. E o que ele diz: que com instrumentos legais, que foram adotados depois, inclusive em governos do PT, no governo da Dilma, é que foi possível o negócio da delação premiada e aquele tipo de delação premiada que presos podiam fazer.

Quer dizer, isso tudo foi uma grande conspiração que ajudou a promover o impeachment da Dilma e, com a prisão do Lula, ajudou a eleição do Bolsonaro. Houve, no Brasil, uma contrarrevolução radical de extrema-direita, contra a qual não houve possibilidade de reação. Mas, enfim. Como a história não permite que certas situações se eternizem, a coisa toda virou. Hoje, em vez da Lava Jato estar fazendo o julgamento dos inocentes que ela pegou e alguns culpados que ela também pegou, está havendo o julgamento da opinião pública e com a última eleição a coisa virou completamente.

MLJ: Você acredita, então, que a Lava Jato vinha sendo pensada, vinha sendo gestada lá atrás com esse intuito de perseguir a esquerda, em especial o PT e o Lula?
JOSÉ AUGUSTO: A tentativa de acabar com o Lula é muito anterior à Lava Jato. Se fosse possível ele nem teria sido eleito, não teria sido candidato. Na época da entrevista ao Roberto d’Ávila, o Onyx Lorenzoni era deputado e ia ser nomeado chefe da Casa Civil do Bolsonaro no início do governo dele. Nessa entrevista ele contou – contou de alegre, porque foi só ruim ele ter contado -, que o Sergio Moro já estava atrás do Lula muito antes da Lava Jato. Estava atrás do Lula na época da CPI do Mensalão, no primeiro governo Lula. Então essa entrevista do Lorenzoni revela que o Moro já estava na conspiração muito antes. Parece que ele, na época da CPI do Mensalão, trabalhava no Supremo e dava uma fugidinha do trabalho e ia acompanhar as sessões da CPI, na qual o Lorenzoni era uma figura destacada e barulhenta. Então o Lorenzoni, na entrevista ao Roberto d’Ávila, diz que o Moro não pegou o Lula na época da CPI do Mensalão porque ainda não existia a delação premiada, que ainda não existia na época e passou a existir graças a um governo do PT. Então o Moro já estava na época profundamente interessado em pegar o Lula, em acabar com o Lula. Era uma coisa obsessiva.

Ele, na trajetória dele pelo poder judiciário, tem coisas assim… Teve uma bolsa de estudo em Harvard, nos Estados Unidos, pode ter tido contatos lá com órgãos americanos interessados no que acontecia no Brasil, que a gente sabe que depois aconteceu porque a Lava Jato atuou muito em colaboração com órgãos do Judiciário e órgãos investigativos do governo americano. É inevitável nesses casos um certo envolvimento com a CIA e outros órgãos de inteligência do governo americano. Então essa coisa vinha lá de trás. E o que o Lorenzoni diz nessa entrevista ao Roberto d’Ávila, sem pedir reserva nenhuma, é que o Moro já estava, lá na época do Mensalão, atrás do Lula, coisa que ele conseguiu já depois, no governo da Dilma, e acabou ele pondo o Lula na cadeia pro Lula não poder ser candidato contra o Bolsonaro. Contra o Bolsonaro por acaso, o Bolsonaro foi presidente por acaso. A verdade é que aquela direita magrinha, comportada, não conseguiu avançar naquele processo todo e o Bolsonaro, com os desmandos verbais dele, aquela coisa toda, acabou sendo o candidato inevitável. E o Moro não teve constrangimento nenhum de ser ministro da Justiça de um presidente como o Bolsonaro.

Então você vê que essa coisa vinha lá de trás. E é uma coincidência que todo esse empenho contra o Lula se torna mais intransigente na medida que a Petrobras vai avançando nas suas descobertas de petróleo, na medida em que surge o pré-sal. É claro que um país como o Brasil descobrir uma reserva de petróleo dessa magnitude desperta duas reações: primeiro, não pode deixar um país do terceiro mundo operacionalizar uma fonte de energia como essa, num momento em que o mundo inteiro está lutando pelo controle das reservas de petróleo. Isso é uma coisa. Segundo, não pode deixar um governo como o do Lula permaneça no poder ou chegue no poder.

O governo da Dilma foi afastado pelo impeachment, um impeachment que hoje todo mundo acha ridículo. Ainda outro dia na televisão o Ratinho, não sei se entrevistando o Lula ou entrevistando o Haddad, fez um comentário que pareceu de graça, mas que na verdade é uma maneira de dar uma opinião. Ele disse “Pois é, quando falavam em pedalada eu ficava pensando em coisa de bicicleta, o que é isso”. Pedaladas eram manobras fiscais que tiveram esse apelido por acaso e aproveitaram, depois ficou inteiramente desmoralizado.

Quer dizer, tiraram a Dilma para depois poder se apoderar do pré-sal, foi esse o objetivo. Botaram o Lula na cadeia para impedir que ele fosse presidente porque ele derrotaria qualquer outro candidato, como agora foi o vencedor inquestionável.

A Petrobras, quando foi criada nos anos 1950, era menos ameaçada do que hoje porque o Brasil não tinha descoberto reservas de petróleo como descobriu no governo do Lula. E o Lula sabe muito bem, por isso a cautela dele depois da eleição. Ele sabe muito bem que o governo dele vai ser patrulhado dia a dia, hora a hora, segundo a segundo, para impedir que ele faça certas coisas e para derrubá-lo se ele conseguir fazer. Ele sabe disso. A Lava Jato serviu a esse objetivo.

MLJ: O senhor é também autor de “A Era Vargas”, obra publicada em três volumes, e teve atuação destacada como jornalista durante a ditadura militar. De que forma esses diferentes momentos históricos se assemelham, se parecem com o que houve durante a Lava Jato?
JOSÉ AUGUSTO: Na verdade é tudo a mesma coisa, né?! O governo Vargas, o que decretou o fim do governo Vargas, a liquidação do governo Vargas, foi a Petrobras. No dia 1º de agosto de 1954 a Petrobras, criada por uma lei do ano anterior, assumiu controle de todas as reservas de petróleo conhecidas no Brasil, assumiu a única refinaria que existia, que era a de Mataripe, que agora foi vendida no governo do Bolsonaro. Então no dia 1º de agosto de 1954 a Petrobras assumiu o controle dos recursos petrolíferos do Brasil. No dia 5 houve o atentado contra o Carlos Lacerda e houve a crise toda de agosto, na qual o Getúlio deu uma virada genial com o suicídio dele, porque impediu que se instalasse uma ditadura militar no Brasil ou um governo que tentasse acabar com a Petrobras.

Durante aquela crise de agosto, provocada pelo atentado contra o Carlos Lacerda, o sub-chefe do gabinete militar da Presidência, o General Mozart Dornelles, foi conversar com Assis Chateaubriand, que era o rei da mídia, o todo poderoso, era o que seria depois o Dr. Roberto Marinho. Eles se conheciam desde a Revolução de 30, então o general Dornelles foi conversar com ele, perguntar porque aquela campanha contra o presidente Getúlio. A resposta do Chateaubriand, me foi contada numa entrevista pelo filho do General Dornelles, o Francisco Dornelles, então senador, ex-ministro da Fazenda. Chateaubriand disse o seguinte ao Mozart Dornelles, sub-chefe do gabinete militar do Getúlio, frase que me foi contada pelo filho do general Mozart: “Ô, Mozart. Eu adoro o presidente Getúlio”, frase do Assis Chateaubriand. “Se ele quiser, eu acabo com essa crise agora. Eu tiro a televisão em que o Carlos Lacerda tá falando contra ele toda noite, eu tiro a televisão do Lacerda e entrego para quem ele quiser defender o governo”. Aí ele acrescentou o preço: “É só ele desistir da Petrobras.”

Se o governo Lula tivesse desistido da Petrobras quando descobriu o pré-sal, aconteceria tudo que aconteceu, o Lula seria preso? Não. Lula seria até homenageadíssimo e convocado para mais um mandato presidencial, porque o que estava em jogo era a Petrobras. Estava em jogo em 1954, estava em jogo na Era Lula-Dilma. Então você vê que a pauta não muda, porque o século, nós estamos talvez saindo do século do petróleo. Mas desde o fim da Primeira Guerra Mundial o mundo é dominado pelos interesses envolvidos na indústria do petróleo, que foi o grande combustível, assim como tinha sido o carvão e agora vão ser outros, até porque o petróleo é uma riqueza finita, já está na fase de esgotamento, e surgem alternativas que permitem dar uma utilização melhor ao petróleo que ainda existe, que é a petroquímica, coisa que a Petrobras estava encaminhando com um sucesso absoluto.

Sucesso que os governos Temer e Bolsonaro estão cortando. A privatização da BR Distribuidora, por exemplo, resultou na perda de 30% do mercado da Petrobras. A Petrobras tem sobra de petróleo bruto, que ela está exportando a preço vil, e ao mesmo tempo ela importa derivado de petróleo, tendo capacidade ociosa nas suas refinarias – e já venderam uma refinaria, que foi a Landulpho Alves, lá na Bahia, que foi a antiga refinaria de Mataripe. Então estão destruindo a Petrobras pouco a pouco, como Chateaubriand queria lá em 1954.

Quer dizer, a Petrobras atravessou 70 anos de ações contra ela, muito mais do que em sua própria construção. É um milagre ela ter resistido e felizmente ela entrou na alma popular de um jeito que nenhum governo ousa ir além de certo ponto ao mexer com ela.

MLJ: Seu livro recorda ainda os avanços da Lava Jato contra universidades federais, como a do Rio Grande do Sul, a de Minas Gerais, a do Paraná e, é claro, a de Santa Catarina, que ficou marcada na memória e na história do Brasil por conta da morte do reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier de Olivo. Por que houve essa intenção de macular a educação pública do país?
JOSÉ AUGUSTO: É que muita gente aproveitou, pegou carona na Lava Jato e nas acusações de corrupção na Petrobras para defender outros interesses. No caso do reitor Cancellier, esse interesse era a privatização das universidades públicas. Não foi só o Cancellier, não foi só a universidade de Santa Catarina (UFSC). Foi a Universidade Federal do Paraná (UFPR), do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a de Minas Gerais (UFMG).

O caso do Cancellier, eu me lembro, começou para mim – e eu acho que escrevi um capítulo bem longo sobre ele no livro – começou de manhã cedo com a reprise daquele jornal, Bom Dia Brasil, na GloboNews, às 9 horas da manhã, que era a hora que eu começava a trabalhar. Eu me lembro do tom de escândalo que a coisa foi dada. “Escândalo”, a apresentadora dizia, “escândalo na Universidade de Santa Catarina; não sei quantos milhões e reitor preso. Roubalheira que não acaba mais”. Quer dizer, não foi a apresentadora do jornal que inventou essa frase, ela teve de ler o que estava no script. Inclusive, uma das perversidades da situação daquele momento é que o jornalista, o apresentador tinha que ler o script que era apresentado a ele. E até eu desconfio que nesse jornal, o Bom Dia Brasil, que era apresentado pelo Chico Pinheiro, eu desconfio que o Chico conseguia manobrar. Com o prestígio que ele tinha, ele podia mexer no script dele. Agora, ele não podia mexer no script dos outros. Tanto que ele acabou saindo da TV Globo e se você for olhar não tem um momento em que o Chico diga algo restritivo ao Lula, ao governo Lula, ao governo Dilma. O Chico teve um comportamento exemplar de jornalista, até porque, com a autoridade que ele tinha com a popularidade dele, não ousavam fazer certas coisas na presença dele.

Então houve esse caso. Eu fiquei acompanhando pela GloboNews, pelo jornal e coisa e tal. O Cancellier foi preso sob acusação de dificultar investigações sobre casos que teriam ocorrido antes dele ser reitor. É engraçado que não foram procurar o reitor da época em que os casos aconteceram, foram em cima do Cancellier, até por causa das ligações políticas dele, que era um homem de esquerda.

Ele foi preso pela Polícia Federal e parece que na PF foi bem tratado, tratado com um mínimo de respeito. Porque depois de ser solto ele chegou a dar uma entrevista para um jornalista de Santa Catarina, Tancredo… O melhor jornalista, jornalista mais importante de Santa Catarina. E nessa entrevista ao Tancredo, o Cancellier diz que na PF foi tratado com correção, mas depois ele não fala. Ele ficou traumatizado.

Ele foi, não se sabe por ordem de quem, levado para um presídio estadual de segurança máxima, numa ala destinada a criminosos, traficantes perigosíssimos. E lá aconteceu uma coisa que foi denunciada por um amigo dele, o desembargador Lédio Rosa de Andrade, que era professor da universidade e era também desembargador. Eu fui buscar informações sobre o que o professor Lédio tinha dito ou tinha feito porque fiquei muito chocado com o discurso que ele fez no velório do Cancellier, que foi num grande auditório da UFSC. O desembargador diz assim: “Como professor dessa universidade, eu tenho orgulho. Como desembargador, eu tenho vergonha”. Eu

fiquei impressionado, como é que um desembargador diz que tem vergonha de ser desembargador, uma posição importante na magistratura?! É que ele sabia o que aconteceu.

Na verdade, resolveram humilhar o Cancellier. Ele tinha um inimigo lá [na UFSC], um sujeito da Controladoria-Geral da União que operava na universidade e tinha uma gratificação ilegal que o Cancellier cortou. A verdade é essa, o cara estava em cima do Cancellier por causa disso. O que fizeram com o Cancellier no presídio de segurança máxima, eu fui pesquisar depois, não cheguei a conversar com nenhum advogado, com nenhum jurista, mas estou seguro que o que aprendi na universidade me dá segurança para dizer o seguinte: foi equivalente a um estupro. Fizeram no Cancellier uma tal de vistoria anal, que costumam fazer com acusados de tráfico de drogas, porque é comum ocultarem o chamado ‘sacolé’, que no Rio era um sorvete dentro de um plástico. Então esse tipo de plástico era usado por traficantes para acondicionar cocaína ou outra droga e eles ocultavam no ânus, supondo que não seria descoberto. Depois, na prisão, utilizariam essa droga. Então fizeram isso com o Cancellier e o trauma dele foi de tal ordem que ele saiu da prisão, ainda deu entrevista pro Tancredo, conviveu com outras pessoas, e no final se suicidou. Ele se jogou do sétimo andar naquele vazio que alguns shoppings têm, talvez com o trauma daquela situação toda.

Eu pensei: “como é que num país como o Brasil podem deixar acontecer uma coisa dessas?” Está todo mundo comportadinho, defendendo a lei contra a corrupção e tal, e um professor universitário, reitor eleito por seus colegas, é submetido a uma coisa dessas. Então eu fiz questão, esse capítulo talvez seja mais longo que os outros, porque eu fiz questão de reconstituir todo o caso.

Quer dizer, a Lava Jato começou com a intenção ostensiva de botar o Lula na cadeia, com a intenção oculta de acabar com a Petrobras, e descambou num negócio como esse do suicídio de um reitor cuja universidade era a que melhor cumpria os preceitos de fiscalização, controladoria, essa coisa toda. A universidade mais limpa do Brasil, se é que se pode usar uma metáfora como essa.

Eu vi que todos os limites tinham sido ultrapassados, porque a Lava Jato ficou um poder comparável a um poder que talvez não tivessem os presidentes da República do ciclo militar. Um procurador-geral pediu a prisão do Sarney, ex-presidente da República. Tentaram a prisão também do Aécio Neves, candidato à presidência da República. Prenderam o Temer, ex-presidente da República. Prenderam o Lula, ex-presidente que saiu com 84% de aprovação e que se fosse candidato teria, com certeza, sido eleito para um terceiro mandato.

Quer dizer, em matéria de subversão a Lava Jato foi campeoníssima.

O governo Jango, em 1964, foi derrubado sob acusação de que estava praticando atos subversivos. A Lava Jato anulou todos os poderes da República e ninguém podia ousar qualquer coisa que fosse contra a Lava Jato, tanto que no próprio Supremo Tribunal aos poucos é que foi se consolidando a possibilidade de contestar uma coisa ou outra. E pelo que foi contado em sessões do Supremo – eu acompanhava muito as sessões do Supremo ao vivo e isso foi importante na elaboração do livro -, o próprio relator da Lava Jato no Supremo, o ministro Teori Zavascki, que morreu num acidente, se queixava dos procuradores e do Sergio Moro. Não chegou a anular decisões do Moro, mas deu um puxão de orelha nele. Quer dizer, um ministro do Supremo não podia enfrentar um juiz de primeira instância.

Em matéria de subversão, a Lava Jato foi a subversão total. E eu me lembro que no caso da condução coercitiva do Lula, o Dallagnol um dia fizeram uma pergunta qualquer e ele disse “ah, mas já houve 109 casos [de condução coercitiva sem prévia intimação] e ninguém reclamou. Agora quer reclamar por quê?”. Era ilegal, o Supremo declarou a ilegalidade depois. Evidentemente, essa coisa toda foi montada com o propósito de impedir a volta do Lula ao governo, também com o propósito de destruir a Petrobras e aproveitando para destruir a engenharia brasileira, que tinha reputação internacional. Foi a engenharia brasileira que deu orientação técnica pros chineses construírem a Usina de Três Gargantas, que é uma das maiores do mundo.

MLJ: Como avalia o trabalho da imprensa, em especial da grande imprensa, na cobertura da Lava Jato?
ZÉ AUGUSTO: A grande mídia embarcou na Lava Jato. A gente ouvia toda hora, a chamada em alguns dos jornais da GloboNews era assim: “a Lava Jato hoje chegou mais perto do Lula com a prisão de fulano de tal”. Essa era a orientação das empresas mantenedoras das TVs e dos jornais.

Agora, eu acho que por parte os jornalistas sempre houve uma tentativa de contrabandear informações. Está no DNA dos jornalistas, não é uma coisa ideológica. Não é que ele quer contrariar a orientação do patrão. É que ele tem uma notícia ele quer que a notícia seja publicada. Então usei muito no livro coisa que saía no Painel, da Folha de S. Paulo, em uma ou outra coluna de algum jornal, porque numa coluna você não é obrigado a revelar a fonte da sua informação, o sucesso do colunismo vem aí. Na televisão tinha o Chico Pinheiro, que é muito inteligente, muito hábil, sabia como se colocar e como colocar as coisas e tinha uma popularidade muito grande, como talvez nenhum outro apresentador de jornal tivesse. Tanto que como é que a coisa acabou? Com a Covid, a televisão teve de afastar os jornalistas além de certa idade, e o Chico estava nesse caso. Então foi providencial ele ser afastado por idade, e não por causa das ideias dele. E ele sabia como dar a informação, chegar no limite do possível ao transmitir a informação, ao mesmo tempo sem infringir as normas da televisão, que afinal era o veículo transmissor dessa informação.

Então, as grandes empresas de mídia embarcaram na Lava Jato, da mesma forma como agora, como depois, divulgaram e divulgaram bem as revelações da Vaza Jato.

Quando houve a campanha das diretas, no fim da ditadura militar, a Globo foi obrigada a dizer que o grande comício das Diretas na Praça da Sé, em São Paulo, era apenas a festa do aniversário da cidade. Quem deu, quem mostrou o comício foi a TV Bandeirantes, onde eu trabalhava. Eu tive o privilégio de ter que fazer um comentário que foi a coisa mais ridícula que eu tive de fazer na vida, porque se você tinha TV Globo sob censura, como é que a Bandeirantes ia abusar do privilégio [de não estar sob censura]? Então eu me lembro que o comentário que eu fiz era algo do tipo ‘o Brasil depois de hoje nunca mais vai ser mais o mesmo’. Alguma coisa nessa linha, inteiramente vazia, inteiramente ridícula. Fiz um papel ridículo deliberadamente, que era o papel que eu poderia fazer naquele momento. A Bandeirantes pagou um preço. Na semana seguinte o dono da Bandeirantes, seu João Saad, foi chamado para uma audiência com o presidente Figueiredo, audiência que ele não tinha pedido. Mas quando o presidente queria falar com alguém, o cerimonial dizia que essa audiência tinha sido pedido pela pessoa que ele, na verdade, convocava. Então seu João foi lá, tinha um papel em cima da mesa do Figueiredo. O Figueiredo pegou esse papel e falou “João, você sabe o que é isso daqui? É o decreto da concessão do canal de TV da Bandeirantes em Brasília. Olha o que eu vou fazer com ele”. E rasgou o decreto, jogou na cesta do lixo. A TV Bandeirantes pagou com a perda do canal que ela disputava e que era indispensável, você não pode imaginar uma rede de televisão que não tenha uma estação na capital do país, e a Bandeirantes não tinha. Então, na época da ditadura, a coisa era no braço.

Na Lava Jato, os donos da tevê sabiam que tinham de se enquadrar ali e muitos aproveitaram porque deu audiência, deu receita para as televisões, vendeu jornal. Só que a coisa um dia virou, e quando vira, vira mesmo. É uma lei da história, né?!

Então, comparando o que era a ditadura com o que é agora, a Lava Jato foi uma ditadura, foi uma ditadura. Ninguém podia discordar.

Houve um caso engraçado de discordância num jornal da GloboNews. Estavam discutindo alguma coisa e o Merval Pereira estava em dúvida, perguntou como foi. Aí explicaram e ele disse “ah, mas isso é implicância do Sergio Moro”. Ele podia dizer isso. Outros não poderiam. Ele poderia porque estava na Globo e ele era quem ele era. Quem ele é, aliás. De modo que foi, na verdade, um período de colapso das liberdades públicas. Constituição era o que eles queriam que fosse a Constituição.

MLJ: Quais acredita que foram (e quais ainda serão, tendo em vista a eleição de Sergio Moro e Dallagnol para o Congresso Nacional) os impactos da Lava Jato para o país, seja do ponto de vista econômico, político e/ou jurídico?
JOSÉ AUGUSTO: O Dallagnol era apontado como um candidato indiscutivelmente vitorioso ao Senado. Virou candidato a deputado. O Sergio Moro era candidato à presidência da República. Virou senador e com manobras pouco republicanas, como virou moda dizer já na época dessa coisa toda. Não acredito que vão ter papel importante, nem no Senado e nem na Câmara. Passou a coisa. O que veio depois, a Vaza Jato, mostrou a mentira que havia em tudo aquilo. Mentiras as vezes ridículas.

MLJ: O que foi a Lava Jato para a história do Brasil, quais os termos que melhor definem essa operação?
JOSÉ AUGUSTO: Olha, nós tivemos a época dos golpes militares, 1964. Depois a coisa mudou e no mundo inteiro tivemos a experiência do lawfare: você, por meios legais, conseguir uma coisa ou outra. Nos Estados Unidos já tinha havido o caso do impeachment do Nixon, lá atrás, que de fato tinha cometido crime de responsabilidade e o Congresso decidiu afastá-lo. Então o que se buscou era substituir o golpe militar pelo golpe judicial, em alguns casos com razão e em outros sem razão nenhuma. Eu não sei, o modelo inspirador da Lava Jato passa por ser a Operação Mãos Limpas, na Itália. Eu não sei em que medida aquilo era verdade ou não, mas a Lava Jato como é que operou: ela aproveitou a legislação deixada pelos governos do Lula e da Dilma, a delação premiada, e trabalhou da mesma forma que o DOI-CODI trabalhava na ditadura militar. No DOI-CODI era violência física contra a pessoa, era tortura física. Na Lava Jato era tortura psicológica.

Eu acho que a comparação que pode se fazer é essa.

Luis nassif

Nascido em 24 de maio de 1950 em Poços de Caldas, em Minas Gerais, Luis Nassif é
hoje um dos mais conhecidos jornalistas brasileiros, com passagens por veículos como
Folha de S. Paulo, Revista Veja, TV Brasil e TV Gazeta.


Uma carreira que começou muito cedo, quando ele tinha apenas 13 anos de idade e
passou a ser editor o jornal do Grupo Gente Nova em sua cidade. Dois anos depois, fez
estágio no Diário de Poços, durante o período de férias escolares. Depois de se formar
no primeiro grau foi estudar Comunicação e passou a trabalhar como estagiário na
revista Veja, sendo efetivado pouco tempo depois.


