Situada no extremo sul do Rio Grande do Sul, Rio Grande é a mais antiga cidade gaúcha (fundada em 1737), com uma população que soma pouco mais de 190 mil habitantes (o 11º maior contingente do estado) e sendo conhecida por abrigar a maior praia do mundo de um lado e a foz da Lagoa dos Patos do outro.

Cercada pelas águas e com saída para o Oceano Atlântico, acabou por ganhar o curioso apelido de “noiva do mar” e, não à toa, construiu sua economia, em torno da atividade portuária, tornando-se um corredor de exportação, além de possuir algumas outras atividades de baixo valor agregado: comércio e também alguma atividade agropecuária.

Em 2006, no entanto, isso começou a mudar. Naquele ano, a Petrobras descobriu o pré-sal – uma das mais importante descobertas em todo o mundo na indústria de óleo e gás – e o Brasil inaugurou um novo capítulo na sua história da energia.

A novidade trouxe a promessa de prosperidade e o governo liderado pelo Partido dos Trabalhadores (com os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff) resolveu, então, tomar uma ousada decisão: já que o país teria de fazer uma série de investimentos na fabricação de navios, na fabricação de embarcações de apoio à produção e na construção de plataformas de perfuração e produção para a exploração do pré-sal, era hora de se voltar a desenvolver a indústria naval brasileira.

Para fazer isso, foram implementadas medidas que visavam incentivar a nacionalização de bens e serviços. O Programa de Modernização e Expansão da Frota (Promef), da Transpetro (uma subsidiária da Petrobras), por exemplo, passou a exigir um índice de “conteúdo nacional” (ou índice mínimo de nacionalização) de 65%. Isso obrigava que uma parcela considerável dos investimentos a serem feitos pela Petrobras para a exploração do pré-sal ficassem no próprio Brasil, ajudando a reerguer e desenvolver uma indústria pesada na qual o país já havia sido destaque mundial entre os anos 1960 e 1980.

“Esse país não podia continuar exportando emprego e oportunidades para o resto do mundo. O que nós pudéssemos fazer no Brasil, nós faríamos no Brasil”, chegou a declarar a presidenta Dilma num discurso em setembro de 2012, justamente no estaleiro que havia se instalado em Rio Grande (RS).

DO apogeu da moderna indústria naval brasileira…

Não foi apenas o estado gaúcho, no entanto, que recebeu investimentos. Rio de Janeiro (desde antes o principal polo naval do país), Santa Catarina, Espírito Santo, Bahia, Ceará, Pernambuco e outras unidades da federação também foram beneficiadas. O que aconteceu na cidade no extremo sul do Rio Grande do Sul, portanto, é também um retrato do que houve no restante do país, explica a pesquisadora Ana Paula Ferreira D’Avila, socióloga e autora do livro “À Deriva da Maré: Padrões de Desenvolvimento e de Trabalho no Polo Naval de Rio Grande”. A obra, que nasceu a partir da tese de doutorado da autora, pesquisa as relações de trabalho desenvolvidas no polo naval do histórico município gaúcho.

Em Rio Grande, dois estaleiros foram instalados, os quais foram cedidos em comodato (direito de uso) à Petrobras pela Ecovix. Oito plataformas de exploração do pré-sal deveriam ser construídas naquele polo naval, que viveu seu auge entre 2010 e 2014, quando o polo naval chegou a empregar, direta ou indiretamente, mais de 20 mil pessoas (isso numa cidade com cerca de 190 mil habitantes, recorde-se).

“Rio Grande se tornou um imã de trabalho, então várias pessoas do país e da região se movimentaram para vir trabalhar aqui e isso impactou, por exemplo, o setor hoteleiro. Não tinha hotéis que conseguissem absorver todo esse fluxo de pessoas, então foram construídos hotéis. Shopping, não tinha shopping center no município até então, porque era uma cidade de médio porte, mas que tinha uma economia estagnada”, explica Ana D’Avila.

No comércio, que até antes da indústria naval chegar na cidade era o setor que mais absorvia mão de obra no município, começou a ser comum ver placas escrito “contrata-se”, “precisa-se de vendedor” ou “precisa-se de cozinheiro”.

“Não se tinha mais pessoas interessadas nessas vagas [no setor de comércio e serviços], porque a indústria pagava melhor e aí a maioria das pessoas foram em busca da indústria, foram em busca de se qualificar”, conta ainda a pesquisadora.

… Ao sonho que enferrujou

O Polo Naval de Rio Grande tinha, inicialmente, a previsão para 20 anos de atividades, firmadas mediante licitações com a principal contratante, a Petrobras. As perspectivas, então, eram bem otimistas para a nascente indústria. Mas não demorou para que a maré começasse a mudar e o sonho naval, a enferrujar, virar sucata.

O que aconteceu foi que a Operação Lava Jato, nascida em março de 2014, chegou até diversos dos estaleiros brasileiros com suas investigações sobre a Petrobras. Por conta das suspeitas de fraudes em licitações e outros contratos, encomendas já feitas pela petrolífera às empreiteiras responsáveis pelos estaleiros acabaram sendo “congelados” e levas de demissões começaram a ocorrer no setor por todo o país.

A situação se agravou ainda mais em 2016, quando o processo de impeachment chegou ao fim e Dilma Rousseff foi definitivamente afastada da presidência da República. Com Michel Temer no poder, já em novembro de 2016 é sancionada uma lei (13.365/2016) que torna a participação da Petrobras facultativa como contratante nas licitações e também é alterado o índice de conteúdo local (que passa de 65% para 25%).

O desmonte estava feito. E no dia 11 de dezembro de 2016, o golpe final no estaleiro de Rio Grande: após o casco da plataforma P-68 (uma das quatro construídas no local) ser encaminhada para o Espírito Santo, onde seria finalizada, 3,2 mil trabalhadores foram demitido de uma vez só.

Hoje, de uma indústria que chegou a empregar mais de 20 mil pessoas e construir mega-embarcações, o que restam são algumas centenas de empregos e uma estrutura gigantesca e praticamente abandonada, que hoje serve apenas para o reparo ocasional de embarcações. O sonho enferrujou e virou sucata. E a Lava Jato, ressalta a pesquisadora, teve o seu protagonismo nesse processo de destruição.

“O que acontece? As punições [pelos escândalos de corrupção] foram para as empresas, só que as empresas têm outro patamar: elas têm capital, elas têm condições. E os trabalhadores só têm o CPF, né? Então é uma disparidade, uma desigualdade da relação entre capital e trabalho, e a operação [Lava Jato] não levou em consideração isso, até porque ela foi desenvolvida de uma maneira atabalhoada, ela tinha esse viés mais político mesmo, que hoje a gente tem condições de dimensionar. Aí qual é a realidade que a gente tem hoje, passado tudo isso e evidenciado os efeitos políticos [da Lava Jato]? A indústria naval dizimada em todo o país”, lamenta Ana D’Avila.

trabalhadores sentiram na pele o impacto da lava jato

Durante sua pesquisa de doutorado, realizada entre 2014 e 2018, Ana D’Avila acompanhou de perto o auge e o ocaso do polo naval de Rio Grande. E nesse período, pôde acompanhar não só as demissões em massa de trabalhadores, mas antes mesmo disso a degradação das próprias condições de trabalho, que foram se tornando mais e mais precárias na medida em que a Lava Jato avançava e a indústria naval era destruída.

“Uma das coisas que mudou [nos estaleiros depois da Lava Jato] foi que os soldadores usavam uma capa de couro e um avental também de couro pra não sofrer nenhum ferimento com alguma fagulha de solda. E essas luvas e esses equipamentos começaram a faltar ou, se tinha, a ficar cada vez mais com uma qualidade inferior. Eu entrevistei trabalhadores com o braço todo furado pela solda, porque não tinha luva. E isso foi identificado depois de 2015, no final de 2015, quando já estava bem avançado esse processo [de deterioração], porque foi algo gradativo, mas quem estava diretamente no polo naval, os trabalhadores e trabalhadoras, sentiram isso no seu cotidiano de trabalho.”