Sempre transitou entre o jornalismo econômico e o jornalismo político, ganhando,
inclusive, um Prêmio Esso em 1986. Isso até o começo dos anos 2000, quando se torna
crítico ferrenho da financeirização e passa a se dedicar mais e mais às questões
políticas, o que o leva a lançar, em abril de 2013, o jornal GGN (Grupo Gente Nova,
adotando o nome do primeiro jornal em que trabalhou), para o qual escreve até hoje
fazendo análises políticas e econômicas. Além disso, em anos recentes o GGN lançou
dois documentários sobre a Operação Lava Jato

Série exclusiva do GGN explica a influência dos EUA na Lava Jato


Em janeiro de 2020, o GGN lançou uma série de 5 vídeos chamada “Lava Jato Lado B: A influência dos EUA e a indústria do compliance”. O trabalho exclusivo do GGN, idealizado por Luis Nassif, compilou e aprofundou as discussões em torno dos indícios, há muito já existentes, de que a cooperação internacional entre Estados Unidos e Lava Jato estava recheada de irregularidades, mesmo com a força-tarefa de Curitiba negando e tratando as denúncias como “teorias da conspiração”.


Em uma das entrevistas obtidas com exclusividade pelo GGN para a série documental, o advogado André de Almeida relatou que agentes americanos viajavam a Curitiba, com total discrição, ao menos desde 2015. Almeida conhecia os bastidores da operação e viajou algumas vezes a Curitiba e aos Estados Unidos, pois foi um dos advogados que impôs uma das maiores derrotas judiciais da história à Petrobras: o pagamento de quase 3 bilhões de dólares em indenização aos acionistas americanos, numa “class-action” (ação de classe) movida em Nova York.

Como a Lava Jato abriu espaço para a maior corrupção da história

Ontem, viu-se um pouco do Brasil legado pela Lava Jato.
Com todos seus defeitos, PSDB e PT tinham uma estrutura de governabilidade, representada pelo respeito aos funcionários de carreira em áreas sensíveis – como educação, saúde, Banco Central, Secretaria do Tesouro Nacional e pelo enquadramento pelos poderes. Uma denúncia da mídia tinha o condão de definir limites aos malfeitos.


A fragilidade do modelo presidencialista fez com que, em várias ocasiões, governantes apelassem para relações espúrias com o Centrão. Foi assim com Fernando Henrique Cardoso, na crise do segundo mandato; e com Lula, após a tentativa de golpe do
“mensalão”.


A Lava Jato destruiu totalmente essa estrutura de governabilidade, graças à irresponsabilidade institucional de Ministros do Supremo Tribunal Federal, especialmente Luís Roberto Barroso, Luiz Edson Fachin e, até um determinado
momento, Gilmar Mendes.

Lava Jato sob Moro atingiu o ápice nas semanas que antecederam o impeachment


Uma pesquisa sobre o impacto da Lava Jato no noticiário nacional mostra algumas diferenças no modus operandi junto à imprensa dos núcleos da operação concentrados
em Brasília – sob o comando do procurador-geral da República, Rodrigo Janot – e em Curitiba – com destaque para os despachos do juiz federal Sergio Moro.

Um vôo sobre todas as capas da Folha de S. Paulo no último um ano e meio mostra que o esforço da Lava Jato em Curitiba para emplacar manchetes bombásticas teve como alvo preferencial, num primeiro momento, as maiores empreiteiras do País e seus
dirigentes e, num segundo, Dilma Rousseff, Lula, PT e seus aliados. Enquanto isso, o núcleo que cuida dos inquéritos contra políticos tentou mostrar imparcialidade mirando em vários partidos, mas provocou estragos maiores na cúpula do PMDB.

Um primeiro levantamento feito pelo GGN, de janeiro a 25 de junho de 2016, mostra que nunca a Lava Jato teve tanto destaque no noticiário produzido pela Folha como nas semanas que antecederam a votação do impeachment de Dilma na Câmara.

É provável, ouvi o boato, não comprou mas é dono: as pérolas da Lava Jato no caso triplex

Quando o assunto é o apartamento no Guarujá – que, na visão de procuradores da República, a OAS reformou para entregar a Lula como propina disfarçada – até fofoca entre montador de armário e projetista ligados no noticiário tem valor para a Lava Jato. A constatação é feita a partir da análise de depoimentos gravados em vídeo pela própria força-tarefa e divulgados nesta semana na página do Estadão no Youtube.

O GGN acompanhou o interrogatório de sete do total de 11 testemunhas do caso triplex, nesta terça (20), e verificou que a Lava Jato não conseguiu confirmar que o imóvel 164-A do Condomínio Solaris é propriedade de Lula. No máximo, o que os investigadores arrancaram foram frases como “provavelmente sim”, “tinha esse boato”, “li nos jornais”, “é possível” ou até mesmo a pérola “não comprou mas é o dono”.

Como no papel o triplex está em nome da OAS Empreendimentos, a Lava Jato busca
provas que sustentem a seguinte teoria: se a empresa onde Léo Pinheiro tem sociedade investiu quase R$ 1 milhão em melhorias num imóvel que já custava algo em torno de R$ 1,8 milhão, é porque tinha um bom cliente em vista ou, melhor ainda, um proprietário oculto: Lula.


Entrevista exclusiva do museu da lava jato

Vozes Dissonantes: Luis Nassif

MUSEU DA LAVA JATO: Começando pelo início, você nasceu em que ano e qual cidade? Quando e de que forma o jornalismo passa a fazer parte da sua vida?
LUIS NASSIF: Eu nasci em 1950, em Poços de Caldas (MG), e eu fiz o meu primeiro jornal aos 13 anos, que era o jornalzinho do nosso Grupo Gente Nova. Tive meu primeiro trabalho jornalístico aos 15 anos, aí nas férias, que eu pedi para o meu pai falar com o Mons. Trajano, que era o dono do Diário de Poços, para substituir férias lá.

MLJ: E no jornalismo, a sua trajetória começa a ser escrita não na editoria de Política, mas na de Economia, não?
NASSIF: Comecei no jornalismo profissional em setembro de 1970, como estagiário na Veja. Em janeiro [de 1971] fui formalizado. Até 1974 eu trabalhava, cobria mais a parte de comportamento, arte, espetáculo. Daí eu fui para Economia, Finanças.

No final dos anos 1970 eu me especializei em matemática financeira, fui para o Jornal da Tarde. Lá eu criei a seção “Seu Dinheiro”, “Jornal do Carro” e dei início ao primeiro movimento da sociedade civil contra o governo [militar], que foi a campanha dos mutuários contra o reajuste de julho de 1982, que eu previ que ia dar uma mega inadimplência. Conversei com a OAB aqui em São Paulo e nós fizemos um seminário. Eles trouxeram a OAB de todo o Brasil para cá. Eles montaram um rascunho para o pessoal entrar na Justiça e eu entrei com toda a fundamentação matemática e com isso nós criamos um movimento que pegou o Brasil inteiro com ações judiciais. Com o tempo derrubou o presidente do BNH [Banco Nacional da Habitação] e foi o primeiro questionamento à ditadura, mesmo porque militar também era mutuário.

Daí eu saí de lá, fui para a Folha [de S. Paulo]. Lá eu criei a seção “Dinheiro Vivo”. Eu fui o primeiro jornalista a apoiar o Plano Cruzado e logo depois descobri a corrupção do Plano Cruzado. Denunciei e acabei caindo da Folha depois de uma negociação do Saulo Ramos [ministro da Justiça de José Sarney] com o Seu Frias [Octávio Frias de Oliveira, dono da Folha de S. Paulo] lá. Eu já participava de um programa de televisão na TV, na Abril Vídeo, que alugava um espaço aqui na TV Gazeta. E quando acabou o contrato com a Abril Vídeo, eu continuei com esse programa, que ganhou muita repercussão no meio econômico e financeiro, a ponto de eu recusar o convite da Globo para ser comentarista. E a partir desse programa eu criei a primeira agência de notícias, de jornalismo online mesmo, que eram informações que iam através de redes, de computador e tudo.

Volto para a Folha em 1991. Aí eu já tinha a minha empresa que, era a “Dinheiro Vivo”. E ao longo dos anos 1990 eu peguei um conjunto de bandeiras aí: programas de qualidade, inovação, defesa de pequena empresa… E acabei, em várias pesquisas aí – por exemplo, uma pesquisa do Fernando Pacheco Jordão, que ele tinha montado aí quando voltou da França, ele pegou as 50 fontes mais ouvidas pela mídia e perguntou quem era que fazia a cabeça dessas fontes. E eu fiquei em primeiro lugar, ao lado do Roberto Campos. Depois teve uma pesquisa do Data Kirsten junto à alto administração pública que me colocou como o colunista mais lido pela alto administração pública. E
depois as pesquisas aí da CDN, da Máquina de Notícias, que sempre me colocava entre os três jornalistas mais influentes aí, tendo um mercado amplo para palestras e tudo, mas jogando tudo na “Dinheiro Vivo”.

MLJ: É a partir dessa época que o senhor começa a se tornar um crítico ferrenho da financeirização e monta seu próprio site de jornalismo?
NASSIF: A partir dos anos 2000 que eu começo a me dar conta dos erros da financeirização e daí eu começo a fazer o contraponto. Eu questionei desde o começo os erros do Plano Real e tudo, mas aí eu começo a fazer uma crítica mais pesada contra a financeirização da economia.


Em 2003 eu publico o livro “O Menino do São Benedito”, que foi finalista do Jabuti. Em 2005, “Os Cabeças de Planilha”, mostrando o que foi o golpe do Plano Real.

Daí eu saio da Folha e entro em blogs, monto o meu blog e continuamos na luta. Eu acompanhei todo esse processo de jornalismo de esgoto. Enfrento a Veja em 2005, 2007. Enfrento a Veja tendo um blog na mão. A Veja era a maior máquina de assassinar reputações da história. Enfrentei, tendo só o blog, a ponto de vir e pedir… Abriram cinco ações contra mim lá e vieram pedir arrego. Se eu parasse de criticar, eles tirariam as ações. Eu me mantive, fui abandonado pela minha advogada Thaís
Gasparian. As ações, algumas continuaram e tudo. A gente foi um dos pioneiros nesse
contraponto à mídia.

Em 2009, 2010 passei pela… A TV Cultura rompeu meu contrato quando eu critiquei Serra aqui, aí a TV Brasil me contratou. Em 2010, a TV Brasil rompe meu contrato com medo de uma CPI. Fizeram uma denúncia dizendo que eu não tinha… [risos] Que eu tinha sido contratado sem licitação. Vê se é possível… E o Roberto Freire ameaçou com uma CPI, que não ia me pegar, porque, obviamente, você não tem licitação para a contratação de determinados jornalistas. Só se colocar uma licitação para contratar alguém que fosse Luis Nassif. Mas daí tem o receio aí, não sei, do Franklin [Martins, ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social do governo Lula], da diretora da TV Brasil, que rompe meu contrato. Depois voltam a colocar o contrato.

E, depois disso, estou na guerra aí. Estou na guerra desde então, tentando, no meu canto aqui, denunciar as mazelas do modelo econômico, as injustiças sociais, os abusos do poder judiciário, e sendo um dos alvos preferidos do Lawfare.

MLJ: E o que lhe leva para o jornalismo? Porque você começa muito cedo, com 13 anos, com 15 anos já vai para o primeiro estágio, tem o primeiro contato com uma redação profissional…
NASSIF: A minha mãe me incentivava muito. Eu tinha um avô, o udenista, amigo do [Carlos] Lacerda. O meu pai era um farmacêutico que era correspondente da Gazeta Esportiva. Ele escrevia para um jornal chamado Gazeta de Farmácia uma coluna mensal muito espirituosa.

O meu avô era daqueles lacerdistas radicais, daí o jornalismo surgiu naturalmente. Minha mãe sonhava, tinha os ídolos dela no jornalismo também. Surgiu naturalmente. Eu fui estudar em Santa Rita do Sapucaí (MG), fiz seis meses lá. A única coisa que aprendi foi a fazer jornalismo lá, fazia um jornalzinho local.


Eu acho o jornalismo uma coisa fantástica. Quando você consegue… Não é só um furo. Quando você tem uma confusão de informações e você consegue organizar as informações, o mundo muda. Muda a percepção em relação a fatos. E eu tenho, desde a infância, uma marca aí, que eu fico indignado com o processo de linchamento. Eu lembro que quando tinha uns oito anos eu estava indo para a casa do meu avô. Meu tio vinha de São Paulo e eu vi na frente de um hotel dois turistas dando um pé na bunda de um vendedor de bilhete bêbado lá. Eu catei meu tio, falei que tinha que ir lá defender, tinha que ir lá defender. Então, no jornalismo, eu sempre estive contra os abusos de poder.


E eu sabia, no começo dos anos 90, que em determinado momento eu teria que enfrentar a mídia, tanto que nos anos 1990 eu lancei um livro de jornalismo com mais de 20 casos de linchamentos da mídia em que eu fiquei sozinho na outra ponta. E a Folha me suportava porque ainda era um período de pós-ditadura, em que a diversidade era relevante e eu tinha a coluna mais lida da Folha. Até o momento em que a financeirização bate direto e começa a influenciar todos os jornais com a crise de
1999.

Mas eu ainda considero que o jornalismo, o ato do jornalismo, de você trocar em miúdos, buscar explicações, correlacionar fatos e tudo, ele é fundamental para a compreensão de mundo. E acho, também, que o modelo de negócio das empresas jornalísticas transformaram elas numa principal ameaça à democracia. As formas de financiamento e, principalmente, o fato de que, aqui no Brasil, os jornais costumam pegar a onda e serem proativos, pró-cíclicos em relação às ondas.


Por exemplo, nós tivemos, nos anos 1990, a praga do Watergate, né? Que a imprensa consegue derrubar o Collor, aí tentou derrubar o Fernando Henrique, tentou derrubar o Lula, conseguiu derrubar a Dilma. Então virou um fator de instabilidade e em nenhum lugar civilizado você permite que o dono de jornal tenha outros negócios. Aqui não, aqui os esquemas familiares permitem isso.

MLJ: E também, ao longo da sua trajetória, existem algumas reportagens, algumas entrevistas que destacaria como sendo as mais marcantes? Você ganhou um prêmio ESSO também, né?
NASSIF: [Risos] Foi gozado o prêmio ESSO, porque eu enfrentei o Saulo Ramos, que era ministro da Justiça lá e tinha manipulado um decreto. E no meio do caminho o Saulo foi negociar com o Frias. E negociou com o Frias, lá uma… Tinha uma dívida de INSS da Folha, que o advogado da União perdeu o prazo lá. E eles começam a me amarrar. Porque, por outro lado, a minha coluna era mais lida na Folha, mas eu não conseguia… Tentavam segurar e eu argumentava jornalisticamente. Fui até Brasília, conversei com o Carlos Castelo Branco, que era o principal colunista político, ele endossou. Fui falar
com o Júlio Mesquita aqui, que endossou.

E um dia eu saí de casa e falei: “acho que hoje é que vou ser demitido”. Daí quando eu chego no jornal estava um clima meio estranho. Ia ter o almoço mensal lá dos editores e estava um clima meio estranho, o pessoal me olhando de um jeito meio diferente. Falei “o que está acontecendo?”. O pessoal respondeu “Você não está sabendo?” “Não”. “Você ganhou o prêmio ESSO” [risos]. Daí eu ganhei mais uns três meses de vida na Folha, na minha primeira fase lá.


Então, digamos, essa guerra contra o Saulo foi uma guerra pesada mesmo, né?! Tem outras guerras aí que foi… No caso da [Operação] Satiagraha a gente fez uma cobertura sozinho também, enfrentando a mídia, enfrentando as manipulações que vinham de Supremo, de ministros e tudo. Foi uma outra guerra a da Satiagraha e, obviamente, a Lava Jato. A Lava Jato tem um conjunto de matérias, de denúncias aí, muito ampla.


Mas o que mais me comoveu é o seguinte: nos anos 1990, fui um dos palestrantes mais requisitados. Então, quando você cai de cabeça na defesa do humilde, eu ia em algumas passeatas, alguns comícios que tiveram na Praça da Sé, e você via aquelas pessoas chegando até você, agradecendo. Eram poucos blogs na época. Foi aí que eume dei conta da importância fundamental da informação como direito.

E gozado, né, porque quando eu fui para a TV Gazeta, não tinha mais jornal. Então eu tinha que falar para um público de mercado, porque não tinha como você viabilizar um jornalismo de serviços lá. E eu recebi uma carta – eu devia ter guardado essa carta -, um aposentado falando “Nassif, volte para nós”. É impressionante a falta que faz uma voz pública em defesa desses direitos. E quando nós chegamos a essa fase terrível de impeachment, passeatas e tudo, quando eu ia em passeatas contra o impeachment, tudo, você via o agradecimento de pessoas simples aí, sabendo que você estava
lutando pelos seus direitos. Isso não tem o que pague, não.

MLJ: E como surge, em 2013, o jornal GGN? E o que também significa o nome Grupo Gente Nova que, pelo que você comentou, é o mesmo nome do jornal que você criou na sua adolescência, não?
NASSIF: O Grupo Gente Nova foi criado nos anos 1960, lá em Belo Horizonte, por um padre jesuíta, o padre Maia, para combater a JEC, que era a Juventude Estudantil Católica, que era de esquerda. Só que lá em Belo Horizonte quem assumiu o GGN foram umas freiras, que acabaram levando o grupo para a JEC. Eu soube depois que a Dilma foi do GGN de Belo Horizonte. Daí veio para Poços de Caldas, mas em Poços de Caldas quem assumiu o GGN foram as freirinhas do São Domingos. Então foi a JEC [quem assumiu o GGN] e era um grupo que fazia ação social. A gente ia na favela, todo sábado ou domingo, a gente levava comida, ajudava o pessoal a construir casa, dava aulas e tudo e depois ia para a missa do padre Trajano. Então isso formou muita gente lá. O Tomás Tarquini, que foi presidente do DCI da PUC, depois foi exilado, passou por lá. O Babozinha, que foi presidente do PCdoB aqui em São Paulo, passou por lá. Muita gente. O Adnei, que foi prefeito em Poços. Formou muita gente. O que me espanta é que parte deles virou bolsonaristas, rapaz. Impressionante a praga do bolsonarismo. Impressionante.

Nós fizemos um encontro do GGN Poços um tempo atrás, antes da pandemia, e a maior homenagem que me fizeram é que ninguém discutiu política. Então eu fiquei muito grato. A gente pegou o violão, eu fazia parte da turma que tocava violão lá do grupo, cantamos as músicas de outrora e não falamos em política [risos].

MLJ: E quando o jornal GGN é criado, qual era a intenção de vocês?
NASSIF: Eu tinha, desde que criei o GGN, a Agência Dinheiro Vivo. Era uma agência financeira e eu tinha um blog, que tinha uma boa audiência. E daí eu achei… A economia, para mim, eu tinha que ampliar. A economia não me interessava tanto. Então eu montei o jornal GGN com a intenção de ser um jornal para multiassuntos e um jornal colaborativo, de construção do conhecimento. E foi num período em que a internet ainda não tinha tido essa polarização de agora, então você colocava um tema, vinham os leitores, te agregavam coisas, foi um período muito interessante. Mas foi para isso, foi para ampliar o escopo ali. Às vezes eu penso que devia ter mantido como blog lá atrás, mas tudo bem, já foi decidido.

MLJ: E como foi para você, que sempre teve uma postura crítica em relação à atuação da grande imprensa, acompanhar já no GGN os grandes acontecimentos recentes, desde o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff até a ascensão da Lava Jato
NASSIF: O caminho do golpe foi dado pelo pelo Mensalão. Porque você tinha desde 2005 a mídia em peso aí tentando derrubar derrubar o Lula, liderados pela Veja, do Roberto Civita, que trouxe o padrão [Rupert] Murdoch para o Brasil, né? E o padrão consistia em denúncia em cima de denúncia que a gente desmontava. Era um grupo aí de quatro, cinco blogs. A gente desmontava em meio-dia porque eram todas as informações inverossímeis, né. Cuba mandando dinheiro por garrafa de rum, aquelas maluquices lá que foram chamadas de jornalismo de esgoto, né.

Quando vem o mensalão, cria-se a mesma circunstância da CPI da Última Hora, com Getúlio. Com Getúlio é a mesma coisa, a imprensa falando em mar de lama, tudo, mas nada pegava. Daí eles tentam a CPI da Última Hora pra provar que teve benefícios pro jornal e os getulistas concordam, porque iriam provar que os benefícios para os outros jornais foram maiores. Então a CPI gerava notícia todo dia, mas o controle da narrativa era dos grandes veículos. Então ali começou, efetivamente, a queda do Getúlio.

O Mensalão foi a mesma coisa. Até o Mensalão você tinha essas denúncias inverossímeis aí que não passavam em teste de verossimilhança. Quando vem o Mensalão, você tem aí um acordo, o início da politização do Judiciário, do Ministério Público, com essa parceria do Joaquim Barbosa [então ministro e presidente do Supremo Tribunal Federal] com o Fernando de Souza e depois o Roberto Gurgel [ambos foram procuradores-gerais da República]. Então ali você tem uma forçação de barra que vai alimentando a imprensa e instaurando um dos princípios do fim das democracias, que é você tratar de buscar a destruição total do inimigo, né?! No caso, a destruição total do PT. E e ali foi o maior blefe da história porque surge a partir de uma armação da revista Veja com dois Arapongas aí que grampearam um funcionário menor do dos Correios. Era um grupo que queria dominar os negócios nos Correios e os Correios estava entregue a Roberto Jefferson. Então eles acertam com o diretor da Veja gravar um grampo, um suborno qualquer lá. Era um suborno de cinco mil reais, pra você ter uma ideia.

Fazem aquele Carnaval todo, cai o José Dirceu, cai o Roberto Jefferson e abre espaço pro Mensalão. E o Mensalão foi inteirinho feito em cima de uma farsa, de uma farsa mesmo, que é o tal do desvio de 75 milhões de reais da Visanet, uma informação falsa. E por que falsa? Primeiro, porque a Visanet não era uma empresa pública, era uma empresa que tinha cinco sócios. E segundo que o dinheiro foi integralmente gasto em publicidade. Na época eu conversei com o diretor do Banco do Brasil. Pra poder lançar como despesa, eles tinham que provar que o dinheiro foi aplicado na promoção do
cartão lá. E eles contrataram um escritório de advocacia de São Paulo que comprovou tudo, só não comprovou dois milhões. Ou seja, para dois milhões não tinha fotografias do evento e tal.

Daí eles tentaram encontrar a corrupção nos bônus de veiculação, porque eles achavam que o dinheiro tinha ido pro Marcos Valério. Daí descobriram que quem pagava bônus de veiculação eram os veículos, então eles iam criminalizar os veículos. E nesse interim a polícia federal faz uma uma auditoria lá e constata que o dinheiro foi gasto, efetivamente, e o Joaquim Barbosa mantém sigilo sobre esse esse relatório. Não deixáva os advogados do PT terem acesso a esse relatório e eu não sei por qual razão os advogados do PT não foram buscar o relatório do escritório de advocacia.

Mas daí o que acontece? Ali você tem uma exploração violenta do ódio, do denuncismo. Num certo momento eles acham que o recurso que ia pro Marcos Valério era do Daniel Dantas. Daí o Antônio Fernando de Souza tira o Daniel Dantas da parada, coloca a Visanet, se aposenta logo depois e o escritório dele ganha inúmeros contratos aí da Brasil Telecom, do Daniel Dantas. E a imprensa inteira escondendo tudo isso, porque a intenção política já era nítida.

Daí vem a crise de 2008 e o Lula se sai muito bem da crise e daí cria uma sensação de onipotência. Ou seja, em vez de usar como aprendizado o que foi o Mensalão, ele acha que a intuição dele resolveria tudo. E daí o PT, o governo Dilma depois, mantém total descuido em relação à indicação de Procurador-geral da República, em relação à indicação de ministros do Supremo.

Bem no começo da Lava Jato eu até mandei uma mensagem pro Franklin [Martins] dizendo que se eles não agissem, iam derrubar o governo. Nos primeiros meses [da Operação] já ficava nítido a questão da cooperação com os Estados Unidos, mas é interessante que os cientistas políticos aqui eles só aceitam depois que vira livro. Quando a gente começou a apontar essas ligações vinham os caras falando “não, é teoria conspiratória”. Mas desde o início já estava nítido aí que você tinha essa
participação.