Ainda segundo a pesquisadora, não é exagero algum dizer que, no final dessa história de “polícia e ladrão” que a Lava Jato criou, quem acabou realmente pagando a conta pela corrupção e o atabalhoado e enviesado combate ao crime foram os trabalhadores.

“As pessoas ficaram desesperadas, porque tinham adquirido uma perspectiva de ter uma vida melhor, né? Uma condição de ter uma casa própria, de ter um automóvel, enfim. E aí aquilo tinha se desfeito da noite pro dia e não teria uma perspectiva de recuperação”, comenta D’Avila, recordando que aquelas plaquinhas que antes se via no comércio, escrito “precisa-se de vendedor” ou “precisa-se de cozinheiro”, agora haviam mudado: eram placas de “vende-se” e “aluga-se”.

“Os empreendimentos fecharam e o que restava agora era o desemprego. O que havia era uma falta de perspectiva e de desespero e esses trabalhadores foram jogados [fora], sabe? Isso foi muito forte na minha experiência enquanto pesquisadora e para todo mundo que viveu o polo naval de Rio Grande, porque depois eu continuei a pesquisar os trabalhadores, para saber o que eles foram fazer. Por isso que eu também tenho alguma propriedade pra saber o que que aconteceu, então essas pessoas foram trabalhar em comércio, às vezes da família; trabalhar como Uber; trabalhar como serralheiro; mas nada comparado ao que eles tinham, e não só em relação ao salário, mas também aos direitos. Esses trabalhadores eram assalariados, tinham vários direitos, registro em carteira e tudo. Então quem era de fora teve de voltar pra sua região e aí também recomeçar a vida, geralmente num trabalho precário, porque o país todo estava afetado [pela crise econômica]. Como os estaleiros estavam sendo desativados de norte a sul, não foi só Rio Grande que foi impactado: é um número imenso de trabalhadores que foi jogado de volta no mercado de trabalho numa crise que não os absorvia.”

Confira abaixo, na íntegra e tanto em vídeo como no formato pingue-pongue, a entrevista concedida ao Museu da Lava Jato pela pesquisadora Ana Paula Ferreira D’Avila. O livro dela (“À Deriva da Maré: Padrões de Desenvolvimento e de Trabalho no Polo Naval de Rio Grande“) pode ser adquirido diretamente com a editora Appris ou através da Amazon. Pelo site da editora, no entanto, a obra está com valor promocional.

MUSEU DA LAVA JATO: Primeiro, queria entender como que foi o processo até definir o escopo da tua pesquisa e como que surge também o tema para a sua tese de doutorado.
ANA PAULA FERREIRA D’AVILA:
Então, eu sou natural do município de Rio Grande (RS), estava terminando meu mestrado em Ciências Sociais na Universidade Federal de Pelotas, queria fazer o doutorado e na época eu tinha o interesse de trabalhar com a professora Maria Aparecida Bridi, da Universidade Federal do Paraná. Então eu fiz a seleção lá na UFPR, passei e comecei a cursar o doutorado.

A princípio eu iria estudar o pessoal da Positivo, que era o setor de tecnologia da informação. Mas numa das reuniões de orientação a gente decidiu que seria necessário estudar os impactos das políticas industriais, das políticas voltadas pros diversos setores no Brasil dos últimos anos. Isso era em 2014, o primeiro ano do doutorado, e aí começamos a elencar os setores, a ir cada um mais ou menos decidindo com quais área estaria mais apto, se sentia mais à vontade e tinha mais interesse em pesquisar. E aí surgiu a oportunidade de pesquisar a indústria naval.

Para quem é pesquisador, um dos aspectos fundamentais é tu ter entrado em campo. Ou seja, tu consegue pesquisar aquilo que tu consegue ter contato com as pessoas. E aí eu pensei “bom, eu sou de Rio Grande, então talvez eu consiga algo no polo naval”, porque a cidade estava sofrendo várias mudanças desde a instalação da indústria lá. E assim surgiu a ideia. Isso foi em fevereiro [de 2014] e em julho eu já comecei a fazer a pesquisa exploratória, em novembro ingressei também no Núcleo de Estudos do Polo Naval da UFPel, comecei a fazer as visitas guiadas ao estaleiro… E assim foi que eu, sem ter esse intuito inicial, acabei voltando para estudar na minha terra natal.