E é interessante, pra você ver o despreparo do PT. Numa das WikiLeaks aí, em 2010, tinha um telegrama do embaixador dos Estados Unidos ao Departamento de Estado chamando a atenção que o [José] Serra, que já tinha já era governador [de São Paulo], tinha muito interesse em se aproximar do DHS [Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos], que é o gabinete de segurança institucional lá dos Estados Unidos e que concentrou depois toda a parceria com a Lava Jato. E o Serra queria de todo jeito e isso estava lá na correspondência do embaixador: “ele não quer dinheiro, ele só quer uma assessoria, porque há suspeitas que possam haver atos terroristas no metrô”.

Daí eu fui atrás, pensei “puts, qual é a do Serra aí?” Daí a gente descobre que no Banestado, que teve já parceria entre Ministério Público, Sérgio Moro e DHS, aparecia o nome do Serra. Então o Serra sabia desde aquela época que o DHS era uma peça central aí nessa parceria Estados Unidos-Brasil, né? E o PT nunca se deu conta disso.

MLJ: Muito cedo, então, você já percebe que a Lava Jato servia a interesses escusos, espúrios…
NASSIF: Logo de cara. De cara os abusos já ficaram.. Claro, num primeiro momento você fala “Pô, agora vão trabalhar de forma séria”. Mas as jogadas já estavam nítidas desde o começo.

Eu tenho uma entrevista com o Luiz Felipe de Alencastro, se eu não me engano na TV Brasil, que eu perguntava, falava, “vem cá, você faz parte de grupos aí de cientistas políticos do mundo inteiro. Vocês ainda não não discutiram essa questão de como que os Estados Unidos estão levando a guerra contra a corrupção, que é um desdobramento da guerra contra as drogas para questões geopolíticas?” Ele falou “não, ninguém começou a discutir”. Uns dois ou três anos depois um cientista político francês publicou um artigo mostrando o quanto que a França perdeu de negócios, porque veio a crise de 2008 e quebrou os bancos americanos. Os bancos franceses inteiros podiam financiar as empresas francesas para várias partes do mundo e não financiavam com medo da retaliação americana, baseada nas leis que foram criadas lá, endossadas pela OCDE, de que os Estados Unidos poderiam chamar pra si [o poder de processar] qualquer corrupção que passasse por dólares.

Então a partir dali ficou nítido o jogo. E a mídia, desde 2005 a mídia já estava… A mídia nunca ganhou tanto dinheiro mundialmente como nos anos 1990. A imprensa escrita tinha publicidade nacional, publicidade local, classificados… Tanto que no Brasil todos os grupos de endividam, havia uma grande liquidez internacional e os grupos se endividam para expansão. Daí em 1999 vem a maxivalorização [do dólar] no [governo] Fernando Henrique [Cardoso] e logo depois aparece a internet, derrubando aquelas barreiras de entrada para grupos estrangeiros. Grandes grupos estrangeiros não podiam entrar em rádio e televisão porque era concessão. Havia uma legislação que impedia que entrasse também na imprensa escrita. E a imprensa escrita vai ter investimento em máquina, equipamento, pessoal, hábito de leitura consolidada. E daí surge a internet colocando em xeque todo o modelo de negócio da mídia tradicional. E daí você tem duas estratégias montadas aí: você tem os grupos mais sérios aí, como o Financial Times e e outros aí que tentam ir para editoras de livros, para seminários. E
tem o Murdoch, o australiano, que vai pros Estados Unidos, se alavanca no mercado, consegue recursos no mercado e sai comprando tudo. Com a Fox News ele cria um modelo de participação política. Ou seja, “eu quero dominar o Partido Republicano, pois no momento em que eu domino politicamente o Partido Republicano eu estabeleço restrições às big techs”, que estavam vindo aí, já ganhando um crescimento.

E o Roberto Civita, da Abril, traz esse modelo para o Brasil numa fase em que você tinha problemas de transição nos principais grupos: o velho Frias saindo de cena, Roberto Marinho morrendo, e os filhos todos, inclusive do Mesquita lá, todos vão se abrigar na asa do Roberto Civita e dão início a esse processo de fake news, que era o que o Murdoch fazia. Essa questão dos algorítimos e fake news ele que percebeu.

Então a Fox News é um grande perfil das redes. Eu crio, invento a notícia e jogo nas redes e elas espalham, né? Aqui você tem início esse processo de jornalismo de esgoto, que acaba levando, cria uma onda aí contra o PT. Tem a primeira fase que o o Lula consegue superar e, quando vem a Lava Jato, aí é uma onda que ninguém segurava mais.

MLJ: Num texto seu do começo de 2015 ou final de 2014 você chega a apontar alguns méritos da Lava Jato e até uma possibilidade a operação ter um resultado positivo se fosse, de fato, uma operação republicana. Você chegou, de fato, a ter alguma esperança, alguma expectativa nesse sentido?
NASSIF: Eu participei do início da SISBIN. O Sistema Brasileiro de Inteligência foi criado pelo Márcio Thomaz Bastos e no lançamento, que foi numa cidade perto de Brasília, ele pediu que eu fizesse a palestra de abertura, porque eu criticava muito a falta de conhecimento do Ministério Público Federal e da Polícia Federal em relação a crimes financeiros. Eles eram totalmente jejunos. E ele até me pediu, falou, “bata bastante aí, bata bastante pra estimular aí a reação deles”. Só que na época o Ministério Público tinha como procurador-geral era o Claudio Fonteles, um baita procurador-geral, e a Polícia Federal era liderada pelo Paulo Lacerda, um baita delegado. Mas o modelo era interessante, eles se reuniam em salas, criavam esse conceito de força-tarefa, mas sempre sob controle para impedir abusos individuais, né?

Então no começo da Lava Jato havia a sensação de que poderia ser algo que, inclusive pudesse livrar a Dilma das chantagens que já eram feitas pelo Centrão. Mas durou muito pouco tempo, né? Durou muito pouco tempo e já ficou nítida a intenção política.

Eu fui o primeiro a publicar o estudo do Sergio Moro sobre a operação Mãos Limpas, na Itália – e aliás, outro dia saiu um livro aí mostrando que o início do [atual] fascismo italiano vem com a operação Mãos Limpas, né? E se você pega, a gente levantou esse trabalho e ficava nítido ali que o alvo era o Lula. Estava nítido. Você tinha duas coisas ali que mostravam, digamos, a origem comum de todas elas. Primeiro é a destruição da principal liderança. Então é o seguinte, se você destrói o cabeça, daí acabam as redes de solidariedade. Mas não, era só uma intenção política mesmo. E o segundo ponto é o seguinte: o que leva à corrupção é uma economia fechada, porque se a economia é aberta tem disputa e não tem corrupção. É um blefe, mas foi um blefe que acabou destruindo a economia italiana nos anos 1990 e a brasileira e a brasileira agora.

Só que o jogo ficou muito mais nítido quando o [Rodrigo] Janot [então procurador-geral da República] vai pros Estados Unidos com uma equipe da Lava Jato. Se você pegar artigos que nós fizemos na época lá… Eu tinha um colaborador chamado André Araújo que escreveu, perguntou “que história que é essa? A Petrobras está sendo processada nos Estados Unidos e vai o Ministério Público lá?! Quem tem que ir lá é a AGU pra defender a Petrobras, né? E na época eu mandei um e-mail para um dos caras da força-tarefa lá de Brasília que eu tinha confiança e perguntei que história que é essa. Ele respondeu “não, não, vai ser uma viagem protocolar e tudo”. Eles voltam em um mês e um mês depois é preso o Almirante Othon. Daí eu fui mapear por onde que o Janot tinha andado e ele tinha ido visitar uma advogada do Departamento de Justiça que até um pouco antes era advogada do principal escritório de advocacia da indústria nuclear norte-americana. Eu mandei um e-mail pra ele, falei “porra, vocês foram buscar informação contra o acordo nuclear brasileiro?” Ele respondeu “posso te garantir que não saímos daqui com essa intenção”. Ou seja, confirmando que trouxeram essa informação.

O Audálio Dantas uma vez fez um seminário em Tiradentes pra discutir a Lava Jato. E estava aquele pessoal da Abraji, de jornalismo investigativo, foi a Miriam Leitão lá para defender a Lava Jato. Eu estava lá e fiz o contraponto, falando que aquilo não era jornalismo, o que a mídia estava fazendo. E é interessante, que uma das jornalistas, aliás, uma repórter que já estava aposentada, mas é uma repórter muito conceituada aí nos meus tempos, aí falou “pô, mas o que você faria de diferente? Eu falei “te contrataria pra fazer reportagem. Isso que está saindo é release, não é reportagem.
Vocês não questionam nada”.

Mas um pouco antes já, durante 2010, teve um pacto aí entre o Supremo e Ministério Público. Um pacto tácito, segundo a qual só eram aceitas as denúncias provenientes da da grande imprensa, que era uma maneira de se blindar e de se defender das denúncias que pudessem ser feitas. E nós apuramos muita irregularidade, mas muita irregularidade e cheiro de corrupção.

Por exemplo, chega um momento que eles prendem o Mariano Marcondes Ferraz, que era do bonde da Trafigura. Ele foi preso, uma denúncia do Paulo Roberto lá, e quando você conversava com os advogados aqui em São Paulo eles falavam “agora chegaram no cerne da corrupção na Petrobras”, que é a comercialização, que envolve recursos muito mais relevantes do que a construção civil. Passa um tempo e eles soltam o Mariano Marcondes Ferraz e o processo em cima dele vai em cima de um trabalho que ele fez pra uma empresa italiana que atuava num porto e deixam de lado a Trafigura,
que sai comprando empresas da Petrobras na América Latina toda.

Agora, é importante a gente lembrar algumas coisas aí, tá? Quando a gente fala do início da Lava Jato, a corrupção na Petrobras chegou num nível muito grande, um nível focado em diretores específicos e como a Petrobras tinha ficado uma empresa muito grande, gigantesca, os valores nominais eram altos. E a Dilma colocou a Graça Foster lá para tentar resolver e a Graça não tinha a menor experiência em nada, em nada, em nada. Então o que ela passou a fazer foi concentrar a liberação de pagamentos no gabinete dela, que só atrasou ali a Petrobras, quebrou algumas empresas que ficaram
sem receber.

Não é na hora de fazer o pagamento que você vai identificar a corrupção, né? Então você tinha realmente ali um amadorismo muito grande, né? E ela cometeu um outro erro muito complicado. A Petrobras teve que fazer um ajuste contábil. Por que o ajustecontábil? Porque você tem um valor contábil da empresa que depende da perspectiva de faturamento da empresa. Então com petróleo caro, aquela perspectiva era uma. Se cai o preço do petróleo você tem que reformular o balanço e a Graça Foster permitiu que aquela diferença grande, que foi aquele ajuste de balanço, fosse apresentado pela mídia como a corrupção da Petrobras. Era um absurdo, havia muito amadorismo, né?

E você teve um episódio em particular que foi terrível aí, que foi o caso de Pasadena. Quando surgiu a denúncia do Estadão da Pasadena, era um relatório do TCU que apontava irregularidades administrativas lá. E essa matéria era pra morrer quando a Dilma, então presidente, manda um um e-mail pro Estadão dizendo que, quando foi feita a compra da Pasadena, o [José Sergio] Gabrielli não informou ela sobre dois itens lá do acordo feito com os acionistas da Pasadena. Aquilo lá levantou uma lebre monumental, rapaz. Eu fiquei umas três semanas tentando descobrir. Eu falei “pô, esses pontos do acordo são normais, porque você tem um sócio que não opera e um sócio que opera. Então o sócio que opera, que era a Petrobras, ia fazer uma estratégia que beneficiava a Petrobras, que era trabalhar um petróleo pesado. Então tinha que dar algumas contrapartidas pro outro sócio, né? Eu falava, “Será que essa sacanagem está aqui?” Imaginava algo, daí eu escrevia. Daí o Gabrielli me ligava e falava “não, eles teriam direito a esse valor se eles tivessem investido, mas não investiram”. Daí você
achava um outro ponto. Então então ficou uma uma situação complicada, né?

E quando eles fizeram o ajuste contábil da Pasadena, por conta da queda do preço do petróleo, eu falei “pô, fizeram ajustes, zeraram as perdas. O que vier daqui pra frente é lucro”. E pedi pra Petrobras dar o resultado da Pasadena depois do ajuste e não me deram pra não deixar a Dilma em má situação, alguma coisa assim. Depois você descobre que tinha questões pessoais entre ela e o Gabrielli, né? E aquilo lá foi o primeiro movimento, digamos, que alertou a opinião pública pras vulnerabilidades que
existiam na Petrobras.

Agora, a partir dali o que houve foi isso que a gente sabe hoje em dia, né? Foi a coisa mais escandalosa da história do país.

Eu tinha uma boa relação com a Dilma, aí a partir de um certo momento eu eu me afastei porque a teimosia era muito grande. Mas eu fui convidado para uma coletiva dela com os os colegas da imprensa tradicional. E lá pelas tantas foi colocado “gente, por que não penalizam os proprietários, e não as empresas?” Quer dizer, em qualquer lugar do mundo, o que você faz? Você dá uma baita multa nos acionistas e nos executivos. Se eles tiverem dinheiro, eles pagam. Se não tiverem dinheiro eles vendem a empresa e com o dinheiro recebido eles pagam. Mas a empresa fica preservada. Daí eu lembro lá um colunista da Globo falou “Não, mas isso aí é bobagem, porque nos Estados Unidos são empresas de capital aberto, aqui são empresas familiares”. Aí não aguentei, eu lembro que até falei “mas companheiro, por acaso empresas familiares não podem ser vendidas, pô?!” Ou seja, um era um nível de argumentação tão primária pra justificar a quebra, corte de empregos, quebra de receitas.. Mas é aquele processo longo.

MLJ: E você chegou a apontar que um dos méritos da Lava Jato foi justamente ter
conseguido, pela primeira vez, investigar fontes centrais históricas do poder
político aqui no Brasil.

NASSIF: Realmente.

MLJ: E como que acontece esse desvio, o que explica o fato de uma operação de combate à corrupção acabar corroendo as bases da economia e da própria democracia?
NASSIF: O ponto central é o seguinte: os caras começam a fazer um ataque. Eu lembro que em 2012 eu tive um um almoço com Paulo Cunha, do Grupo Ultra, e estava todo mundo ficando sócio da Petrobrás. Eu perguntei porque que eles não entravam também e ele respondeu “Ah, não. Com o Paulo Roberto [Costa] lá não dá”. Ou seja, já era conhecido aquela… Então quando você entra a primeira vez, começa a operação, a operação tinha o objetivo, que nunca tinha sido até então enfrentado, que era investigar, digamos, essa alta alta corrupção. Então não tinha como ser contra. Você só pode analisar a natureza da empresa, da operação, a partir do momento que se vai vendo
como que os caras se comportam. Mas se você pegar, não levou muito tempo pra perceber isso. E é interessante, eu conversava com alguns membros do Supremo, um cara de confiança minha aí, e perguntava como não pararam com os abusos do Sergio Moro. Diziam que não, ele fazia tudo certinho lá e eles não podiam fazer nada. Hoje está comprovado que não tinha nada certinho, né? E ele já tinha condenações no próprio Supremo por abuso de outras operações.

Você vai vendo os abusos e a partir daí vai reformulando a sua opinião. Foi justamente o que ocorreu.


A Lava Jato nasce das entranhas de um departamento, de uma secretaria lá do Departamento de Justiça que foi feita para coibir crimes corporativos. E eles que criam todo esse know-how aí de tortura, né? De colocar o cara preso lá, até ameaçar a família. Eles que lançam pela primeira vez essa ideia do estardalhaço midiático pra ganhar força. E eles, nos primeiros movimentos, quebraram uma das maiores empresas de consultoria do mundo, Anderson Consulting. A partir daí você começa a ter uma reação, nos Estados Unidos, contra esses abusos. Eles pegam um senador que estava na véspera de uma convenção e fazem uma denúncia que o senador teria feito uma reforma numa chácara que ele tinha pra desviar dinheiro, pra superfaturar dinheiro. Esse senador logo depois morre num acidente de avião e daí o juiz começa a exigir mais informações e descobre que, na verdade, o senador pagou efetivamente pela reforma do sítio e que era o construtor que cobrava mais dele. Tem uma sentença, eu acho que a gente colocou no [documentário] Lava Jato Lado B, que um juiz arrebenta com o procurador, falando da vergonha que era aquele tipo de método e tudo e logo em seguida esse procurador entrou em depressão. Mas aparentemente lá você tem uma noção de vergonha pessoal que não tinha aqui, né? Aqui eles usaram toda a metodologia que já a partir dali nos Estados Unidos reveem esse esse tipo de trabalho de destruição de empresas. Eles reveem isso aí. Tanto que recentemente, por exemplo, você pega a Trafigura, teve uma uma condenação de quatro países, um bilhão de de dólares aí. A parte brasileira foi vinte milhões. Então eles não querem mais destruir a
empresa. Impõem multa e se a empresa consegue pagar, paga. Se não consegue pagar, vende.

Agora aqui o que ocorreu aqui no Brasil é que apesar desse liberalismo maluco que tomou conta do país existe um desrespeito absoluto pela empresa em si. Eu lembro quando teve lá atrás a discussão da lei de recuperação judicial, deu uma crise no MAP e a imprensa inteira exigindo que o MAP fosse fechado.


A gente falava “gente, uma empresa funcionando não tem comparação com uma empresa fechada. Uma empresa fechada é só estoque e imóveis. Uma empresa funcionando é marca, é estrutura comercial. Então se quiser pagar os passivos tem que deixar a empresa funcionando. Muda de mão. Mas aqui sempre teve essa ideia da empresa… A única coisa limpa é o mercado, é o fundo financeiro.}


Então quando começa a Lava Jato, esse pessoal queria impor poder. E um grande negócio que surge, porque, veja bem, de que maneira que o Departamento de Justiça atuou para incentivar não só aqui a Lava Jato, mas incentivar procuradores de outros países? De um lado, fornecendo informação. Então os caras ganhavam poder com a informação e com a estratégia de levar pra mídia isso aí. E de outro lado a porta giratória. Então a Lava Jato ela cria um baita de um negócio corrupto que são os contratos de compliance com grandes escritórios de advocacia. E esses escritórios de advocacia já ligados ao Departamento de Justiça faz tempo, tendo ex-procuradores lá, esses policiais federais e tudo. E os procuradores saem pra montar escritórios de compliance, como o Sergio Moro faz quando sai da Justiça, né?

MLJ: Perfeito, então, Nassif. Queria agradecer demais pela entrevista e agora
deixo em aberto se você quiser acrescentar algo que eu não perguntei, passar
uma mensagem final…

NASSIF: Acho que o que vocês estão fazendo com esse museu da Lava Jato é muito
importante, é muito importante manter viva essa memória de tempo sórdido. Eu fico
muito agradecido por ter ficado ao lado das pessoas que ficaram do lado certo da
história.

marcelo auler

Nascido em agosto de 1955 no Rio de Janeiro e criado junto com seis irmãos em uma família típica de classe média, com uma rígida formação religiosa e bastante conservadora, Marcelo Auler chegou a pensar em ser padre (vocação que falou mais alto em seu irmão, o hoje monsenhor Gustavo Auler), mas ainda no chamado científico (hoje Ensino Médio) descobriu sua paixão pelo jornalismo, quando atuava como relações públicas no grêmio do Colégio Marista na Tijuca. Inclusive, começou sua formação e conscientização política dentro da própria igreja, graças ao capelão Padre Bruno Trombetta e a um quarteto de irmãos maristas (Aleixo Maria Autran, Carlos Eduardo Zanatta. Roberto Simão e Roberto Cheib), que discutiam a situação política do país nos anos de chumbo da ditadura militar na Missa do Porão, uma celebração feita por Trombetta às 18h de domingo, no porão da Igreja Nossa Senhora da Conceição.

Antes mesmo de ingressar na faculdade de Jornalismo já começou a trabalhar em algumas das principais redações do país e em quase 50 anos de carreira ganhou dois prêmios Esso (ambos quando trabalhava na Revista Veja, no começo dos anos 1990) e participou de diversas coberturas marcantes, históricas.

Em 2014, trabalhava na Comissão da Verdade quando surgiu a Lava Jato. No ano seguinte, depois de já ter criado o seu próprio site, o Marcelo Auler Repórter (www.marceloauler.com.br), resolve começar a participar ativamente da cobertura da operação de combate à corrupção, aproveitando o fato de que já conhecia e tinha alguma proximidade com Sergio Moro de anos antes, quando fez uma série de reportagens sobre Fernandinho Beira-Mar e o tráfico de drogas no Brasil.

A intenção de escrever um livro sobre o juiz federal, contudo, não prospera e ele resolve ir atrás de outras fontes que tinha no Poder Judiciário e na Polícia Federal para falar sobre a Lava Jato. É quando começa a descobrir diversas irregularidades cometidas por agentes da lei, como o grampo na cela de doleiros na carceragem da PF, a perseguição a policiais que criticavam a maneira como a força-tarefa vinha sendo conduzida, as prisões preventivas por tempo indeterminado para forçar delações premiadas e os vazamentos seletivos de informações à imprensa.

Por causa de suas descobertas, inclusive, passou a ser perseguido por pessoas ligadas à Lava Jato, como a delegada Érika Mialik Marena, que o processou e chegou a conseguir censurar judicialmente o jornalista. Após anos de luta, contudo, Auler conseguiu ganhar todos os processos que tinha contra si. “Tudo o que eu falei estava calçado em documentos e na verdade”, ressalta.

Ainda no âmbito da Lava Jato e de seus atores, Auler também foi o responsável por revelar os desmandos de Sergio Moro na Operação Agro-Fantasma, em 2013, na qual o então juiz colaborou no desmonte de uma iniciativa bem sucedida de combate à fome, prendendo preventivamente (e injustamente) uma dezena de trabalhadores ligados a associações e cooperativas de agricultores familiares. Agora, defende que o presidente Lula vá até Irati, no interior do Paraná, onde ficava a sede da cooperativa, e relance o projeto de aquisição de alimentos que incentiva a pequena agricultura familiar, lavando a honra daqueles que foram perseguidos injustamente por Moro. “Eu falei com ele e ele topou, disse ‘eu quero ir lá, Marcelo’. Só que ele ficou no ‘eu quero ir lá’ e agora tem que executar”, cobra o jornalista, que conhece Lula desde os anos 1970.

Com prisões, Moro prejudicou o combate à fome

Há exatos cinco anos, em 13 de agosto de 2013, o juiz Sérgio Fernando Moro, à frente da ainda 2ª Vara Federal de Curitiba – posteriormente redesignada 13ª Vara – contrariando o posicionamento do Ministério Público Federal (MPF), concordou com o pedido da Polícia Federal e determinou a prisão preventiva de onze pessoas acusadas de fraudarem o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) com Doação, desenvolvido pela Companhia Nacional de Abastecimento – CONAB.

Sua decisão colaborou no desmonte de uma iniciativa bem sucedida de combate à fome, hoje defendida mundialmente pelo diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), José Graziano da Silva, como mostrou o Jornal do Brasil na edição de domingo (12/08) – Brasil precisa reativar políticas contra a miséria, defende José Graziano da Silva.

A partir dessa autorização, a Polícia Federal deflagrou a Operação Agro-Fantasma, em 24 de setembro do mesmo ano, e atingiu em cheio um programa do próprio governo federal. Uma ação que, como de hábito, contou com ampla divulgação pela imprensa. O alvo principal da investida foram associações e cooperativas de agricultores familiares do Paraná assim como servidores da CONAB. Em especial um gerente apontado como tendo ligações ao Partido dos Trabalhadores.

Novo ministro Eugênio Aragão brigou contra e foi vítima dos vazamentos

O anúncio do nome do novo ministro da Justiça, o subprocurador da República Eugênio Aragão, de 56 anos, trouxe preocupação há muitos e logo começaram a surgir “velhas denúncias” contra o mesmo em uma tentativa de mostrar que seu objetivo é, controlar o Departamento de Polícia Federal (DPF) para paralisar as investigações da Operação Lava Jato.

Nos bastidores, como sabem que um ministro da Justiça não tem poderes administrativos, judiciais ou mesmo político para tamanha façanha, a luta é para evitar o controle do DPF que, no entendimento de muitos, ficou solto nestes anos de governo de Dilma Rousseff.

Aragão é ligadíssimo a Rodrigo Janot e certamente não jogará contra o procurador-geral. Sem falar que, como vice-procurador eleitoral, no TSE, foi contra a tese da defesa da presidente Dilma de que provas emprestadas da Lava Jato não poderiam ser usadas no processo reaberto para analisar as contas de campanha dela. Opinou favoravelmente justamente na ação que a oposição vê como uma das chances de retirá-la, junto com o vice Michel Temer, das cadeiras que ocupam.

Carta aberta ao ministro Eugênio Aragão

Prezado Ministro. Lá se vão 25 anos do nosso primeiro encontro, em Rio Maria, no sul do Pará, quando do “Dia Municipal contra a Violência e a Impunidade”, em 12 de março de 1991, um mês depois da morte do líder sindical Expedito Ribeiro da Silva. Eu, a serviço do extinto Jornal do Brasil.

Você – e me permito este tratamento por sermos da mesma geração, sem lhe faltar o devido respeito – junto com o seu então colega José Roberto Santoro, acompanhavam o Procurador Federal da

Defesa dos Direitos do Cidadão, Álvaro Augusto Ribeiro da Costa, ao mesmo tempo que, designados pelo então procurador-geral da República, Aristides Junqueira, elaboravam um dossiê sobre a violência em toda região. Na época, a contabilidade era macabra: em 11 anos, 17 líderes trabalhistas assassinados e muitos dos acusados por esses crimes, livres, ameaçavam a todos. Estava lá também Luiz Inácio Lula da Silva.

Pouco depois, já na Veja, a partir de outra investigação sua com o Santoro, fui, com o fotógrafo Paulo Jares, ao “Garimpo do Sangue”, em Matupá (PA). Mas esta é outra história.

Neste quarto de século, muita coisa aconteceu. Nos distanciamos, você de jovem procurador na época, chegou a subprocurador da República e eu continuei na missão de reportar. Mas, cada um na sua trincheira, lutamos pelos mesmos objetivos: o fim da impunidade, o restabelecimento, a partir da Constituição de 1988, do tão desejado Estado Democrático de Direito onde predominam as leis e, em consequência, a civilidade.

O grampo da discórdia na Lava Jato

Na revista CartaCapital que chegou às bancas neste final de semana (edição 869 – de 30 de setembro) duas matérias falam da Operação Lava Jato.

Na principal – “A Súmula Hoffmann” -, André Barrocal, de Brasília, conta os limites impostos pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a partir da decisão do ministro Teori Zavascki, ao delimitar à justiça federal de Curitiba apenas os casos relacionados ao esquema de corrupção desvendado junto à Petrobrás.

(…) Já a matéria secundária – “O Grampo da Discórdia” – é um texto de minha autoria sobre as divergências que continuam acontecendo dentro da Superintendência Regional da Polícia Federal, no Paraná, onde persistem as críticas aos métodos utilizados pela força-tarefa.

Trata-se, na verdade, da continuidade das apurações que comecei a fazer em julho passado quando estive em Curitiba. A primeira parte desta apuração eu publiquei nesse blog, em 20 de agosto: “Lava Jato revolve lamaçal na PF-PR”.

Nos dois textos, procurando ser o mais isento possível, mostro parte das divergências e discussões que ocorrem entre policiais federais e alguns advogados que atuam na defesa dos envolvidos nesta grande apuração.

Conto como surgiu a versão de que “dossiês” contrários à Lava Jato estariam sendo fabricado – o que, diga-se, jamais se confirmou; falo do envolvimento da doleira Nelma Kodama com um agente da Policia Federal que a presenteava com flores e bombons, retirando-a da cela nas noites de plantão; revelo que esse agente, que sofria de problemas psicológicos e deveria estar de licença médica, acabou suicidando-se; relato as tentativas da mesma doleira em colher informações com o seu antigo defensor, para repassá-las aos delegados que acusaram o advogado de preparar dossiês; explico como o delegado Mario Henrique Castanheira Fanton foi chamado à Curitiba para investigar os supostos “dossiês” e acabou se atritando justamente com aqueles que o convocaram.

Entrevista exclusiva do museu da lava jato

MUSEU DA LAVA JATO: Você está com quantos anos? Como e quando começou a sua trajetória dentro do jornalismo?
MARCELO AULER:
Eu tenho 67 anos e iniciei no jornalismo em 1974, com dezoito anos e meio. Eu sou de agosto e comecei em janeiro de 1974. Não comecei antes porque era menor de idade e alegaram que eu não poderia trabalhar na Rádio Globo, onde eu comecei, sendo menor de idade, porque a rádio era considerado um ambiente de prostituição. Foi o que o meu chefe, Mario Franqueira, falou na época.

Aí eu deixei passar um ano. Em janeiro de 1973 eu tinha procurado emprego, deixei passar um ano e fui lá, disse “oh, agora eu já tenho 18 anos”. Eu tinha entrado pra faculdade no vestibular de dezembro, mas ia começar em março. E eu comecei a trabalhar em janeiro. Ou seja, eu comecei antes de entrar na faculdade, de começar a faculdade.

Já aprovado na Faculdade Hélio Alonso, mas antes de começar. A partir daí, eu trabalho há quase cinquenta anos, né? Janeiro de 1974. Eu acho que dá uns cinquenta anos contando aí em 2023.

MLJ: E você teve uma formação religiosa, veio de uma família conservadora. Seu irmão, Gustavo Auler, é padre, inclusive, não?
AULER:
Sim, eu tenho um irmão padre. Eu sou católico, apostólico, numa família tradicional, católica e conservadora, que apoiou o golpe militar de 1964.

A minha mudança política se dá na década de 1970, quando eu saio das escolas públicas, porque eu era muito endiabrado e a minha mãe queria ver se eu me santificava um pouco, e ela me põe no Colégio Marista. Por conta da nossa ligação com a igreja, eu era sacristão e o padre que então me celebrava nos Maristas, me apresentou lá no Colégio Marista, ganhei uma bolsa de estudo, meia bolsa. Porque o meu pai… A minha família é de sete filhos e meu pai e minha mãe eram classe média tradicional. Nunca faltou comida, mas nunca sobrou dinheiro. Cada um se virou como pôde. E aí eu fui o único a estudar numa escola particular. Todos os outros estudaram em escola pública. E eu estudei então no Marista nos anos de 1971 e 1972, primeiro e segundo científico, fazia Engenharia. Mas ali dentro, trabalhando no Grêmio como Relações Públicas, eu acabei descobrindo a minha vocação pro jornalismo. E aí em 1973 eu fui fazer o pré-vestibular no curso Hélio Alonso de Humanas, para entrar pra Comunicação. Em 1974 eu entro na faculdade e começo a trabalhar.

Ali nos Maristas, graças a um padre que já faleceu e a um irmão Marista que já faleceu, o padre Bruno Trombetta, o irmão Aleixo Maria Autran e outros três jovens irmãos [Carlos Eduardo Zanatta. Roberto Simão e Roberto Cheib], dos quais só um está vivo, que é o Roberto, que hoje é psicólogo em Vitória, a formação religiosa era política. Nós estávamos em pleno governo Médici. Eles davam aula de religião com a Declaração de Direitos Humanos em cima da mesa. Então nós tínhamos um debate político. Ali eu comecei a me interessar pela política. Naquela época eu dizia que eu não queria saber de política e aí um colega meu até falou, já falecido também, que virou jornalista também, o Marcelo Corrêa, lá de Vitória, falava assim: “Você é um homem ou é um rato? Você tem que querer saber de política”. E aí eu comecei a me interessar por política e aí eu entrei pra faculdade. Agora, eu jamais militei no movimento estudantil porque eu já trabalhava. Então eu comecei, acabei militando no movimento sindical.

Eu fiquei 1974, 1975 na Rádio Globo. Em 1975 eu pedi férias. Eu era colaborador no início, depois assinaram a minha carteira como auxiliar de serviços gerais, sei lá o que. Não quiseram me dar férias e eu pedi demissão, fui viajar pelo Nordeste com mais dois amigos, de ônibus, para conhecer o trabalho das Comunidades Eclesiais de Base. Eu subi do Rio [de Janeiro] para Salvador, de Salvador para Juazeiro. De Juazeiro na Bahia foi até Juazeiro [do Norte], no Ceará. Fui a Crateus, onde tinha um bispo fantástico, Dom Fragoso. Depois fui a Fortaleza, Natal, Recife, João Pessoa e voltei. E aí conheci vários bispos, entre eles Dom Helder Câmara, Dom Fragoso, um trabalho, uma visita muito interessante.

Quando voltei, voltei pro jornalismo. Trabalhei um tempo no O Globo, jornal O Globo, já não estava mais na Rádio Globo, e depois eu saí. A essa altura eu já trabalhava pra jornais alternativos, a chamada imprensa de esquerda, imprensa alternativa, em especial o jornal Movimento e o jornal Pasquim. Eu era o novato do Pasquim. O Ziraldo dizia que estava me adotando, né? Era novato no Pasquim e comecei a aprender com eles, fazia aquelas entrevistas enormes. Em 1976 eu fiquei nessa vida híbrida, sem emprego certo. Saí d’O Globo por conta de uma reivindicação salarial, então você vê que eu já perdi emprego por conta de reivindicação salarial sem ser sindicalista. E em 1977 eu entro pra revista Manchete, trabalho como repórter da revista Manchete e em 1978 eu sou demitido da revista Manchete porque queriam demitir um amigo meu, que não podia ser demitido porque tinha acabado de ser eleito diretor do Sindicato dos Jornalistas. Nós, em 1977, 1978, fizemos um movimento de oposição no Sindicato dos Jornalistas que derrubou a pelegada que estava lá há muito tempo. Era José Machado Pelego e nós elegemos o Carlos Alberto Oliveira, o Caó, que depois veio a ser deputado federal. E queriam demitir um amigo meu, Paulo César Araújo. Paulo César não podia ser demitido, porque ele tinha mandado sindical. Quando o diretor soube que o Paulo não podia ser demitido, aí o o chefe de reportagem disse assim “não, mas o Marcelo é muito amigo dele”. Aí ele disse “então demite o Marcelo”. Aí me demitiram.

Aí eu tomo a melhor decisão da minha vida. Eu tinha ido pedir emprego antes, porque eu já tava insatisfeito com a Manchete, ao Jornal do Brasil, ao Walter Fontoura. Aí eu liguei pra ele e disse “ô, Walter. Eu fui aí pedir emprego a você, mas oh, esquece. Eu acabo de ser demitido da revista Manchete, eu não quero mais o emprego que você me prometeu arranjar aí não”. Ele disse “como você está demitido e não quer um emprego?” Eu disse “não, eu resolvi. Eu sou muito jovem…”, isso era 1977, eu tinha vinte e dois anos, vinte e três anos. “… sou muito jovem, sou solteiro, eu vou pra Brasília, eu quero conhecer Brasília, quero morar em Brasília dois anos e saber como é que funciona aquilo lá”. Aí ele falou “Ah, mas então eu tenho emprego hoje pra você. Pode ir lá e bater na porta”. E aí eu fui pro Jornal do Brasil em Brasília. Fiquei um ano no Jornal do Brasil, um ano no Jornal de Brasília. Fui demitido do Jornal de Brasil por conta de uma brincadeira lá. Uma bobagem. Aí me levaram pro jornal de Brasília e eu, sem ser formado, porque eu já deveria ter concluído a faculdade. Já era 1978, eu entrei em 1974. Mas em 1977 apareceu uma viagem para fazer pela Manchete, que eu ia ficar quinze dias [fora]. Eu já estava mal no último período da faculdade, eu vi que ia ser reprovado e aí licenciei-a, tranquei matrícula pra voltar no semestre seguinte e não voltei. Semestre seguinte, eu demitido da Manchete, fui pra Brasília e levei o curso pro CEUB. Cheguei lá, eu voltei um período pra trás. Aí eu comecei a estudar a noite, só que você passava o dia inteiro trabalhando no Congresso em ebulição. Nós estávamos ali brigando pela redemocratização. Era 1978, final do governo Geisel e início do governo Figueiredo, e em vez de eu ir pra faculdade, eu ia pro bar pra encontrar os amigos, saber as fofocas dos outros. As sucursais eram muito próximas ali no Setor Comercial Sul, bares e prédios, e a gente se encontrava sempre no bar Márcia, no edifício Márcia, e ali ficavam fofocando o dia inteiro, sabendo tudo que acontecia na cidade. Acabei não fazendo curso lá.

Eu era do Jornal de Brasília, era chefe, editor de Cidades, mesmo sem estar formado, só com registro de estagiário, e aí eu voltei de uma viagem. Eu tinha vinte e dois repórteres trabalhando comigo e me pediram pra eu demitir onze repórteres, pra contenção de despesa. Eu disse “não, não vou fazer isso. Sou contra fazer isso. Não tem como”. “Não, mas não pode”. “Não, eu entrego o meu cargo de chefia”. Aí ele disse “não, mas eu não tenho salário pra você sem o cargo de chefia”. “Então você me demita. E como o meu salário é mais alto, você está demitindo onze por contenção de despesa, você salva duas cabeças. Não precisa demitir onze. Até porque se eu for demitir onze, você vai me pedir pra ser carrasco duas vezes”. Eu falei isso pro diretor da do Jornal de Brasília, que era o Francisco Baker, uma ótima pessoa, mas só que ele estava cumprindo o jogo da casa e eu não vou discutir se estava certo ou errado. Só que eu não faria. Fui eu e o Jorge Oliveira, que também tinha ido pra lá pra ser chefe e também não aceitou e foi embora. Eu disse “olha, você vai me pedir pra ser carrasco duas vezes. Primeiro escolhendo onze pra demitir e botar na rua,
e segundo cobrando dos onze que ficarem o trabalho que é de vinte e dois. Aí você vai querer que eu chicoteie todo dia o pessoal ‘ah vamos lá, vamos lá’. Não vou fazer”.

Nisso eu fiquei desempregado, comecei a dar bobeira lá em Brasília e aí aparece uma viagem pra São Paulo, porque ia ter num domingo um comício… Em 1978, no ano que eu estava na Manchete, aqui no Rio, na ebulição política que nós vivíamos, e ocorreram alguns debates no Teatro Casa Grande, no Leblon, que era um teatro de resistência. Eram os debates políticos: um dia discutia-se jornalismo, comunicação, um dia se discutia economia, outro dia discutia sindicalismo. No do sindicalismo, isso foi em março ou abril… Eu tentei recuperar isso nos jornais e não achei. No de sindicalismo, quem veio para dar um depoimento foi Luiz Inácio Lula da Silva. E aí eu conheci o Lula naquela época. Nós fomos, eu convidado pela Graça Lago, filha do Mário Lago, minha colega jornalista, nós fomos tomar uma cerveja depois no Diagonal, lá no baixo Leblon. Levei uma bronca dos meus amigos depois. Esse Paulo César, que eu acabei demitido por causa dele, “como é que você leva um líder sindical pro baixo Leblon? Bar de burguesia, não sei o que, não podia”. E o Lula adorou tomar chopp lá.

E em 1978… Isso foi no início do primeiro semestre. Quando eu vou pra Brasília, meu primeiro trabalho é acompanhar os líderes sindicais que tinham ido lá pressionar o Congresso numa lei anti-greve. Eles estavam reunidos num clube de imprensa e o Jornal do Brasil me mandou porque não tinha outro na redação. Eu cheguei cedo, precisava acompanhar os caras, “vai você mesmo”. E aí o Lula me viu, disse “ué, você aqui?” Eu disse “acabei de me mudar pra cá”. “Ah, então eu vou te apresentar a cidade”. E me apresentou a cidade, me levava às festas, me levava às reuniões, e cada vez que o Lula ia a Brasília, nós sentávamos para tomar um chopp, tomar uma cerveja, principalmente num bar chamado Chorão, que era próximo do local em que ele dormia, na casa, se eu não me engano, do deputado Airton Soares. E ali no Chorão foi que nós começamos a discutir a criação do Partido dos Trabalhadores, por conta de que ele via que a pressão que ele fazia no Congresso não servia em nada, que não tinha líder trabalhista sindical, nenhum trabalhador quase, operário, como deputado. Eram todos profissionais liberais, empresários. Assim nasce a amizade também com o Lula.

Isso faz com que em 1980, quando eu saio do jornal de Brasília, eu vá a São Paulo, com um amigo meu que era do Sindicato dos Jornalistas… Eu militava no Sindicato dos Jornalistas, mas eu nunca fui diretor de sindicato, nunca quis mandato. Mas tinha um colega meu [que era do Sindicato] e nós fomos juntos para uma assembleia dos metalúrgicos no Estádio da Vila Euclides, num domingo. Domingo teria essa assembleia, segunda-feira era a entrega do prêmio Vladimir Herzog pra dois colegas meus, jornalistas do Rio, entre ele o mesmo Paulo César Araújo, que agora tava na Folha de S. Paulo e fez um belíssimo trabalho na Baixada Fluminense. Então eu fui a São Paulo para ir a essa assembleia e pra ir, também, à entrega do prêmio Vladimir Herzog, que, coincidentemente, era no aniversário do Lula, no segundo dos dois aniversários que o Lula tem. O Lula tem uma data oficial, que é a que ele nasceu, e tem uma data em que ele foi registrado. E quem levaria a gente era o Frei Beto, de quem eu já era amigo, já tinha sido apresentado a ele. Então saímos eu e Ariosto [colega do sindicato] de ônibus numa sexta-feira, chegamos sábado de manhã, domingo fomos à Vila Euclides, segunda-feira fomos à entrega do prêmio e depois fomos jantar com o Lula e no sábado a gente não tinha o que fazer, resolveu ir a um show da Clementina de Jesus com Adoniran Barbosa. Coisa raríssima. Parece que foram duas vezes que eles cantaram juntos e nós estávamos lá. E nesse show eu me engracei com uma menina na fila, com uma menina muito bonitinha, e eu me engracei com ela. Depois eu ia tomar um chopp também com o Luis Nassif, que eu já conhecia naquela época, e convidei ela [a menina] e duas amigas para irem comigo. No domingo a gente saiu e dez dias depois eu me mudei pra São Paulo e acabei casando com essa menina.

Aí eu morei de final de 1980 a 1986 lá em São Paulo. Casei e depois que eu ‘descasei’ eu saí fora porque eu já não aguentava mais de dor de cotovelo. Ela é minha amiga até hoje, ótimo, e foram duas experiências fantásticas, tanto eu morar em Brasília como eu morar em São Paulo.

MLJ: No final, você acabou tendo a experiência de viver nos principais centro do Brasil, né? Porque você nasceu no Rio foi Brasília e depois São Paulo…
AULER:
Sim, sim. Foi maravilhoso isso. Foi uma experiência fantástica. E ela, a família dela, era uma família bem situada em termos de política. Era uma família de esquerda, muito ligada ao MDB, ao Franco Montoro, ao Fernando Henrique. O pai dela é primo-irmão da mulher do Luiz Carlos Bresser Pereira, da Vera Cecília. E aí eu frequentei a casa… Ela foi criada junto com a filha do Bresser Pereira, a Renata e a Patrícia. E nós frequentávamos a casa do Bresser e eu fiquei muito amigo do Bresser, é meu amigo até hoje. Então, na verdade, eu conheci a esquerda, o PT, lá via Brasília, os sindicalistas via Lula, e conheci a esquerda intelectual via família da minha namorada, que depois virou a minha esposa, né? Casei em 1982, em plena campanha pra governador do estado, em que o Montoro, que esteve no meu casamento,
disputava com o Lula, que não foi ao meu casamento, mas mandou o Eduardo Suplicy o representando. E o Airton Soares estava lá também.

Então, pra você ter uma ideia, essa é a minha trajetória. Essa trajetória que eu fiz me deu conhecimento de pessoas, me deu amizades que valem até hoje. Fundamental. Foi nesse período de São Paulo que eu me aproximo também de Ricardo Kotscho e viro irmão dele e de vários outros colegas jornalistas. Aí, depois que eu me separei, em 1986, em dor de cotovelo, sofrendo muito, vim pro Rio de Janeiro retomar minha vida profissional.

MLJ: E nos anos 1990 você é uma figura fundamental na cobertura do Governo Collor, ganha o Prêmio Esso trabalhando na Veja… Como que foram esses anos aí?
AULER:
É, eu tenho dois prêmios Esso pela Veja. Eu voltei pro Rio… Eu trabalhava na Folha em São Paulo. Quando eu fui pra lá eu trabalhei na Folha, comecei na Folha Educação, no Fuvest. Depois fiquei na Educação. Comecei a cobrir o Conselho Estadual de Educação na época do Paulo Maluf governador e a fazer uma série de denúncias de irregularidades. Quando o Montoro assume, ganham… Eu apoiei o Lula. O Montoro convida para secretário de Educação dele o Paulo de Tarso Santos, que foi ministro de Educação do Jango. O Montoro achava que não poderia pôr o Paulo de Tarso por causa que os militares iriam achar que era provocação. Mas quando o Brizola ganha no Rio, ele viu que não tinha nenhum problema e botou o Paulo de Tarso. Aí o Paulo de Tarso me chama para trabalhar com ele. Eu disse “não, mas eu não quero largar o jornalismo, eu trabalho na…”. Ele disse “não, você continua na Folha”. Eu disse “mas eu não posso ser assessor de de imprensa”. Aí ele “não quero você como assessor de imprensa. Eu quero que você faça um outro tipo de trabalho. Eu quero você como assessor comunitário. Eu quero desenvolver um trabalho de convencer os pais de alunos das escolas, principalmente da periferia, para utilizarem o espaço da escola nos fins de semana, quando ficam fechado. Ele dizia “é um absurdo. Você tem escolas com quadra de futebol” – tinha uma ali em Santana que tinha até piscina – “e elas ficam fechadas e a população paulista não tem praia, não tem ônibus para ir pro seu lazer. Então se você conseguir organizar os pais, para eles próprios ocuparem o espaço com festa, campeonato, jogos, é tudo que nós queremos, porque inclusive nós vamos ajudar a preservar os prédios, não vão ter depredações”. E aí eu fui trabalhar com isso no governo do Montoro, por isso eu saí da área de Educação da folha e aí passei pra área de Justiça e Polícia. Mais Justiça do que Polícia e ali eu começo a desenvolver o meu trabalho.

Eu fico na Folha até 1985, saio da Folha e começo a trabalhar para umas revistas técnicas da Gazeta Mercantil, principalmente a revista “Administração e Marketing” e “Balanço Financeiro”, uma de economia, outra de marketing, administração. Quando eu me separo, volto pro Rio. Essas revistas acabam no próprio ano de 1986 e aí me passam pra ISTOÉ, que tinha sido incorporada pela Gazeta Mercantil. Eu não me adaptei na ISTOÉ e pedi demissão. Pedi demissão e estava decidido a ficar dois ou três meses… Era outubro, novembro e disse assim “eu tô solteiro, eu tenho alguma grana guardada, eu vou pra praia, não vou trabalhar”. Aí o pessoal da Gazeta Mercantil me chama e me pede pra vir a Brasília, fazer um freela pra eles que ia me render um bom dinheiro. Falei assim “ótimo, eu vou a Brasília, faço o freela, pego o dinheiro e vou pra praia”.

Quando eu tava em janeiro, escrevendo o freela lá em São Paulo, o Jornal do Brasil me chama, porque apareceu uma vaga na Economia e aí o William Waack me chamou pra ser repórter. Aí eu fui pro JB e fiquei no JB até 1990, 1991, quando houve uma debandada. O Marcos Sá Corrêa, que foi um dos melhores diretores de jornalismo que eu já tive na minha vida, junto com Flávio Pinheiro, Roberto Pompeu e Ancelmo Gois, desentendeu-se com a família Nascimento Brito e saiu. Uma parte foi pro Jornal O Dia, com o Chico Vargas, e outra parte foi pra Veja. E o Ancelmo, que foi pra Veja do Rio, leva a mim e ao Arnaldo. E nós vamos trabalhar lá na Veja, com o Mário Sérgio Conti em São Paulo.

Vem a história do Collor e a gente começa a trabalhar. Começa a trabalhar no Collor e um belo dia aparece a história do nosso Luis Costa Pinto, o Lula lá de Brasília, que era da sucursal da Veja em Recife e depois se muda pra Brasília. Ele foi o primeiro a trazer as denúncias contra o Fernando Collor, feitas pelo Pedro Collor numa entrevista a ele. Ele ia muito a Alagoas, conhecia toda a família, conhecia PC Farias, aquela coisa, e aí surge a história de denúncia e começamos a investigar; Começamos a investigar e aparece a figura nefasta do Paulo César Farias, o PC Farias, como o o homem da mala do dinheiro do Collor. Numa terça-feira eu chego para trabalhar – segunda eu estava de folga porque eu tinha trabalhado um plantão de sexta pra sábado até seis horas da manhã e aí você folgava na segunda – e recebo um telefonema anônimo, dizendo que tinha alguma coisa muito estranha acontecendo porque os filhos do Collor com a Lilibeth Carvalho, que moravam no Rio, tinham segurança da Polícia Federal porque eram filhos do presidente da República. Eles andavam num carro blindado e quando começa aparecer o nome do PC Farias, esse carro blindado desaparece. Some. Porque a Polícia Federal nunca soube de quem era o carro blindado. Aí corro daqui, corro dali, começo a perguntar sobre o carro e quando eu pergunto sobre o carro as pessoas dizem assim “só de me perguntar você já me deixou em maus lençóis Não posso falar”. Começo a correr atrás, peço ajuda à redação de São Paulo e a minha querida Mônica Bergamo, que estava começando no jornalismo, foi escalada para visitar as lojas que blindavam carros, para saber quem tinha blindado um carro que servia ao filho do Collor. E ela foi na primeira, na Massari. Claro que ela não chegou lá falando “vim aqui pra saber se eles blindaram o carro do filho do presidente”. Não. “Estamos fazendo uma matéria sobre sequestro de jovem, não sei o quê, todo mundo tá blindando o carro, porque está muita violência”. E aí ficou lá nesse lero-lero uma hora, uma hora e meia, e ao final de tudo ela diz assim “a propósito, meu colega no Rio fotografou um carro blindado que atende aos filhos do Collor”. Aí o cara disse “ah, fomos nós que blindamos”. Ela disse “ah, é? Será que é o mesmo que foi fotografado? Qual a placa do carro que vocês blindaram?” Aí o cara foi no arquivo e deu a placa pra gente, que era o que faltava. Graças à Mônica, confirma-se: aí eu descubro que esse carro era do Paulo César Farias, que já usava para os filhos do Collor e aí faz a ligação Paulo César ajudando o Collor, e vice-versa.

Essa foi a matéria com a qual eu, junto com a equipe da Veja – porque não foi uma matéria só, foram várias matérias – ganhamos o prêmio Esso naquele ano, que foi 1992.

MLJ: E no ano seguinte o senhor ainda ganha mais um Esso, né?
AULER:
O senhor está no céu [risos]. Eu ganho em 1993, mas aí é outro caso. É o “Sangue dos Inocentes”. Eram quatro rapazes que moravam na Baixada Fluminense, tinham ido à praia e, ao voltarem da praia, desceram num local chamado Cinco Bocas, ali em Olaria, porque eram cinco ruas que se cruzavam. Vieram de ônibus, desceram do ônibus pela porta de trás – naquela época você entrava pela porta de trás e saía pela porta da frente – sem pagar passagem. Fizeram uma arruaça e começaram a perseguir os rapazes, aí começaram a gritar “pega, pega, pega ladrão” e eles foram linchados e queimados vivos, como se tivessem roubado uma senhora, uma velhinha que com cabo de vassoura furou o olho de um deles.

Isso foi um crime horrível, num sábado. Todo mundo dizia que eles eram assaltantes. Como nós, eu e a minha colega Virginia Leite, que depois esteve na casa deles na Baixada, e fomos levantando as peças do quebra-cabeça e provamos que não, eles não fizeram nada, eles apenas não pagaram a passagem. E os bicheiros ali saíram perseguindo eles porque não queriam arruaça no ponto deles. E esse crime ficou impune até hoje. O único que pagou pelo crime foi o porteiro de um hospital na região que me deu a informação de que os médicos do hospital foram impedidos de atender o garoto. Tiveram que esperar uma ambulância, não era SAMU naquela época. Uma ambulância pública porque não deixaram os médicos atender. E aí descobriram e demitiram esse porteiro. Esse foi o segundo prêmio Esso que eu ganhei, em 1993.

MLJ: E quais outras reportagens, entrevistas ou coberturas destacaria ainda nessa sua longa trajetória dentro do jornalismo?
AULER:
Eu gostei muito de fazer, com o Zuenir Ventura no JB, a cobertura do julgamento dos assassinos do Chico Mendes. Chico Mendes foi assassinado em dezembro de 1988 e em 1989 o Zuenir esteve lá fazendo uma matéria especial e ele descobriu uma testemunha fundamental, que era um jovem que morava na casa dos assassinos. Ele acabou adotando a criança, virou tutor da criança, trouxe pro Rio pra proteger o garoto, o Genésio, e eu depois, junto com ele, fomos montar a cobertura do assassinato, dos assassinos, que se deu eu não me lembro mais quanto tempo depois. Mas eu ia muito ao Acre fazer matérias sobre ambientalistas, sobre o sucessor do Chico Mendes, que era o Osmarino Amâncio. Foi quando eu conheci a atual ministra Marina [Silva], encontrei com ela agora em Brasília, estávamos relembrando disso. Conheci o hoje ex-senador e ex-governador do Acre, Jorge Viana, ele ainda fazendo campanha para prefeito de Rio Branco pelo PT. Isso é lá pelos anos de 1988, 1989, 1990.

O julgamento seria na pequena cidade de Xapuri, que tinha um único hotel, em péssimas condições. E nós tínhamos que levar o Zuenir e a mulher do Zuenir por causa do Genésio, que estava com eles. Eu, mais um fotógrafo e mais o correspondente do Acre, Sílvio. E aí fomos antes, eu providenciei uma casa, o JB alugou a casa, entendeu-se com o Banco do Amazonas, que a casa era deles, de um gerente, estava vazia. Mobiliamos, fizemos toda uma estrutura para fazer essa cobertura. E isso eu gostei muito. Isso está registrado não só nas reportagens da época, que eu tenho guardado, mas no livro que o Zuenir escreveu a respeito.

Na década de 1990, no jornal O Dia, eu fiz uma série de reportagens sobre os criminosos da Polícia Federal. A matéria, que deu vários processos – principalmente pelo título, que não fui eu quem deu, foi o meu amigo Arnaldo César: “Bandidos e mocinhos”, mostrando que ao mesmo tempo que esses caras deveriam ser mocinhos, eles eram bandidos – mostrou noventa e poucos policiais federais envolvidos com o crime ou com irregularidades aqui na superintendência do Rio de Janeiro, onde era uma bandalheira. Depois moralizaram essa superintendência.

Na Folha eu tive algumas matérias que eu achei muito interessantes, uma delas de um louco que andava nu pela cidade. Eu seguia o louco e as pessoas conheciam, ninguém faziam nada e gerou um belo debate de como tratar essas pessoas. E outras denúncias na área de educação… então tem variados assuntos. Na própria Veja eu fiz outras matérias também, que agora eu não vou lembrar, mas tem guardadas aí.

E aí, depois de muito rodar, eu fui parar no ano de dois mil e pouco, 2006 ou 2007, se eu não me engano, no jornal O Estado de S. Paulo. No Jornal O Dia, que foi onde eu fiquei o maior tempo quase, eu fazia matérias também de Polícia e naquela época você tinha a questão do tráfico de drogas muito forte no Rio de Janeiro. E um dos principais traficantes era o tal do Fernandinho Beira-Mar, que estava no Paraguai, foragido. Paraguai, Colômbia, Bolívia, por ali. E eu dei uma de João sem braço, fui no advogado dele, que era lá de Caxias, e disse “olha, eu quero falar com seu cliente”. Ele disse “como você quer falar” e eu respondi “ué, seu cliente fala com você por telefone. Então manda ele ligar pra mim”. E o Fernandinho Beira-Mar passou a ligar para mim, de um telefone de celular 000, satélite, todo incrementado. Ele me criticava e eu dizia assim “olha aqui, ô cara. Eu prometo publicar o que você me falar, mas como eu estou lidando com um cara que é acusado de crimes e é foragido, eu preciso me resguardar. Então eu só publico aquilo que eu gravar e eu não gravo em celular”. Eu tinha um celular d’O Dia que era aquele tijolão Nokia e não se gravava nada. “Então pra você me dar uma entrevista pra ver publicada, você vai ter que ligar no meu ramal lá no jornal”. E ele ligava. E eu gravava. Fizemos várias denúncias.

Isso me leva a Curitiba quando eu descubro que um juiz chamado Sergio Moro, em 2007, estava comandando uma operação chamada Operação Fênix, para desbaratar a quadrilha do Fernandinho Beira-Mar, que lá do Paraguai, Bolívia, Colômbia administrava o tráfico de drogas pro Brasil, principalmente via Curitiba. Sergio Moro já era o juiz da Vara Especial de Crime organizado, de lavagem de dinheiro, e aí assumiu essa responsabilidade. Isso me levou lá a conhecer o Sergio Moro, que me recebeu numa boa e me deu informações. Abriu a penitenciária de Catanduva para eu conhecer. Eu fui com o Miltinho, fotógrafo excelente que hoje está ainda no Estadão, mas está lá em Brasília. Nós saímos de carro de Curitiba, fomos a Catanduva, depois dormimos em Sete Quedas, Iguaçu, alguma coisa assim, e fomos pra Ponta Porã. Alugamos um avião, o Estadão pagou isso pra gente, pegamos um avião, sobrevoamos o Paraguai, fotografamos a fazenda do Fernandinho Beira-Mar, fizemos uma excelente matéria. O Sergio Moro gostou e a partir daí eu fiquei, de certa forma, amigo do Sergio Moro. Então quando eu ia a Brasília, ele já estava trabalhando no gabinete da Rosa Weber, por duas vezes nós almoçamos junto.

Quando vem 2015… Em 2014 começa a Lava Jato. Eu estava fora do Estadão e trabalhava nessa época na Comissão Estadual da Verdade, já não era mais jornalista de escrever pra lugar nenhum, e a minha companheira de então resolve abrir um blog pra mim, porque eu estava escrevendo no Facebook. Ela disse “vamos abrir um blog pra você”, que é o blog Marcelo Auler Repórter. E aí eu abro esse blog e começo a escrever. Me chama um amigo e diz assim “que tal se você fosse a Curitiba pra gente falar sobre esse juiz Sérgio Moro? Vamos fazer um livro sobre ele, não sei o quê”. Aí eu fui lá, bati na porta do Sergio Moro, que foi gentil, me atendeu, mas não me deu informação nenhuma. “Não, não quero saber de livro, já tem outros querendo”. Nessa época o filho da Miriam Leitão, o Vladimir Netto, já estava fazendo o livro dele e acabou sendo um livro meio chapa branca, falando bem [do Moro]. O Sergio Moro não quis falar comigo, Dallagnol não quis falar comigo, a Polícia Federal não quis falar comigo. Só que eu tinha outras fontes e aí eu fui atrás dessas outras fontes e elas começaram a me contar as irregularidades da Lava Jato. O grampo na cela dos doleiros, a perseguição a policiais que criticavam a maneira como eles estavam tratando as pessoas, as prisões por tempo de indeterminado pra forçar a barra e sair delação premiada. E aí eu comecei a me aprofundar e comecei a receber documentos. Recebi um um depoimento de um delegado que acusava a Érika [Mialik Marena, delegada da PF] de passar matérias para a imprensa para garantir que o assunto não fosse boicotado. Ela partia do princípio “temos que dar divulgação ao que a gente descobre, mesmo estando em sigilo, para que a sociedade pressione para que não deixe mudar a investigação”. E eu recebi esse depoimento, mas não podia tirar cópia, havia marca d’água com o CPF de quem imprimiu. O que eu fiz? Então peguei o depoimento lá, liguei o gravador e li o depoimento todo para depois transcrever no papel. Eu tinha a prova ali. Foi quando eu acusei a Érika de que ela vazava informação e ela resolveu… Eu procurei ela antes, mandei e-mail pra todos eles e ninguém quis falar. Aí ela resolveu me processar. Ela me processou três vezes, o delegado Maurício Moscardi Grillo me processou uma vez e tem um outro delegado que eu não me lembro o nome, que é de menor importância, que me processou depois também. E eu ganhei todos esses processos, porque tudo que eu falei estava calçado em documentos e na verdade.

Esta foi a sina que eu paguei pela Lava Jato. Agora, para ganhar isso demorou muitos anos, demorou muitos anos. Tive que ter advogados, que graças a Deus trabalharam praticamente de graça pra mim. Tive que viajar não só pra Curitiba, mas viajei inclusive para Brasília pra ouvir depoimentos. Tive gastos importantes que não foram compensados. Agora, eu não sei…As pessoas acham que eu deveria entrar com uma ação contra ela, mas eu não sei se eu vou entrar, não.

MLJ: E por mais que os você tenha ganho o processo ao final, houve um momento em que você chegou a sofrer censura, as matérias chegam a ser retiradas do ar sem que você ao menos tenha sido ouvido no processo, né?
AULER:
Sim, sim. Ela conseguiu, com um juiz do foro especial dessa pequena instância, que ele decretasse a censura antes de me ouvir. E a censura desse juiz chegou a ser derrubada pelo Supremo Tribunal Federal. Mas o Supremo Tribunal Federal não conseguiu fazer valer a decisão dele, eu não consegui. Porque o Supremo demorou… Eu também demorei a entrar no Supremo, o Supremo me deu ganho de causa, mas era pra censura que tinha sido determinada liminarmente. Quando eu levei a decisão do Supremo lá sobre a liminar, o juiz me disse assim “não, agora já tem uma sentença que eu te condenei a pagar dez mil reais a ela e mantenho a censura. Isso aí derrubou a censura da liminar, então não valeu. Só foi acabar a censura quando nós recorremos da decisão do juiz e o tribunal especial derrubou a sentença dele por três votos a zero, me dando ganho de causa.

MLJ: E até aproveitando que a gente já entrou no assunto da Lava Jato, quais as Suas primeiras lembranças sobre a Operação e houve algum momento em que chegou a ter alguma esperança, digamos assim, com a Lava Jato?
AULER:
A Lava Jato começa em março de 2014 e eu entro nesse caso, vou pela primeira vez a Curitiba em julho de 2015. Do primeiro período, é claro que eu achava estranho algumas histórias envolvendo o PT, mas tendia a acreditar que algumas coisas eram verdadeiras, e eu acho que tinham coisas verdadeira mesmo. Diretores da Petrobras roubaram, não tenho a menor dúvida disso. Agora, não se pode dizer que diretores da Petrobras roubaram para alimentar a campanha do PT. Eles roubavam há muito tempo, desde o governo Fernando Henrique Cardoso ou antes até. Eles tinham algum plano macomunado com determinados políticos, para os quais eles passavam ajuda de campanha. Então teve um momento… Claro, e mesmo quando eu comecei a escrever, eu escrevia com muito cuidado, porque eu tinha medo e toda a opinião pública estava sendo induzida a ser favorável a Lava Jato. Mas aí eu comecei a receber as informações das ilegalidades, das irregularidades. E ainda existem ilegalidades e irregularidades que não vieram à tona. Estão guardadas a sete chaves em determinados inquéritos que eu não consigo acessar. Já tentei de todas as formas e não consegui acessar.

Então teve um momento, sim, que eu escrevia com muito cuidado, para não ser leviano e não estar apoiando a corrupção. Em momento algum eu quis apoiar a corrupção. Só que depois a gente ficou vendo que o caso foi muito mais grave. Que em nome de combater uma suposta corrupção, eles cometiam crimes muito maiores. E aí vem a história da Operação Agro-Fantasma, que atinge uma cooperativa de agricultores familiares de cinco municípios, a sede era em Irati, no Paraná. Nessa operação o Sergio Moro… Isso foi antes da Lava Jato, isso foi em 2013 e a Lava Jato é de 2014. O Sergio Moro prende esses caras sem ouvi-los, suspeitando de corrupção, derruba todo um projeto de produção de alimentos orgânicos que alimentava escolas, asilos, hospitais, creches e população carente, sob a suspeita de corrupção que não houve.

Eu defendo, inclusive, que o presidente Lula visite Irati e lave a honra desses agricultores. Vá lá relançar o projeto de aquisição de alimentos que incentiva a pequena agricultura familiar a plantar para distribuir, pra vender para a CONAB, que compra os alimentos e redistribui. Esse pessoal levava diretamente pras escolas. Ganhavam dez, doze mil reais por ano. Não é por mês, não. E o Sergio Moro enxergou corrupção, prendeu todo mundo. Todos eles foram absolvidos, não só os agricultores, como os administradores da CONAB. Os agricultores foram presos tiveram a vida psicologicamente arrasada, a cooperativa parou e foi retomar agora, um ano atrás e muito devagar. Chegou a ter 120 famílias que viviam dessa cooperativa. Caíram pra doze, treze. Tinha uma produção enorme, de agro e de alimentos orgânicos. Isso eu acho que o Lula precisa ir lá, lavar a alma desses caras. Essa é uma história que nós temos que contar e ele tem que ir lá. Eu falei com ele na quinta-feira passada [12 de janeiro], quando houve o café da manhã, e ele topou, disse “eu quero ir lá, Marcelo”. Só que ele ficou no “eu quero ir lá” e agora tem que executar. É isso.

MLJ: Você comentou na no início dessa dessa sua última resposta sobre a indução, que houve um momento em que a Lava Jato conseguiu induzir a opinião pública a ter uma opinião majoritariamente favorável ao que os os integrantes da força-tarefa vinham fazendo. E hoje como que você avalia também o papel da imprensa nisso tudo, especialmente da grande mídia?
AULER:
Olha, eles cobram do PT uma autocrítica. Eles fazem autocrítica? Ontem, dia 18, o Lula deu uma entrevista exclusiva pra Natuza [Nery]. Excelente jornalista, nada contra ela. Agora, em algum momento o Lula lembrou que a TV Globo e a GloboNews durante anos puseram [nos jornais] canos de esgoto jorrando dólares, acusando o PT e ao Lula de corrupção que não ficou comprovada? Ele lembrou isso na campanha. Eu fui crítico a entrevista dele à GloboNews porque eu acho que antes ele tinha que dar uma coletiva para todos os órgãos de imprensa, antes de escolher [para quem dar uma entrevista exclusiva]. Depois ele pode escolher quem ele quiser. Entendo que ele possa ter buscado um canal que tenha penetração, mas a coletiva daria uma penetração maior. Entendo que sendo pra uma pessoa só ele pode conduzir a entrevista de uma forma mais adequada a ele e não fica aquele negócio de perguntas variadas e soltas de pessoas diferentes. Mas eu acho que a grande mídia demorou muito, demorou muito a cair na real. Os fatos estavam ali.

Todos sabem que houve um grampo ilegal no dia 19 de março de 2014 e esse grampo ilegal comprometeria a fidelidade da operação toda. E no entanto esconderam isso. Por quê? Porque eles queriam ficar bem com as fontes. Eles queriam vazamento da Érika, do Dallagnol, do Sergio Moro. Eles não queriam bater. Por que que a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo se recusou a ser copartícipe comigo na ação que eu movi no Supremo Tribunal contra a censura ao meu blog? Porque eles achavam que iam me defender das acusações que a Érika me fazia. Eu não estou querendo resolver o processo, eu queria ser contra a censura. E a Abraji não quis ir comigo, a ABI não quis ir comigo, daí eu entrei na briga da ABI e derrubei a antiga diretoria. Quem foi comigo foi a Federação Nacional de Jornalistas e o Instituto Vladimir Herzog. Os dois que foram comigo. A Abraji, a ABI e a ANJ não quiseram ir comigo porque não queriam brigar com a Lava Jato. Porque eles estavam comendo na mão da Lava Jato. É isso.

MLJ: E hoje, até tendo o privilégio de olhar retrospectivamente para avaliar também tudo que aconteceu nesses últimos oito anos aqui no Brasil, quais foram os impactos da Lava Jato para a política nacional, para a história do Brasil, e em que medida também a Lava Jato está relacionada ao que a gente viu no 8 de janeiro, em Brasília, com essa ascensão da extrema-direita no país?
AULER:
O maior impacto foi na economia. A Lava Jato criou um problema pra economia brasileira ao derrubar todas as grandes empresas, ao penalizar as empresas ao invés de penalizar os seus diretores.

Criou um impacto junto à questão da política, ao criminalizar a política. Criminalizou a política e a grande mídia contribuiu nessa criminalização igualando todo mundo no mesmo nível, sem separar o joio de trigo, e com isso criou figuras como o Bolsonaro. Com isso nos deu quatro anos do pior… Eu não digo nem do pior governo , mas de um retrocesso atroz que vai ser muito difícil de consertar. Isso vai demorar e isso é algo que a grande imprensa vai ter que pagar por muito tempo. O que a grande imprensa contribuiu, não foi só o Sérgio Moro que contribuiu para se eleger o Jair Bolsonaro. Não foi só o Dallagnol que contribuiu para eleger o Bolsonaro e nem o Supremo, que também contribuiu ao fechar os olhos pra muita coisa. A grande mídia não soube fazer o trabalho dela, separando joio do trigo. E vai ter que responder por isso.

MLJ: E até pelas fontes que você tem na Polícia Federal, no Poder Judiciário, temos algum tipo, digamos, de garantia que uma nova Lava Jato, um novo processo de lawfare como o utilizado pela Lava Jato não vai voltar a acontecer? E como que a gente pode avançar também nesse sentido?
AULER:
Eu acho que essa garantia se tem hoje porque o próprio Judiciário caiu na real das besteiras que ele fez. O Supremo caiu na real das besteiras que ele fez. O Supremo tem uma dívida com o Lula. O Lula ficou 580 dias preso sem falar em golpe, sem falar em virada de mesa, sem propor nenhum decreto que fosse interferir no Supremo ou em qualquer tribunal superior, sem levantar a voz contra ministro do Supremo chamando de vagabundo ou coisa que fosse. O Lula ficou lá. E as pessoas eram contra ele ter ido e ele foi corajoso e ele teve uma performance. Acima de tudo, ele mostrou ser um cara duro na queda. Eu me lembro que eu estava em São Bernardo quando ele decidiu ir pra lá [prisão em Curitiba]. Eu me lembro que quando eu noticiei que ele ficaria numa sala de dois por dois, três por três, eu disse “estão querendo escondê-lo, querem acabar com o Lula. Querem levá-lo ao ostracismo, eles acham que vão conseguir isolar o Lula do mundo”. E era isso que eles queriam. [O Lula] Não poderia nem conviver com os demais presos, quando muito com os advogados. O que eles [Lava Jato] não esperavam é que duas figuras fantásticas aí de Curitiba, o Rochinha [Luiz Carlos Rocha] e o Manoel Caetano, fossem lá diariamente. O que eles não esperavam é que um povo maravilhoso, a começar pelo MST – e não só o MST, mas a CUT e várias outras pessoas -, fossem fazer uma Vigília Lula livre 580 dias, com chuva, com sol, com neve, com fome, sem fome e alegre. Não foi uma vigília que ficava gritando ódio. Não foi uma vigília que ficava querendo pregar vingança. Foi uma vigília que deu sustentação ao Lula. Então a resistência não está só na cachorrinha que hoje o Lula cria. A resistência foi muito grande.

Eu presenciei isso. Eu estava na casa da minha amiga Lara, aí do lado da Polícia Federal, ela administrando um dinheiro pra comprar o gás pra fazer a comida pro pessoal da vigília. Eu ajudei nessas vaquinhas. Eu estava lá na vigília com as pessoas dando bom dia, boa tarde, boa noite pra ele. Quando aquele maluco daquele delegado ameaçou com arma em punho. Quando houve uma outra vigília do outro lado da estrada no Santa Cândida e foi atacada à noite. A resistência foi muito grande, eles não esperavam isso.




LaURA CAPRIGLIONE

Nascida numa família que já tinha o jornalismo como uma espécie de tradição, a paulista Laura Capriglione trilhou um caminho diferente da maioria dos jornalistas. Formada em Ciências Sociais pela USP, ela nunca chegou a se graduar em Jornalismo, mas acabou se encaminhando para a área após terminar sua graduação, quando, em busca de um emprego, resolveu participar de um concurso da Folha de S. Paulo.

“Para minha surpresa, eu passei. Não era nenhuma certeza e nem uma convicção, não. Mas aí eu comecei a trabalhar na Folha e fiquei porque adorei. O Jornalismo é uma uma profissão maravilhosa, porque permite a você entrar em um milhão de vidas numa vida só”, comenta a jornalista, que tem 63 anos de vida e 40 de carreira como jornalista, período no qual ocupou cargos como o de diretora do Notícias Populares (SP), diretora de novos projetos na Editora Abril e repórter da Revista Veja (onde ganhou um Prêmio Esso), até retornar à Folha de S. Paulo para trabalhar como repórter especial.

Em 2014, deixa a mídia corporativa e passa a atuar em projetos independentes, integrando primeiramente o “Ponte Jornalismo”, um veículo de comunicação focado em segurança pública e direitos humanos. Já em 2015, participa da criação do projeto do Jornalistas Livres, que fez uma cobertura marcante das manifestações direitistas ocorridas a partir de 2015 e que culminaram no impeachment de Dilma Rousseff.

Nesse mesmo período, passou a acompanhar mais de perto a Lava Jato e o processo de criminalização de longa proporção implementado pela operação. “Aquilo lá foi um massacre tão espetacular da opinião pública, foi um massacre tão violento, visceral… Era um bombardeio diário, com a divulgação de denúncias sem fundamento nenhum só para manter a opinião pública sempre num estado de excitação”, analisa.

Ainda segundo a jornalista, a herança da Lava Jato para o Brasil é um legado de devastação. “Qual é o legado do terremoto da Turquia? É uma devastação. Qual o legado das inundações em São Sebastião? É devastação. E qual o legado da Lava Jato? É só andar pelas ruas para você ver o número de pessoas pobres, o número de estabelecimentos comerciais fechados”, diz Capriglione.

Dois pesos e duas medidas

O juiz que assina a decisão de transformar o ex-presidente Luiz Inacio Lula da Silva em réu é Ricardo Augusto Soares Leite, da 10ª Vara Federal de Brasília. Leite é conhecidíssimo, mas não por sua eficiência. Bem ao contrário.

Juiz da Operação Zelotes, que apura esquema de corrupção no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), órgão responsável por julgar os autos de infração da Receita, o juiz que transformou Lula em réu teve a capacidade de ser denunciado pelo próprio Ministério Público Federal.

Reportagem publicada pela Folha, em 20 de junho de 2015, mostrava o Ministério Público reclamando de várias decisões judiciais de Ricardo Augusto Soares Leite que dificultaram a obtenção de provas contra os fraudadores da Receita.

ONU conclui: Moro e Lava Jato violaram direito de Lula a julgamento imparcial

Foi uma vitória completa de Lula. E uma derrota acachapante do ex-juiz Sergio Moro e seu fiel escudeiro, Deltan Dallagnol, ex-procurador federal. Nesta quinta (28), o Comitê de Direitos Humanos da ONU tornou pública sua determinação ao governo brasileiro para que repare os danos causados ao ex-presidente Lula pela Operação Lava Jato. O órgão da ONU concluiu que a investigação e o processo penal contra o ex-presidente Lula da Silva violaram seu direito à presunção da inocência, a ser julgado por um tribunal imparcial, à privacidade e aos seus direitos políticos. Como país signatário do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, o Brasil terá de cumprir a decisão do Comitê da ONU, que deu prazo de 180 dias para que isso ocorra.

Na quarta (27), quando avisado da decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU por seus advogados, Cristiano Zanin e Valeska Teixeira Martins, Lula emocionou-se até as lágrimas. Era o reconhecimento cabal de que ele havia sido condenado à prisão por um tribunal parcial, que já havia decidido por sua culpa, antes mesmo de acontecer a investigação.

Para Zanin e Valeska, trata-se de uma “decisão histórica”. “É uma vitória não só do ex-presidente Lula, mas de todos que acreditam na democracia e no Estado de direito”, disse Zanin.

Há um ano, aprisionaram a esperança para que o ódio chegasse ao poder

“O que está acontecendo no país é uma cooperação nacional e internacional para destruir o PT, e para introduzir no Brasil um modelo de economia igual à atual Argentina”, afirmou hoje (4) o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, em entrevista à repórter Laura Capriglione, do Jornalistas Livres, sobre o cerco ao ex-presidente Lula feito pela 24ª fase da Operação Lava Jato.

“A operação é arbitrária porque parte de delações que são antecipadas à imprensa, que tem o apoio da classe média. Isso é um golpe de estado em andamento”, disse o embaixador.

Para Samuel Pinheiro, é imprescindível que a militância do PT vá às ruas. “Isso não é apenas uma manobra contra o presidente, é também contra as conquistas dos trabalhadores durante o governo Lula. É importante que a militância do PT vá às ruas e exija uma atitude da presidenta Dilma Rousseff.”

Entrevista exclusiva do Museu Da Lava Jato

Laura Capriglione – Vozes Dissonantes

MUSEU DA LAVA JATO: Primeiramente, qual é o seu nome completo, você nasceu em qual cidade, está com quantos anos…?
LAURA CAPRIGLIONE: Bom, meu nome é Laura Capriglione, eu nasci em São Paulo, tenho sessenta e três anos e sou jornalista há quarenta anos.

MLJ: E como surge a sua relação com o jornalismo? É algo que já vem da sua família?
LAURA: Olha, o meu avô era jornalista, o meu bisavô era jornalista… Enfim, é uma família que tem uma relação de afeto com essa profissão, o jornalismo é uma coisa que sempre esteve no universo da família. Eu sempre gostei, embora não tenha estudado Jornalismo. Na verdade, eu fiz Física e Ciências Sociais na USP, mas no meio do caminho acabei entrando no jornalismo e pela Folha, né? Porque a Folha não exigia diploma de jornalista, então eu acabei entrando na Folha. De lá eu fui ser diretora do Notícias Populares, depois voltei pra Folha, saí e fui para a Veja, onde trabalhei bastante e fui editora-executiva. Depois fui ser diretora de novos projetos da Abril, depois eu fui pra Globo e depois eu voltei pra Folha para ser repórter especial e aí fiquei sendo repórter especial da Folha até 2013. Em 2014 eu saio da Folha e aí começa essa coisa da mídia independente. né? Esse trabalho na mídia independente.

MLJ: E o jornalismo acaba entrando como na sua vida, na sua carreira?
LAURA: Eu estava nas Ciências Sociais, terminei o curso e aí deu aquela dúvida atraz: “bom, o que que eu vou fazer agora, né?” Porque as Ciências Sociais não era propriamente uma faculdade com grande poder de empregabilidade, né? Então abriu um concurso da Folha e, para minha surpresa, eu passei. Não era nenhuma certeza e nem uma convicção, não. Mas aí eu comecei a trabalhar na Folha e aí fiquei porque adorei, né? O Jornalismo é uma uma profissão maravilhosa, porque permite a você entrar em um milhão de vidas numa vida só, né? Você um dia está cobrindo uma enchente, no outro dia você está cobrindo uma festa de milionário, no outro dia você está numa greve, no dia seguinte numa rebelião em um presídio, no outro dia você… Enfim, é uma profissão que, para uma pessoa como eu (que sou muito intranquila), o jornalismo era uma alternativa muito legal porque não tem muito espaço de tédio, né? Assim, você tem que ir percorrendo os caminhos que o universo vai colocando na tua frente, praticamente. Então eu sempre adorei esse negócio de você ter a possibilidade de estar se envolvendo com tantas vidas ao mesmo tempo, né? Muito mais do que uma bolha, muito mais do que um grupo de interesse específico e tal e que você entra com profundidade e tal. Quer dizer, o que eu gosto no jornalismo é exatamente essa coisa de você não ter um foco, entendeu? De você poder estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Então foi por isso que eu acabei ficando e acabei buscando demais dessa história.

MLJ: Eu costumo falar que o jornalista é um especialista em generalidades…
LAURA: Exatamente, essa definição é perfeita. E eu acho que me dou muito bem com essa especialidade em generalidades [risos].

MLJ: E no caso dessa sua atuação mais voltada para a política, direitos humanos, imagino que seja algo que já vem desde a sua formação em Ciências Sociais, certo?
LAURA: Olha, eu fui militante de uma corrente de esquerda na época da USP, eu fui dirigente estudantil na época do movimento estudantil, quando estava sendo fundada a UNE, nos primeiros congressos da UNE. Eu fui diretora do DCE da USP numa época em que o movimento estudantil ainda era muito pujante, muito ativo e muito influente. Então, nessa condição, eu acabei lendo muito sobre essa questão da desigualdade, das disputas de classe, das disputas sociais… Nas Ciências Sociais, a coisa que me interessava era exatamente isso, essa luta, essa resistência, essa coisa da sobrevivência dos mais pobres numa sociedade tão desigual como é a do Brasil.

Então para mim, quando eu fui pro Jornalismo, meio que foi natural que eu me encaminhasse para isso, entendeu? Para tentar entender como é que era o modo de vida dessas pessoas, as dores dessas pessoas, os sofrimentos… E ao mesmo tempo, como é que os ricos se davam sempre muito bem e tal. E eu acho que o jornalista tem essa coisa muito real, porque uma coisa é você falar “oh, o privilégio dos ricos e tal”. Outra coisa é você, por exemplo, ir cobrir uma loja da Rua Augusta que tem a coragem – e tem essa matéria que eu fiz – que tem a coragem de pôr uns índios na vitrine. Uma loja chique de roupas que tem a coragem de pôr uns índios guaranis na vitrine como modelos, como corpos à venda, e ver que os caras não entendem nada da gravidade dessa exploração do corpo das pessoas mais pobres, das pessoas excluídas, como sendo objeto de consumo mesmo.

Quantas vezes eu fiz matéria sobre mulheres que que perderam os filhos, mortos pela polícia… Uma coisa é você falar “a polícia mata, mata preto, mata qualquer coisa”. Outra coisa é você ir lá e ver a mulher com a carteira de trabalho do cara falando “olha, ele tinha acabado de conseguir um registro no McDonald’s”, sabe? Aquele tipo de trabalho mais… Quer dizer, não é nem o mais precário porque hoje em dia você ainda tem os entregadores e tal, né? Os motoboys. E ver que eram pessoas que foram mortas porque moravam na periferia, porque eram os suspeitos de sempre, os suspeitos padrão, porque eram jovens negros e tal.

Então essas coisas sempre me interessaram e o jornalismo era uma maneira de você tirar essa coisa simplesmente da estatística ou da teoria e mostrar na prática como é que era a vida, o sofrimento e a resistência dessas pessoas e, por outro lado, como que os ricos eram, assim, absolutamente cínicos em relação a como eles exerciam… Por exemplo, eu entrevistei uma vez o Naji Nahas que era o dono daquele terreno do Pinheirinho onde houve uma reintegração de posse de uma violência absurda. Eu descobri que o Naji Nahas era o dono do terreno e pedi uma entrevista e aí fui ser recebida na casa dele, no Jardim América. Estava lá o advogado dele, o Delfim Netto, que é muito amigo dele, e estavam servindo um almoço maravilhoso, e ele estava orgulhosíssimo mostrando os livros que falavam dele como um dos homens mais riscos do mundo e tal. Ele não estava nem aí para o que tinha acontecido com aquelas pessoas [no Pinheirinho], para onde elas tinham ido, como que as crianças perderam casa, perderam material escolar, as famílias perderam os retratos, perderam os edocumentos, as memórias… Ele não estava nem aí, ele queria falar dele. E o jornalismo é onde você tem a possibilidade de chegar mais perto da realidade, dos números, das estatísticas, das teorias e por aí vai. Então foi por isso que eu acabei entrando nessa área de de direitos humanos e tal, que é uma área que eu sempre curti.

Por exemplo, eu fiz uma matéria na Folha, que eu adorei fazer – pela qual, inclusive, eu ganhei uns prêmios aí -, que foi uma vez que quando teve aquela rebelião do PCC em 2006 que parou São Paulo e aí, para impedir uma rebelião num presídio de Araraquara, os caras simplesmente puseram todos os presos num raio de uma Penitenciária, que é um setor da penitenciária, puseram todos os os presos num raio e lacraram tudo: lacraram as portas, lacraram o teto, tudo soldado, com solda mesmo. Então eles jogavam a comida por cima, pelo telhado, pros presos comerem. Só que como tinha tido uma rebelião ali, tinha um monte de gente ferida, tinha um monte de gente machucada, mas eles [autoridades] não estavam nem aí para esse confinamento absurdo, com milhares de pessoas dentro de um espaço onde caberiam centenas e jogando comida ali por cima.

Então eu acho que o jornalismo tem essa função um pouco redentora também, porque na medida que você mostra essas coisas você também influencia a percepção que o público tem sobre a história, né? Então foi demais fazer essa matéria aí, foi uma possibilidade de mostrar a barbárie a que o governo estadual estava submetendo aqueles presos, que estavam feridos. Por exemplo, tinha um médico lá dentro que estava atendendo os caras. E o cara estava arrancando o dente de um preso que estava ali confinado com um prego e a sola de um sapato. Assim, cara, se você parar para imaginar um negócios deses, você fala “meu, não dá”. Então é isso, coisas muito concretas. E isso muda, quando quando você expõe essa história, você tem uma possibilidade das pessoas, se sensibilizando, exigirem mudanças. Eu nunca quis cobrir isso pelo prazer de mostrar a miséria, porque eu não tenho nenhuma atração por isso. Mas eu acho que no sentido de transformação mesmo, aí vale a pena.

MLJ: E eu imagino que com o Jornalistas Livres essa tua cobertura, esse teu foco se fortalece, né? E como que surge também esse projeto?
LAURA: Quando eu saí da FOlha eu criei, na companhia de uns colegas, um outro coletivo que se chamava Ponte Jornalismo, especializado em segurança pública, em justiça e direitos humanos. E era muito legal, mas eu me ressentia do fato que eu achava que a Ponte era muito limitada, ela falava muito para uma bolhinha muito restrita. E eu, essa experiência minha no Notícias Populares, me mostrava que era possível fazer uma comunicação barata e que tivesse um alcance muito grande se você juntasse uma linguagem adequada, com títulos chamativos e com um foco mais amplificado em termos de leitores.

Então eu já estava querendo alguma coisa mais desafiadora. E quando chegou em 2015, em março de 2015, a direita resolveu fazer a primeira grande mobilização, dessas mobilizações gigantescas que eles fizeram de lá pra cá. E aí foi um susto, porque eles começaram a organizar isso e eu comecei a olhar e ver que toda a mídia, toda a mídia estava envolvida com o golpe pra derrubar a Dilma. Toda a mídia: a Folha, o Estadão, a Veja, a Globo… E a ideia era essa, era criminalizar o PT, os movimentos sociais, e começar uma campanha que parecesse ser uma campanha espontânea, de massas, como foram as Diretas Já, mas que na verdade tinha um propósito exclusivo de criar um clima social e tal favorável à retirada da Dilma e do PT do governo.

Em 2015 a gente estava olhando, assistindo aquilo, e de repente eu fiquei sabendo que a Globo tinha simplesmente cancelado todas as folgas, de todos os jornalistas e de todos os meios que a Globo controla, seja rádio, seja televisão, seja jornal, seja TV a cabo, seja revista. Tinha cancelado as folgas de todos os jornalistas para que eles trabalhassem naquele domingo específico, que era o dia da manifestação da direita, cobrindo a maravilhosa reedição da campanha pelo impeachment do Collor e pelas Diretas Já. E a Folha, me lembro que a Folha chamava o ato, dava a notícia do ato, e depois ela ainda dava um serviço, como se fosse um show de rock, mostrando como chegar, se tinha metrô ou não tinha metrô, qual metrô pegar em São Paulo, Rio, em tudo quanto é lugar.

Daí eu e vários jornalistas chegamos e falamos ‘opa, isso não está normal’. Eles [jornais] nunca fizeram isso na época do Diretas Já. Ao contrário. A Globo, na época das Diretas Já, fingiu que um grande ato das Diretas, que aconteceu no dia 25 de janeiro, era um grande ato em homenagem à São Paulo, à fundação de São Paulo, e não das Diretas Já. Então eh peguei e falei “meu, isso está louco. Está louco” e chamamos uma reunião no dia 12 de março, porque essa manifestação ia ser no dia 15, se não me falha a memória. Aí no dia 12 de março nós chamamos uma reunião de jornalistas para ver como é que a gente ia fazer para contar o que é que de fato estava acontecendo. E aí chamamos essa reunião no dia 12, chegou no dia 12, a gente chamou pra um sobrado ali no Bixiga, que tinha vários coletivos de jornalistas, chamamos essa reunião e foi um monte de gente, mais de cem jornalistas que se reuniram ali e que a gente tirou: “olha, então vamos fazer a cobertura desses atos aí, vamos mostrar o que é, vamos mostrar quem são essas pessoas, vamos mostrar o que é que está rolando”. E aí tiramos.

Mas como é que a gente ia fazer? Vamos transmitir por onde? Bom, a gente não tinha o papel, né, o meio físico do jornal, como tinha a Folha, como tinha o Estadão, como tinha Veja e tal. Decidimos fazer daí pelas redes sociais. Naquele momento a gente pegou e falou “vamos fazer pelo Facebook”. Ah, legal. “Vamos criar uma página agora no Facebook?” Legal. Vamos. Criamos uma página que se chamava Jornalistas Livres. Foi tirado tudo nessa reunião do dia 12. Aí criamos a página e no tal dia dos atos nós fomos pra manifestação. Claro, a gente era um bando de jornalista fora da da grande mídia. Enquanto a Globo estava cobrindo os atos de cima, mostrando aquelas pistas épicas, enormes, de cima, todo mundo de amarelo e tal e não sei o quê, nós entramos por baixo, como a gente sempre fez no jornalismo, né?

Entramos por baixo e aí, quando eu particularmente estava ali embaixo, eu vi um carro de som que era da Intervenção Militar Já, era do Vem Pra Rua. Os caras… Foi incrível, né, porque a direita fez um negócio muito… Não foi nada espontâneo aquilo, porque eles usaram o MPL, o MBL era uma contrafação do MPL, que era o Movimento Passe Livre de 2013. Então eles escolheram um nome muito parecido para fazer a… Um dos hinos que as pessoas gritavam em 2013 era aquele “Vem, vem pra rua, vem. Vem, vem pra rua, vem”, chamando as pessoas. E os caras, quando fizeram um carro de som para pegar e chamar a intervenção militar, o nome era Vem Pra Rua. Quer dizer, então eles foram escolhendo nomes que era exatamente para ecoar aqueles protestos de 2013, que foram os protestos seminais da direita, que foi quando eles conseguiram se apropriar da luta pelo Passe Livre, e aí em 2015 eles queriam que as pessoas tivessem essa lembrança .

E aí nós pegamos e fomos. Quando a gente vê está o carro de som do Vem Pra Rua com uns louco lá… Quer dizer, de loucos eles não tinham nada, mas os caras lá em cima estavam homenageando uma figura que era uma figura bizarra, que era um velho com um capacete da Revolução Constitucionalista de 1932. Então já significa que era contra o Getúlio. Então o cara com um capacete, que era um capacete que parecia uma bacia, com uma gravata borboleta e com um fraque. Era um velho e esse cara estava sendo homenageado por esse carro de som que dizia “está aqui um grande patriota, um cara maravilhoso, um cara que deu a vida pelo Brasil”. Quando eu fui entrevistar o cara, porque qualquer jornalista veria um personagem interessantíssimo, né? Um cara sendo homenageado como um grande patriota e ao mesmo tempo vestido daquela maneira bizarra, qualquer jornalista honesto iria pegar e falar: “bom, quem é esse cara? Vamos entrevistar esse cara”. Quando eu fui entrevistar esse cara eu descobri que ele era o Carlos Alberto Augusto, o Carlinhos Metralha, que era o braço direito do delegado Fleury aqui no DOPS de São Paulo.

Eu falei “meu, os democratas são os caras que estão enaltecendo a ditadura, que estão enaltecendo os métodos da ditadura”. Isso muito antes do Bolsonaro ser eleito ou homenagear o Brilhante Ultra. Esses caras já estavam fazendo isso. Agora, pergunte se no dia seguinte algum jornal da imprensa corporativa mostrava o o o Carlos Augusto Metralha. Nenhum, entendeu?! Porque para eles interessava continuar na arenga de que aquilo lá era uma manifestação de democratas, de pessoas legais, de pessoas maravilhosas e tal.

Eu me lembro que a Carolina Trevisan fez uma matéria legal demais que ela pegava várias fotos da massa e ela foi recenseando, vendo quantos negros tinha. E era uma manifestação de gente branca, de gente loira. Era aquela coisa de homens com camisa polo, com aqueles shorts com vinco, parecendo um safari. As mulheres… Enfim, era a elite branca dos Jardins que estava ali. Então você começava a mostrar que, na verdade, tudo que estava sendo dito e vendido sobre aquelas manifestações era uma farsa, era para cobrir o que, na verdade, eram manifestações pra exigir, pra criar um clima de que a Dilma era uma louca, uma pessoa descontrolada, uma corrupta, de um
PT todo, uma pessoa… Enfim. E ali começaram as grandes manifestações, de fato, da direita, que foram crescendo.

Era pra gente ter durado aquela manifestação, no entanto vieram outras. E como a gente foi muito bem sucedido, porque toda a esquerda estava perplexa com o tamanho daquele negócio, então a esquerda queria entender o que estava acontecendo. As pessoas que amavam o Lula, que amavam o PT e que estavam se sentindo completamente sufocadas pela narrativa que a grande mídia estava fazendo, começaram a curtir, compartilhar os Jornalistas Livres. Aí nós falamos “bom, temos de continuar”. E continuamos, continuamos, continuamos, e até hoje os Jornalistas Livres estão aí e foi assim que nasceu, e nasceu numa clara ideia de que o nosso propósito era construir, era pegar e mostrar aquilo que a Globo não queria mostrar, aquilo que a Veja não queria mostrar, aquilo que a Folha, o Estadão… Enfim, aquilo que toda a mídia corporativa, toda a grande mídia queria esconder mesmo, na verdade. Então por isso que a gente continuou. A gente continuou como um espaço de resistência mesmo, era preciso mostrar um outro lado.

Você lembra, né? O Lula era um cara que não aparecia no noticiário da Globo, não aparecia falando. Ontem, por exemplo eu estava vendo a cobertura do Jornal Nacional sobre o Lula no Dia da Mulher e aparece o Lula falando, e tal… Eu ainda me surpreendo de ver o Lula falando no Jornal Nacional, porque sempre que o Lula aparecia durante esse período todo do impeachment, depois do golpe, do governo Temer, do Bolsonaro, era o Lula falando, mas aparecia a imagem dele, quando aparecia, e sem som, sem ele poder falar nada. O Lula foi emudecido durante todo esse período aí nos principais telejornais. A Veja publicava aquele monte de capas, cada dia era uma coisa: num ele estava sem cabeça, no outros eles punham a cabeça do Lula ensanguentado, que nem a cabeça do Saddam Hussein – você lembra daquela capa famosa da Time, que era o Saddam Hussein todo ensanguentado? Eles reeditaram essa cabeça. E era o tempo inteiro falando “o PT acabou, o PT morreu, o Lula já era, a Dilma morreu”… Bom, os caras previram o fim do PT e o fim do Lula não uma vez, nem duas vezes, nem três vezes, mas umas centenas de vezes.

Então a nossa coisa era pegar e tentar mostrar um outro lado disso tudo e assim foi durante o período mais louco da virada de chave do Brasil, quando o Brasil virou pro golpe, pro golpismo. A gente foi pra Brasília para cobrir o golpe, depois a gente foi pra Brasília para cobrir as manifestações contra o impeachment. A gente estava lá no Palácio da Alvorada quando a Dilma reuniu aquela galera toda depois do impeachment para fazer aquele discurso quando ela foi destituída mesmo. A gente estava o tempo inteiro nesse negócio.

Quando teve a luta dos secundaristas contra a reorganização escolar do Alckmin, a gente enfrentou a polícia junto com os meninos. Teve muitos trabalhos de TCC e tudo mais mostrando como que os Jornalistas Livres fotografavam os enfrentamentos com a polícia. Porque enquanto toda a imprensa, a imprensa corporativa, cobria as manifestações dos estudantes a partir do ponto de vista da polícia – porque estavam sempre colocados atrás da linha da polícia, portanto olhava pros secundaristas de frente, como numa tropa olhando os manifestantes – a gente estava, ao contrário, sempre do lado [dos secundaristas], olhando pra polícia de frente. Então era uma inversão de ponto de vista, literalmente. Quando o Lula foi preso, quando o Lula teve a prisão decretada, a gente dormiu duas noites lá no Sindicato dos Metalúrgicos, que estava cercado de gente, aquela tensão absurda, toda hora os caras anunciando que deviam pegar o Lula e tal e aquela negociação e o Lula se despedindo das pessoa. Quando teve o acampamento Lula Livre a gente acampou lá junto.

A gente era uma presença absolutamente envolvida com aquele momento e a gente sempre dizia – e eu acredito nisso – a gente sempre dizia não acreditar nesse negócio de imprensa isenta. Quando eu trabalhei na Folha, tinha um mantra da Folha que era o seguinte: “nós somos um jornal pluralista, apartidário e independente”. Sempre era isso: “nós somos um jornal pluralista, apartidários e independente”. Era um mantra mesmo. Mas cara, quando você via o que estava acontecendo, via que não tinha nada de apartidária, não tinha nada de pluralista, porque eles não ouviam o Lula.

Vamos lembrar que, quando começou o Mensalão, a primeira entrevista, que foi do Roberto Jefferson, foi a Folha que fez e não tinha o outro lado, coisa que era absolutamente exigência do manual de redação da Folha. Na entrevista do Roberto Jefferson não tinha o outro lado, entendeu? E assim foi durante esse tempo inteiro. Quer dizer, os caras só faziam o outro lado assim: “procurado a defesa de Lula falou que o Lula é inocente”. Ponto, acabou. Isso que era chamado de outro lado para eles, mas para nós isso não era outro lado. Você não tinha nem condições de de contra-argumentar, enquanto as pessoas que atacavam o PT tinham espaços gigantescos e eram aquelas cenas, né… AS coletivas em off da Lava Jato, enfim, aquela coisa absurda.

Então a gente percebeu que o Jornalistas Livres era necessário naquele momento e por isso a gente foi continuando, continuando, continuando até agora, a posse do Lula, que agora, sim, eu acho que nós temos uma virada, entendeu? Agora é um novo momento da história do Brasil e eu tenho certeza que os Jornalistas Livres… Agora eu mesma me coloco: será que não é preciso um outro tipo de mídia agora? Porque agora mudou, agora é um outro governo, é o nosso governo. Enfim, então agora ainda estou formalizando esse pensamento, porque eu acho mesmo que há uma virada de chave no Brasil.

Então é isso, é por isso que a gente veio até esse momento e foi uma luta importantíssima.

MLJ: E o Jornalistas Livres surge num período que a gente tinha a operação Lava Jato em desenvolvimento. Qual foi o papel dessa operação nessas manifestações que vocês acompanharam, como a Lava Jato ecoava entre aqueles manifestantes?
LAURA: Olha, eu vou te falar com toda a franqueza que quilo lá foi um massacre tão espetacular da opinião pública, um massacre tão violento, visceral… Pô, era um bombardeio diário com a divulgação de denúncias, cada uma mais escalafobética do que a outra e sem fundamento nenhum. Quer dizer, era para manter a opinião pública sempre num estado de excitação, porque pouco importava que aquilo lá amanhã caísse por terra, amanhã não tivesse nenhuma consequência, né?

Vou te falar, eu sou fundadora do PT, com muito orgulho e tal. Durante, sei lá, num primeiro instante, eu lembro que a gente ficava perplexo assim, sabe? Era tanta coisa, era tanto ataque e o tempo inteiro, e era tanto contra-ataque que você tinha de fazer o tempo inteiro que a gente nem sabia por onde levar a narrativa. Quer dizer, demorou um tempo até que a gente pegasse, percebesse… Um tempo que foi curto até e eu tenho bastante orgulho disso, porque de repente não se tratava mais de você pegar e responder a uma acusação, porque quando você começava a elaborar a resposta a essa uma acusação, vinha mais três, mais dez, mais quinze. E o método da Lava Jato sempre foi esse, né? Sempre foi pegar e era um bombardeio pra que você perdesse o sentido, perdesse a capacidade de raciocinar diante de tantas coisas.

DENISE ASSIS

A mineira Denise Assis descobriu e definiu muito cedo qual seria o seu futuro. Quando tinha apenas 10 anos de idade, no dia 31 de março de 1964, viu tropas militares se deslocarem de São João Del Rei até Santos Dumont, onde ela estudava, para depois se encontrarem com os comandados do general Olímpio Mourão Filho em Juiz de Fora, de onde seguiram juntas até o Rio de Janeiro, a fim de forçar a queda do presidente João Goulart, o Jango. O momento ficou marcado em sua memória e definiu o seu destino: ali nascia uma repórter, uma jornalista insaciável na busca por histórias.

Formou-se jornalista anos depois, em dezembro de 1976, na mesma cidade de onde as tropas de Mourão partiram para dar um Golpe de Estado. Diplomada, deixou Minas Gerais e partiu para o Rio de Janeiro, iniciando uma trajetória premiada e com passagem pelas principais redações do país: Manchete, O Globo, Veja, Isto É, O Dia…

Coberturas marcantes não faltaram. Acompanhou de perto, por exemplo, os mandatos presidenciais de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Elucidou o atentado à bomba da OAB, ocorrido em agosto de 1980. Trabalhou como assessora e pesquisadora na Comissão da Verdade do Rio de Janeiro e foi assessora da presidência do BNDES.

Em 2016, após o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff (golpe que ela própria ajudou a denunciar internacionalmente), encerrou sua trajetória na chamada ‘grande mídia’. “Não quis mais bater na porta de nenhuma empresa da mídia tradicional, porque eu sabia que teria de vender a minha alma e não estava mais disposta a fazer aquilo. Então eu fui fazer artigos políticos e análises política no Cafezinho, e do Cafezinho fui pro 247, onde me encontro agora muito feliz da vida”, conta ela.

Durante a pandemia de Covid-19, aproveitou o período de isolamento social para voltar à Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), onde havia se formado em Jornalismo, para fazer o mestrado em Comunicação. Seu trabalho, intitulado “A PREPARAÇÃO DOS GOLPES DE 1964 E 2016: Atuação da mídia e a repetição do mote ‘corrupção’ e ‘combate ao comunismo'”, evidenciou, através da análise de conteúdos, como a mídia esteve envolvida no golpe contra Dilma e na ascensão da Lava Jato, relacionando ainda o recente momento histórico ao golpe militar de 1964.

Entrevista exclusiva do Museu Da Lava Jato

Denise Assis – Vozes Dissonantes

MUSEU DA LAVA JATO: Qual seu nome completo, a cidade onde nasceu?
DENISE ASSIS:
Eu não uso o nome completo, uso só o Denise Assis profissionalmente, eu prefiro. Eu nasci em Santos Dumont, Minas Gerais, é uma cidade entre Juiz de Fora e Barbacena, na região da Zona da Mata.

MLJ: E como o jornalismo entra na sua vida? Foi sua primeira profissão mesmo, é formada na área…?
DENISE:
Sim. Eu costumo dizer que eu me tornei jornalista aos 10 anos de idade, em 1964, que foi quando as tropas de São João del-Rei se deslocaram para encontrar com as tropas do Mourão em Juiz de Fora. Nós tínhamos ido para a escola e lá chegando a professora reuniu todo mundo e disse que não teria aula, porque estava muito perigoso e haveria uma Guerra Civil. Eu fiquei apavorada, queria ir para casa, porque imaginava que iriam jogar bomba de avião, coisas que eu já tinha visto em filmes. Eu corri muito da escola e quando cheguei na praça as tropas estavam passando. Eu tinha conhecido o Jango [João Goulart, ex-presidente do Brasil deposto pelo Golpe de 1964] e aquilo tudo me impactou muito, ver o comércio cerrando as portas, um silêncio muito pesado. Quando eu cheguei em casa, liguei a televisão e vi a tomada do Forte de Copacana ao vivo. Pedi ao meu pai que comprasse a Revista Manchete, porque a gente assinava O Cruzeiro, e eu queria saber tudo sobre aquilo. Na Manchete vi as fotos do Lacerda com o “V” da vitória, o brigadeiro Eduardo Gomes… Todos aqueles personagens do Golpe comemorando e li tudo a respeito. Eu então comecei a seguir, nunca mais perdi de vista essa história. Eu acho que ali nasceu a repórter.

Mais tarde, eu fiquei ali na região, estudava no Colégio São José, e sempre naquela perspectiva de querer saber mais daquela história, de querer influir na vida do país, de contar histórias… Comecei a ser uma leitora compulsiva de jornal e fui dizer pro meu pai que queria fazer Jornalismo e ele ficou muito enfezado, porque ele queria que eu me formasse em Direito, e aí ele brigou, falou que não sabia para o que servia aquilo. E além de tudo, aquela profissão me tiraria de casa, porque eu precisaria ir para um grande centro. E aí foi uma discussão, eu disse que era o que eu queria e que era o que iria fazer.

Eu estudei em Juiz de Fora, foram quatro anos de dedicação, e assim que me formei, no dia 22 de dezembro de 1976, e dia 27 de dezembro eu já estava no Rio, fui morar com uma tia que tinha espaço sobrando em casa, queria companhia, minhas primas haviam acabado de sair. Eu fui e aí comecei a tentar entrar na Manchete, onde tinha um amigo do meu pai. Fiz contato com ele, que me apresentou para o Justinino Martins, um gauchão, excelente jornalista, e fez um teste comigo para apuração e texto. Ele não acreditava que eu tinha me formado, dizia que eu tinha cara de colegial. Ele fez o teste para eu prestar freelas, freelancer, e eu fiz.

MLJ: E lembra ainda qual foi a sua primeira matéria, a primeira reportagem que fez nesse teste?
DENISE:
A primeira matéria foi encontrar um rapaz… Na época, a carteira de identidade os homens, obrigatoriamente, tinham de fazer a foto de terno e gravata. E tinha havido um rapaz que impetrou uma liminar e conseguiu tirar a foto 3×4 de camisa só, camisa social, sem gravata. E o Justino então pediu que eu encontrasse esse rapaz. Imagina, eu tinha acabado de chegar no Rio de Janeiro, não conhecia ninguém. Contei a história para minha tia e ela me deu uma dica de por onde começar, ela conhecia uma juíza. Batemos lá e eis que a juíza era justamente a juíza do caso [risos]. Ela que tinha dado okay para a liminar. Então é aquelas coisas que você já começa com uma estrela, uma sorte.

Foi assim que eu levei a apuração e depois fiz outro texto, que foi uma entrevista com o Flávio Cavalcanti, que tinha desaparecido da teleisão por conta de perseguições da ditadura e tinha se refugiado num sítio em Petrópolis, no interiorzão de Petrópolis, na serra mesmo, no meio do mato, e falava-se que ele iria voltar à tevê. Então eles queriam uma crônica de onde ele estava, como é que estava, qual seria o formato do programa e porque ele tinha se refugiado… Enfim, um panorama daquele momento dele. E o lugar era de muito difícil acesso e eu então comecei o texto contando a dificuldade de acessar o local onde ele estava, o Justino gostou muito. Então fui aprovada e comecei a fazer freelancer na Manchete, isso em 1976.

MLJ: E depois a Manchete, por quais outros veículos você passou? Porque depois da Manchete você passa por diversos outros dos principais veículos do país…
DENISE:
Depois da Manchete eu acabei pedindo demissão da Bloc porque eu queria fazer jornalismo de jornal. Meu primeiro emprego em jornal foi no jornal Fluminense, em Niterói. Fiquei só seis meses e aí fui estagiar n’O Globo, porque naquela época, se você fosse um jornalista iniciante, podia estagiar para entrar [num veículo]. Aí eu estagiei n’O Globo, mas nesse interim fui chamada para fazer teste no Fantástico. Comecei a fazer teste, cortar cabelo, maquiar, mas no meio desse processo O Globo fundou os jornais de bairro. Eu fui a segunda contratada dos jornais de bairro e fui correndo, porque não estava gostando da tevê. Minha paixão era a escrita, eu gostava de texto, de ficar na rua o tempo todo, e no Fantástico você ficava esperando uma semana para ter equipe para gravar… Era mais lento, eu queria viver a emoção do jornalismo do dia a dia.

Dali eu fui pro Jornal do Brasil, fiquei lá até 1990, quando recebi um convite da Veja. Aí foi uma briga, meu editor foi jantar com o editor da Veja para decidir a minha saída e o editor da Veja falou “você vai cobrir a minha proposta?”, porque meu editor no Jornal do Brasil, o Rosental Alves, não queria que eu saísse. Ele veio conversar comigo, eu mostrei o quanto tinham me oferecido. O editor da Veja confirmou que a oferta era aquela, o Rosental disse que não teriam condição de dobrar o meu salário e aí eu fui pra Veja.

Da Veja eu fui para a Isto É, da Isto É eu fui contratada de volta pela Manchete para ser uma repórter especial. Eu fazia as matérias que eu queria, viajava para onde eu queria. Era só propor que eles me mandavam para onde eu quisesse. Eu viajei, conheci o Brasil inteiro. Só não conheci, a trabalho, o Piauí e o Maranhão. O restante, aqueles interiorzões todos, eu fui. Fui seis vezes à Amazônia, tive aventuras maravilhosas e foi muito bom.

Logo depois a Manchete entrou em estado de decadência. Mas na Manchete cobri todo o governo Itamar Franco, foi uma experiência muito boa também ser credenciada, acompanhar a Presidência da República, o governo. Eu tinha matérias especiais, exclusivas, muita matéria exclusiva com o presidente. Fiz sete exclusivas com ele e foi um período de muito aprendizado, de muita proximidade com o poder, para entender como funciona aquela máquina, como funcionam as diversas categorias de poder, o que anda, o que não anda, como abordar…

Dessa cobertura, foram tantos lugares, e dessa cobertura da Presidência da República eu fui fundar uma revista feminina, cuja dona era Zélia Cardoso de Mello e foi uma experiência muito exótica, porque fui convidada pelo meu ex-editor da Veja. Foi uma experiência meteórica e muito exótica, eu diria.

Dali eu fui para o jornal O Dia, fazer um caderno de Educação que ganhou o prêmio Ayrton Senna de jornalismo como Veículo do Ano. Era um caderno muito considerado, muito respeitado, bastante premiado. Foi uma experiência ótima.

E de O Dia eu passei pela coordenação da assessoria de imprensa da empresa de previdência de Furnas e depois fui para a assessoria da presidência do BNDES. Ali você vê o Brasil de 10 anos a frente passar por você, entende o processo de seleção de investimento, entende a lisura daquele processo. Quando eu via aquelas críticas durante a Lava Jato, pessoal falando em “caixa preta do BNDES”, eu ficava indignada, porque eu estava lá dentro, eu vi como funcionava. Não havia a menor margem para que houvesse aquelas aleivosias. Tanto é que procuraram a caixa preta e nunca encontraram.

Eu diria que a minha trajetória é abençoada, foram momentos de muito aprendizado, em que pude exercer tudo que aprendi e aprender o triplo. Muita coisa boa eu vivi.

Para encurtar, no fim eu já estava militando mais do que tudo e veio o golpe, eu não quis mais bater na porta de nenhuma empresa da mídia tradicional, porque eu sabia que teria de vender a minha alma e não estava mais disposta a fazer aquilo. Então eu fui fazer artigos políticos e análises política no Cafezinho, e do Cafezinho, quando ele optou por apoiar o Ciro, eu pedi para sair e fui pro 247, onde me encontro agora muito feliz da vida.

Eu também trabalhei na Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, como assessora e pesquisadora.

MLJ: E ao longo dessa trajetória de 46 anos no jornalismo, quais as coberturas, as reportagens que classificaria como as mais marcantes?
DENISE:
Ah, nossa… São muitas, são muitas. As exclusivas com o presidente Itamar, a cobertura da viagem presidencial à Lisboa, que foi a primeira cobertura de viagem presidencial que eu fiz e era a primeira vez que o presidente Fernando Henrique estava indo visitar o ex-presidente Itamar, que havia deixado o governo. Foi muito interessante ver a relação que se estabeleceu e fazer a cobertura naquele pique, porque é alucinante: tudo pode acontecer, como nada pode acontecer, e você não pode perder nada, lida com fuso horário, envio de matérias, naquela época ainda por fax…

A capa da Isto É sobre um monstro que matou nove meninos em Niterói e que ninguém encontrava o menino que tinha sobrevivido e delatado esse monstro, apontado onde ele estava. Esse menino não podia receber ninguém, tinha perdido a voz, não conseguia falar, estava traumatizado. E eu consegui não só localizar o menino, como fazê-lo falar. Eu percebi que o bloqueio emocional dele era o medo e ele não conseguia falar porque estava entalado com o choro, ele não conseguia chorar. E aí quando eu vi aquilo, eu dei a volta. Ele estava em frente a mim, numa cadeira junto à mãe. Aí eu dei a volta, segurei as mãozinhas dele e perguntei se ele tinha medo que o monstro saísse da prisão. Ele disse que sim, que esse era o medo, porque ele podia matá-lo. Eu falei “Pode, mas ele não vai sair da prisão. Ele está preso e vai ser condenado”. Aí ele me olhou com os olhões azuis, espantado, e eu então dei um abraço forte nele, trouxe ele para mim e falei “chora, você pode chorar”. E ele chorou e conseguiu falar. A partir daquele momento ele falou, porque antes, quando eu perguntei se ele tinha medo, a mãe era quem respondia. E aí ele chorou banhado de suor, nos meus braços. Ele tinha nove anos e contou a experiência da morte do irmão, que ele assistiu, e dali ele conseguiu fugir.

Essa foi uma das histórias mais marcantes. Mas tem outras, por exemplo, uma entrevista com o presidente Itamar Franco, na véspera do impeachment [de Fernando Collor]. Naquela semana ele foi aconselhado pelo Ulisses Guimarães a sair de cena, sumir. Ele veio para Juiz de Fora, mas ninguém sabia onde ele estava. A imprensa inteira estava em Juiz de Fora e ninguém encontrava ele. Eu passei no sítio dele de manhã, onde achava que ele poderia estar. Todo mundo havia estado lá e perguntei para um funcionário se ele estava lá. O funcionário ficou muito nervoso, mas eu fui embora, tinha recebido uma dica para ir no escritório de um amigo dele. Já era tarde e esse senhor, um engenheiro, me disse assim: “Você não está com dificuldade de anotar? Eu vou acender a luz”. Quando ele acendeu o interruptor eu juntei a bolsa e comecei a gritar com o fotógrafo: “Vamos embora, vamos embora”. Nem me despedi direito daquele engenheiro, ele não entendeu nada. O fotógrafo desceu comigo e eu dizia “vamos embora, vamos embora”. Ele não entendeu o que estava acontecendo, perguntou para onde a gente estava indo e eu disse “vem comigo, vamos pro sítio”. E ele perguntou por que o sítio, e eu disse: “ora, se ele estiver no sítio, vai ter de acender a luz”. E quando eu cheguei no portão estava lá a sombra daquele topetão contra o vidro da janela. Aí eu comecei a bater e ele estava lá, falou comigo. Fizemos a capa, fiz aquele “perfil do consumidor”, que ele disse para mim “eu quero fazer o perfil do consumidor, o anti-Collor, então eu vou usar o pior terno, vou comprar na casa mais fuleira” e assim a gente combinou. E o prato preferido era angu com carne moída, e esse perfil foi muito zombado depois. A Veja depois dizia, em deboche: “Um caipira que compra os ternos na casa Miami”. E foi tudo uma vontade dele de fazer um contraponto contra o Collor. Foi uma reportagem muito especial, primeiro pela investigação e foi um furo, uma capa que dei sozinha.

Eu também fui a a jornalista responsável por elucidar o atentado à bomba da OAB, ocorrido em agosto de 1980. Ficou 36 anos sem solução, até que eu consegui que a testemunha falasse, depois de todos aqueles anos, em 2015.

JOAQUIM DE CARVALHO

Aos 60 anos de idade, o paulista Joaquim de Carvalho já acumula 42 anos de dedicação ao jornalismo brasileiro, tendo iniciado sua trajetória na área com apenas 18 anos de idade, trabalhando desde sempre como repórter – uma profissão que ele aprendeu a amar e a qual resolveu se dedicar logo cedo, com apenas 12 anos de idade, ao mesmo tempo em que reconheceu para si próprio que não se tornaria um jogador de futebol profissional.

Ao longo de sua trajetória, que teve início em jornais do interior de São Paulo (em municípios como Sorocaba e Votorantim) passou por alguns dos principais veículos do país, entre eles Estadão, O Globo, Veja, TV Globo, SBT, TV Bandeirantes e TV Record, tendo participação decisiva, inclusive, na cobertura do Caso Collor, escândalo que resultaria no impeachment do primeiro presidente da República eleito democraticamente após 25 anos de ditadura militar no Brasil.

Mais recentemente, trabalhou no Diário do Centro do Mundo (DCM) e na TV 247, destacando-se por suas investigações aprofundadas. E nesses dois veículos, em parceria com o GGN (de Luis Nassif), investigou também a Operação Lava Jato, em trabalhos que resultaram em dois documentários: “A indústria da delação premiada” e “A Grande Farsa: como Moro enganou o Brasil e ficou rico”. Além disso, em 2015, foi ele quem revelou a aquisição, por Deltan Dallagnol, de dois imóveis do Minha Casa Minha Vida, mostrando que o então procurador da República utilizou um projeto de moradia popular para fazer especulação imobiliária e lucrar um bom dinheiro.

Dallagnol comprou apartamentos construídos para o Minha Casa Minha Vida

O procurador da república Deltan Dallagnol é conhecido por sua atuação como chefe da Operação Lava Jato e pela sua campanha contra a corrupção, que o tem levado a reuniões em grandes veículos de comunicação e a igrejas, principalmente evangélicas – é membro da Batista do Bacacheri, em Curitiba.

Esta é a face conhecida do procurador Dallagnol. Mas tem outra, a de investidor em imóveis. Segundo registro do Cartório de Imóveis de Ponta Grossa, em fevereiro do ano passado, Dallagnol comprou duas unidades no condomínio Le Village Pitangui, construído pela construtora FMM.

Para fazer a construção, a FMM recorreu a financiamento da Caixa Econômica Federal destinado ao Programa Minha Casa Minha Vida. Mas os compradores não precisavam ser, necessariamente, pessoas de baixa renda.

Dallagnol pagou R$ 76 mil por um apartamento, o 104 do bloco 7, e 80 mil reais em outro, o 302 do bloco 8. (…) Comprar apartamento destinado preferencialmente ao programa Minha Casa Minha Vida não é ilegal, mesmo quem tem altos rendimentos. Em outubro, os vencimentos totais brutos de Deltan Dallagnol foram de R$ 35.607,28, segundo o Portal da Transparência do Ministério Público Federal.

Os vencimentos líquidos do procurador foram de R$ 22.657,61, mas neste ano houve um mês – abril –,  em que ele recebeu líquidos R$ 67.024,07, com “indenização” e “outras remunerações retroativas/temporárias”, acima do teto constitucional.

Quem compra apartamentos habilitados para o Minha Casa, Minha Vida tira a oportunidade de quem procura conseguir um imóvel com financiamento com taxa de juros subsidiada – máximo de 8,16% ao ano. Na mão do investidor, caso de Deltan Dallagnol, o comprador terá que pagar à vista ou recorrer ao financiamento imobiliário regular – com taxa de 12% ao ano.

“Podemos dizer que ele fez um excelente negócio. A valorização foi muito maior do que a maior parte dos investimentos. Mas não cometeu nenhuma ilegalidade”, diz um advogado, especialista em Direito Imobiliário, que não quer ter o nome divulgado por temer represália.

documentário e série de reportagens “a indústria da delação premiada”

O instituto da delação premiada é recente na história do direito penal brasileiro. E passou a ser utilizado exaustivamente na Operação Lava Jato.

Como deuses ex-machina, procuradores e juiz passaram a ter poder total sobre o futuro dos réus. O poder de fixar penas, de abrandá-las, de impor multas pesadíssimas ou irrisórias, de confiscar dinheiro ou de liberá-los, segundo critérios pessoais, indevassáveis. E contando com o apoio maciço da mídia tradicional.

Em torno do tema corrupção, criou-se uma indústria riquíssima para a advocacia, seja nos trabalhos mais sofisticados de compliance nas empresas ou no trabalho mais tosco de orientar uma delação. Especialmente em uma operação em que um mero diretor da Petrobras tinha acumulado contas de mais de uma centena de milhões de dólares no exterior.

Documentário “A grande farsa – Como Moro enganou o Brasil e ficou rico”

A TV 247 lança neste sábado, 26 de março, o documentário “A grande farsa – Como Moro enganou o Brasil e ficou rico”, fruto da investigação e produção do jornalista Joaquim de Carvalho, autor também de Bolsonaro e Adélio: uma fakeada no coração do Brasil, que chegou a 1,6 milhão de visualizações no Youtube.

A nova produção conta a trajetória de Sergio Moro, de professor a juiz de primeira instância e depois ministro da Justiça de Jair Bolsonaro e seu modus operandi em todas essas fases: o uso de personalidades conhecidas para ganhar notoriedade na imprensa. E principalmente: como ele enriqueceu com essa estratégia, culminando na sua consultoria à empresa Alvarez & Marsal, já visto como uma espécie de recompensa pela atuação na Operação Lava Jato.

“É um desafio muito grande mostrar os sinais exteriores de riqueza de Sergio Moro. É uma pauta absolutamente necessária, porque, pela atuação dele na Lava Jato, o Brasil empobreceu. Vamos mostrar também como ele adquiriu esse poder. Como um juiz de primeira instância do Paraná promoveu uma guerra contra o País”, diz Joaquim de Carvalho logo no início do filme.

Investigação e chantagem de pessoas inocentes, além de proteção de pessoas culpadas – mas estratégicas para seus objetivos – tendo à sua mão um esquema que inclui operadores de diferentes instituições e empresários. É isso que o filme mostra, com detalhes, numa linha do tempo que chega à destruição da reputação do ex-presidente Lula até tirá-lo das eleições e levá-lo à prisão. Agora, o que desmorona é a reputação de Moro.

Entrevista exclusiva do Museu Da Lava Jato

Joaquim de Carvalho – Vozes Dissonantes

MUSEU DA LAVA JATO: Como teve início a sua carreira no jornalismo?
JOAQUIM DE CARVALHO:
Eu comecei a a trabalhar como repórter aos dezoito anos, num jornal diário chamado Diário de Sorocaba, no interior de São Paulo. Eu era um jornalista provisionado, que na época o Ministério do Trabalho dava um registro provisório de jornalista para quem não tinha faculdade de jornalismo. Então eu comecei com esse registro, mas eu entrei na faculdade logo depois – eu estudava na Cásper Líbero, em São Paulo, e então viajava todos os dias para fazer jornalismo na capital e continuava trabalhando em Sorocaba.

MLJ: E por que o jornalismo? Por você já ter se direcionado tão cedo, imagino fosse uma vontade tua antiga seguir para a área…
JOAQUIM:
É verdade. Vou até te contar uma histórica rapidamente.

Eu, quando tinha doze anos de idade, joguei na categoria de base do Esporte Clube São Bento de Sorocaba, um time profissional da primeira divisão do Campeonato Paulista. Eu jogava lá como quarto zagueiro – comecei como meia-direito e depois terminei como quarto zagueiro. Nesse período, eu com doze anos de idade, costumava fazer as reportagens do clube. Eu escrevia com papel carbono as notícias e a minha irmã colocava na porta dos vizinhos, dando as notícias.

Depois, com 13 anos, eu deixei o clube, vi que não dava pra ser jogador profissional – até por não ter altura para ser um quarto zagueiro, e eu sempre fui um bom jogador de defesa. Mas ali já decidi que a minha profissão seria essa, que eu seria repórter mesmo.

Aí quando eu estava com 18 anos de idade saiu um anúncio no jornal do Diário do Sorocaba, uma empresa que eu via quase todos os dias, porque eu ia estudar na Biblioteca Municipal, que era vizinha do Diário de Sorocaba. Meu sonho era um dia trabalhar lá e um dia minha mãe entrou no meu quarto, eu ainda estava dormindo de manhã, e ela falou ‘olha, o jornal está contratando jovens que gostem de língua portuguesa e dominem o idioma para serem revisores’. A ideia era essa, né? Eu acordei e fui para lá, tinha que fazer um teste. O teste era criar uma notícia, inventar uma notícia, mas escrever como se fosse uma reportagem. E aí, como eu frequentava a Biblioteca Municipal, falei de duas pessoas que tinham sido presas porque furtaram dois livros da biblioteca. Essas pessoas eram estudantes e daí eu conto toda a história. E o dono do jornal, Vitor Cioffi de Luca, que era formado pela Casper Líbero, na primeira turma da faculdade (que foi a primeira escola de Jornalismo do país), gostou do texto. Aí eu trabalhei um dia como revisor, trabalhava à noite, e um dia depois ele já me chamou para ser repórter, que trabalhava de tarde.

Minha primeira reportagem era sobre a dificuldade de comprar fichas pra telefone, o orelhão na época, que nem existe mais. Na cidade estava faltando essas fichas que eram usadas para fazer ligações do orelhão e aí eu fiz essa matéria e nunca mais deixei de fazer reportagem. Meu papel é esse, ser repórter a vida inteira. Eu ocupei cargos de chefia, fui editor, criei jornais – como o Jornal da Band, junto com o Paulo Henrique Amorim -, mas sempre fui repórter, sempre gostei de ser repórter.

Uma coisa curiosa: quando fui me registrar como jornalista provisionado, eu fui no Ministério do Trabalho, peguei o registro e levei no RH [do jornal]. Quando devolveram minha carteira, a minha função era como redator. Aí eu fui até o chefe do RH e falei “tem um erro aqui”. Ele perguntou por que e eu respondi que estava escrito redator, mas eu era repórter. Ele falou: ‘Mas Joaquim, o redator está acima do repórter. Você sabe disso, né?’. Daí eu falei ‘mas sou repórter por uma questão de vocação, por uma questão ideológica. Eu quero ser repórter e vou ser repórter a vida inteira, porque jornalismo é essencialmente reportagem e é isso que eu quero ser e é isso que eu serei a vida inteira. Então gostaria que você corrigisse’.

Se você for ver a minha carteira profissional, tem um rasurado, um branquinho. Ele [chefe do RH] apagou o ‘redator’, onde tinha um D virou um P, fez um pezinho aqui, uma perninha ali, e o ‘redator’ virou repórter. É o que eu sou e foi assim que eu comecei e sempre gostei, desde os meus 12 anos, quando eu jogava no São Bento e ficava fazendo reportagem, entrevistando jogador lá, para depois escrever.

MLJ: E considerando esse começo da sua trajetória como jogador de futebol, inicialmente seu interesse maior era pelo jornalismo esportivo?
JOAQUIM:
Eu já fiz jornalismo esportivo, até porque, na minha opinião, não existe assunto que o repórter não possa tratar e não existe assunto chato, nem assunto melhor ou pior. Existe um interesse público e o esporte tem um interesse gigantesco. Então, depois que eu saí do Diário de Sorocaba eu fui para um jornal concorrente, que era maior, que é o Cruzeiro do Sul, de Sorocaba, e lá eu cobri Esportes. Cobri o próprio São Bento, cobri a Hortência [jogadora de basquete], que jogava na Minercal, cobri o vôlei, que na cidade também tinha um time de ponta, um grupo de atletismo que também era muito forte, com alteras que iam para Olimpíadas… Mas eu não tinha um interesse específico por Esporte.

Na verdade, o meu interesse pessoal sempre foi Política. Sempre gostei muito de política. Meu pai ajudou a fundar o MDB, na época da ditadura, na cidade de Sorocaba. Depois ele ele foi brizolista. Ele já era, mas na ditadura o Brizola estava exilado. Depois ele foi brizolista, entendia bastante de política e era professor e bancária. E aí por causa dele eu sempre gostei muito também de política. Mas não significa que eu não faça matéria sobre outros assuntos. Fiz Educação no Estadão, já fiz matéria de Ciência, Meio Ambiente… Qualquer área.

O repórter tem que ser fundamentalmente um bom contador de histórias. É isso que ele é. E pra ser um bom contador de histórias você tem que ser, em primeiro lugar, um bom ouvinte. Você ouve, tira suas dúvidas, entende as razões daquela pessoa, daquele grupo, e depois você conta para as pessoas, seja em texto, falando na televisão…

Mas o meu interesse pessoal sempre foi a política, porque eu acho que a política muda a vida das pessoas, efetivamente. E por isso eu cubro mais política ao longo da vida.

MLJ: Por quais veículos você passou ao longo da sua carreira?
JOAQUIM:
Eu comecei no Diário de Sorocaba e depois eu fui ser editor de um jornalzinho muito pequeno chamado Folha de Vorotantin, que é do lado de Sorocaba, mas fiquei só três meses lá porque não gostei, queria assuntos mais palpitantes e a cidade era pequena – hoje é maior. De lá fui pro Cruzeiro do Sul, após trabalhei numa rádio que estava sendo formada na época, uma rádio de Votorantim – que era uma concessão em Votorantim, mas cobria Sorocaba – que era a Rádio Meridional. Depois eu fui para o Estadão, pro jornal O Globo, a Revista Veja, a TV Bandeirantes – a convite do Paulo Henrique Amorim, para ajudar a fundar lá o Jornal da Band. Depois da TV Bandeirantes eu fui pra Globo, pro SBT – para fazer o SBT Repórter, mas fiz também o Jornal do SBT -, fui também pra TV Record para trabalhar na equipe do Boris Casoy. Aí eu fiquei um tempo, uns 10 anos, em assessoria de imprensa, na Câmara Municipal de São Paulo. Só que nesse período eu nunca deixei a imprensa. Eu trabalhei em blog, criei um próprio blog, que se chamava Blog do Morumbi – porque eu morava no Morumbi e o blog fazia com que eu não deixasse de ser repórter, a internet me possibilitava trabalhar em um blog, que primeiro foi chamado de Blog do Carvalho e depois de Blog do Morumbi. Depois eu fui pro Diário do Centro do Mundo, trabalhando paralelamente no DCM e na Câmara Municipal, como servidor público. Ali comecei a fazer reportagens muito impactantes e depois eu fui pro Brasil 247, onde estou atualmente.

MLJ: E quais você destacaria como sendo as reportagens mais marcantes, as coberturas mais impactantes que fez ao longo dessa trajetória?
JOAQUIM:
São várias, viu? Eu vou dizer pra você algumas.

A primeira marcante, que rendeu o Prêmio Esso por equipe, foi a cobertura do impeachment do Collor. Nós cobrimos todo o escândalo Collor pela Revista Veja, que foi o que levou ao impeahment. A equipe era coordenada pelo diretor de redação, o Mário Sérgio Conti, o redator-chefe era o Paulo Moreira Leite, que eram os que mais coordenavam, mais dirigiam essa equipe. Eu fiz várias matérias, uma delas a que levou à condenação do PC Farias, que foi uma espécie de raio-X que mostrou que ele era um sonegador e isso levou à condenação dele – isso e mais a falsidade ideológica, que era um crime-meio para ele poder sonegar, né? Ele criava fantasmas, assinava por outros pessoas.

Essa foi impactante, porque eu tinha 29 anos e foi a primeira vez que a imprensa decidiu enfrentar fortemente um presidente da República, não era normal. O presidente costumava ser muito poupado. Havia críticas, mas não de você mostrar ali um esquema de corrupção provado, né? Porque no caso não era ilação, era tudo provado. Então essa foi uma matéria muito impactante e lembro até hoje que quando eu comecei nessa cobertura, quando eu eu fiz uma matéria sobre o avião que era do Collor – na verdade era do P, mas o PC usava ele mais para servir ao Collor, né? E na época, conversando com o Mário Sérgio Conti, eu era o repórter iniciante na Veja, ele me perguntou da história, se era quente a história, tomando café no corredor. Daí eu falei “é quente, mas pra você saber, pega no Collor. Daí ele diz “é pra pegar. É pra pegar o Collro. É pra pegar. É não é pra poupar”. Me lembro direitinho disso.

Então isso foi muito impactante, foi uma transformação da imprensa brasileira, que passou a atirar no alvo mais alto. Acho até que ali essa cobertura gerou um desvirtuamento da imprensa, que passou a trabalhar numa temperatura muito elevada e, na minha opinião, perdeu a mão, o que começa na própria cobertura do caso PC, que era um caso policial, que eu eu escrevi sobre isso no livro “Basta! Sensacionalismo e Farsa na Cobertura do Assassinato de PC Farias”. Eu acho que aquela coisa foi muito impactante, foi muito valorizada na ocasião por conta do impeachment do Collor e a imprensa passou a cobrir tudo como se fosse o impeachment de nov, mas não é todo dia que você tem casos espetaculares, então não dá, porque aí vira sensacionalismo para tentar aumentar a temperatura da cobertura na mão, entendeu? Coisas do tipo criar falsos escândalos e tal, que foi o que ocorreu.

Eu fiz uma outra matéria que eu acho que é impactante que foi um perfil do Celso Russomano, em 1994. Esse perfil vai permanecer tão atual que ele vai influir na eleição de 2012. Quando ninguém sabia quem era o Celso Russomano, eu trabalhava na Câmara e a convite do DCM atualizei aquele perfil de 1994, mostrando quem era o Celso Russomano, porque ele ia ganhar a eleição para prefeito. Aí depois dessa revelação a internet bombou por causa disso, o DCM até teve que mudar de provedor porque não aguentou tanto acesso por causa dessa matéria. Na época [1994] eu recebi também um prêmio interno da Abril por causa desse perfil, porque todo mundo falava do mais votado de São Paulo, um dos mais votados da história do Brasil, mas ninguém sabia direito quem era o Celso Russomano. E aí eu contei que ele era uma pessoa que não passava pelo crivo do jornalista Celsso Russomano [a figura pública], porque ele vivia fazendo escândalo, cobrando as pessoas, e eu mostrava os rolos que ele tinha, rolos seríssimos que envolviam ameaça, estelionato, essa coisa toda. E naquela ocasião isso mostrou a verdadeira face dele, quando todo mundo estava celebrando, ele era um deputado eleito pelo PSDB na época com o apoio do Mario Covas.

Mais uma matéria impactante que eu fiz foi sobre a história do trabalho infantil no Brasil, era “O suor dos pequenos” e essa matéria foi mencionada pela Unesco, eu recebi uma carta da Unesco de congratulações por ter feito uma contribuição no combate ao trabalho infantil no mundo. Eu participei do Tribunal Internacional de Combate ao Trabalho Infantil por causa disso e essa matéria foi muito impactante, ganhou prêmio Vladimir Herzog… Foi uma matéria que eu fiz no Brasil inteiro, mostrando como é que o capital se aproveitava do trabalho infantil de alguma maneira. Isso gerou, inclusive o Bolsa Educação no nível federal, porque existia Bolsa Educação do Cristóvão Buarque, em Brasília, existia num governo do PSDB em Campinas (SP), tinha existido a experiência do Garotinho, mas eram eram coisas esparsas. Então a matéria mostrava que essas eram as únicas experiências que tinham tirado crianças do trabalho infantil, efetivamente, porque elas trabalhavam por necessidade. E isso depois vai gerar o Bolsa Eduacação, mais tarde o Bolsa Família, numa escala muito grande nos governos Lula e Dilma.

Fiz também muitas matérias de economia na TV Globo, fiz cobertura policial… Fiz uma matéria de cobertura policial que eu acho que é bastante impactante, que na verdade é a matéria que esclarece o caso da Suzane von Richthofen, que matou os pais. A polícia estava patinando, não encontrava a resposta e eu fiz essa matéria. Eu mostrei que era o irmão do Daniel Cravinhos – e depois ele acabou confessando -, mas eu mostrei que ele tinha comprado uma moto no nome de outra pessoa com o dinheiro que foi roubado da casa do pai da da Suzane naquele dia. Foi um caso realmente importante, porque eu investiguei pessoalmente, ia de madrugada nas lan houses que eles frequentavam, ia conversar com o pai do Cristian e do Daniel todo dia, até fora do meu horário de trabalho. Aí eu descobri que um dos irmãos tinha comprado uma moto e passei isso para um delegado, que passou pros investigadores irem lá confirmar se foi ele mesmo que comprou. O investigador foi lá com a foto do Cristian e o vendedor confirmou, depois ele acabou confessando e eu mostrei isso em primeira mão na Globo. Foi aquilo: quem roubou vai gastar o dinheiro, portanto siga o dinheiro, porque aí você vai ver quem é que roubou – eles roubaram oito mil dólares na época, que na verdade foi o que a Suzane deu para o Cristian por ele participar do assassinato, porque ela e o namorado tinham interesse na morte dos pais porque queriam se casar.

Aí depois no próprio DCM eu comecei a fazer matériascom muita liberdade e e no 247, também. Aí fiz a matéria sobre o helicóptero que ficou conhecido como “Helicoca”, que era como um juiz federal lá do Espírito Santo se referia ao caso: estava no Judiciário uma pasta sobre o caso que se chamava “Helicoca”. Eu entrevistei o juiz, fiquei sete horas com ele falando sobre o caso, ele me contando tudo que sabia, tirando minhas dúvidas, e quando ele abriu o computador eu vi que tinha uma pasta chamada “Helicoca”. Ele ainda falou ‘olha, não vai colocar isso na matéeria, né?’. Eu respondi que não tinha como não colocar, o nome era sensacional.

Também fui para as Ilhas Virgens mostrar a frauge da TV Globo, a sonegação da TV Globo: eu fui até o endereço da empresa que a Globo disse que tinha comprado os direitos de transmissão da Copa do Mundo e mostrei que era tudo mentirinha, tudo falso. Não existia aquela empresa, nunca teve e nunca foi instalada lá, foi uma empresa de fachada. E eu mostrei isso no documentário “Sonegação da Globo”.

Aí logo depois começou a Lava Jato, né? Eu fiz uma série chamada “As dez maiores ilegalidades da Lava Jato” e repercutiu muito, porque a Lava Jato era muito comemorada na época e aí teve dois advogados que fizeram a defesa dos primeiros réus da Lava Jato, o Fernando Fernandes e um advogado que trabalhava com ele, um jovem chamado Anderson Lopes. Eles tinham feito um estudo sobre a Lava Jato para embasar um habeas corpus em nome do Paulo Roberto Costa, que tinha sido diretor da Petrobras, mostrando que o Moro jamais poderia cuidar daquele caso, ter presidido aquele o inquérito. Ele usurpou competência do Supremo e essa era uma das ilegalidades. Isso repercutiu bastante na época, porque ninguém falava mal da Lava Jato, era difícil de encontrar alguém que falasse.

MLJ: E você lembra quando saiu a reportagem das dez maiores ilegalidades da Lava Jato?
JOAQUIM:
Eu comecei a apurar em 2016 e a e a matéria começou a sair em 2017, início de 2017. A matéria também sau em vídeo, mas eu já fazia matérias antes mostrando essas ilegalidades. E um belo dia esse advogado, o Anderson Lopes, entra em contato comigo e diz que está vendo as minhas coberturas e que eu entendi o que estava ocorrendo. Ele disse que queria me ajudar e me passou o habeas corpus, que é muito bom, por sinal. Ali até foi o embrião do livro do Fernando Fernandes chamado “Geopolítica da Intervenção”, que mostra como a Lava Jato foi uma grande farsa, como se manipulou inclusive a distribuição do processo no Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi uma manipulação ali. O Gebran Neto, que era amigo do Moro, não podia ser o relator. Eles forçaram uma conexão com um caso do Google, de um funcionário do Google que não tinha nada a ver com Lava Jato, mas pra que a ação fosse distribuída, para que esse habeas corpus fosse distribuído para o Gebran. E esse habeas corpus foi negado. Nisso eu comecei a fazer essa matéria mostrando que a Lava Jato tinha se transformado num tribunal de exceção, porque o TRF4 tinha tomado uma decisão absurda na qual considerava que o Moro não precisava seguir o ordenamento jurídico mais corriqueiro, comum. Ele poderia tomar medidas que eram excepcionais, o Tribunal fala isso. Isso transformou Curitiba num tribunal de exceção. Um absurdo. Mas desde o início eu percebi que a Lava Jato era uma ação, um movimento do sistema de Justiça para desestabilizar um governo eleito.

Depois nós entrevistamos o hacker, que é o Walter Delgatti. Eu considero isso muito importante, independentemente do movimento do hacker depois, para onde ele foi efetivamente, porque ali ele fez um grande trabalho, mudou a história do Brasil. E ele não tinha falado antes, ele nos deu uma entrevista ao vivo. Antes ele só tinha dado uma entrevita para a CNN, que fez uma edição porca. E nós mostramos a vida dele, que era o Delgatti, porque ele fez aqui, mostrando até que ele não ganhou nada, não teve benefício nenhum. Era uma questão de vaidade mesmo, coisa de hacker que quer descobrir algo grandioso e tornar público.

Mais recentemente, e é um caso que eu ainda continuo nele, teve o documentário mostrando a inconsistência da narrativa oficial sobre a facada no Jair Bolsonaro. O título gerou muita repercussão, porque eu chamei “Fakeada”, mas eu sempre expliquei que a “fakeada” não tem nada a ver com o que ocorreu. O Jair Bolsonaro entrou na Santa Casa com um ferimento. Agora, o que foi, como foi, quem ordenou, se ele agiu sozinho, essa história não está contada. O que foi contado é mentiroso.

Logo depois do evento lá de Juiz de Fora o Jean Wyllys já foi apontado como um um suposto mentor, o que era um absurdo, porque isso foi construído, inclusive, com um uma distorção num registro de entrada do Adélio na Câmara. Aí eu mostrei que o Adélio tinha um Facebook e que era um perfil de um militante de bandeiras bolsonaristas, que defendia o projeto do Bolsonaro. Ele passa atacar o Bolsonaro depois que ele faz o clube de tiro. Isso tem uma linha clara no tempo. Eu só mostrei que era inconsistente e o único documento que encontraram dentro da mochila dele que o ligava à política era um pedido de desfiliação do PSD, o PSD que é de um deputado na época da bancada da bala, da bancada do boi, dos ruralistas, que é o deputado Marcos Montes, que é de Uberaba. E o Adélio fez militância pelo PSD, queria ser candidato pelo PSD e isso não foi divulgado, nós é que divulgamos com o documentário que o que encontraram na mala dele era um papel do TRE em que ele pedia desfiliação do PSD. O PSD depois falou ‘não, mas ele nunca foi filiado ao PSD’, mas ele achava que tinha sido, porque ele militava ali, porque ele frequentava ali o PSD. Então, não tinha nada do PSOL. Ele foi nos movimentos, viajou pra Brasília para derrubar a Dilma, protestar contra a Dilma naquele movimento contra a corrupção. O que aconteceu é algo que tem que ser investigado. Se foi um auto-atentado ou não, de qual grau foi o ferimento… O Bolsonaro tinha um problema anterior de abdômen, sem sombra de dúvida. Ele interrompeu ato de campanha duas vezes, foi a um evento evangélico em que a igreja lá orou com a Michele, com a mão de um pastor no abdômen dele, porque ele tinha um problema no estômago. Isso é fato. Isso é fato. E isso nunca foi investigado e eu sou atacado por conta dessa matéria, mas não me arrependo de ter feito não e continuo nessa história.