MLJ: E como era o município de Rio Grande antes e depois dos investimentos voltados para a indústria naval?
ANA D’AVILA:
Rio Grande é um município marcado por ciclos industriais. E o que é isso? Durante uns anos, alguns segmentos da indústria se instalam lá e funcionam bem, até que depois de uns dez, quinze anos, mais ou menos, as empresas entram em um processo de falência. Então Rio Grande é um município que vive como se fosse num movimento de vai-e-vem, no qual cada ciclo econômico que se instala gera emprego, mobiliza a economia da cidade, e depois tem essa questão da falência.

Na época que eu fui estudar, então, eu tinha essa hipótese de que seria mais um ciclo econômico, mas eu não sabia que já estaria na iminência de terminar, eu não imaginava isso, lógico. E não tinha ainda muita ligação da Operação Lava Jato com a indústria naval, porque as investigações também foram deflagradas naquele ano.

Mas a indústria naval, que se instalou na cidade em 2010 – um processo que começou em 2006, mas em 2010 que foi inaugurado de fato -, gerou muito emprego. Só que começou uma questão de que esses empregos não abarcavam, as empresas não davam preferência para os trabalhadores locais. E aí teve uma lei aprovada na Câmara Municipal determinando que, além dos incentivos fiscais, os estaleiros teriam que empregar a população local.

Então isso foi um embate durante alguns anos, porque o principal dilema era que essas pessoas não tinham qualificação, porque a cidade é um corredor de exportação. Então tem um porto, por onde são exportados grãos, madeira, animais vivos, tem o comércio e alguma coisa de atividade agropecuária também. Eram atividades de baixo valor agregado, e quando vem uma indústria naval se instalar, ela vai mexer com toda a economia. Essa população vai em busca de qualificação, aí o SENAI oferece cursos de solda, principalmente, os próprios estaleiros…

No comércio, que era o setor que mais absorvia mão de obra [até a chegada da indústria naval], começou a ser comum na cidade ver placas escrito assim “precisa-se de vendedor”, “precisa-se de cozinheiro”. Não se tinha mais pessoas interessadas nessas vagas, porque a indústria paga melhor e aí a maioria das pessoas foram em busca da indústria, foram em busca de se qualificar. Naquela época, faltava gente na indústria, e isso não foi só em Rio Grande, foi também em Pelotas, que é uma cidade que fica a 60 quilômetros.

Rio Grande se tornou um imã de trabalho, então várias pessoas do país e da região se movimentaram para vir trabalhar aqui e aí isso impactou, por exemplo, o setor hoteleiro. Não tinha hotéis que conseguissem absorver todo esse fluxo de pessoas, então foram construídos hotéis. Shopping, não tinha shopping center no município até então, porque era uma cidade de médio porte, mas que tinha uma economia estagnada. Também tinha a questão de habitação, porque tinham poucos imóveis com condições, então era comum trabalhadores, principalmente de fora do Rio Grande do Sul, morarem juntos numa casa, dividir.

Assim, tu pode imaginar impacto em todas as áreas possíveis de um município que não estava preparado para receber todo esse fluxo não só de investimento, de capital, mas também trabalho. E foi tudo se organizando conforme a coisa andava, digamos assim.

MLJ: E a previsão inicial era de 20 anos de atividades voltadas para o mercado interno, firmadas principalmente mediante licitações com a Petrobras, para depois disso, com a indústria brasileira como um todo já mais estabelecida e maturada, ocorrer a abertura para o mercado internacional, isso?
ANA D’AVILA:
Exato, e isso era padrão não só no Rio Grande. Claro, eu estudei Rio Grande, mas o padrão da indústria naval, principalmente as indústrias navais asiáticas, são 10 a 20 anos com o Estado tendo um braço, um banco que financia essa indústria e de 10 a 20 anos ela fica num período que a gente chama de maturação. Ou seja, fica fechada para clientes do próprio país, digamos assim, e aí, depois desse período, quando a indústria está mais madura, se abre para a concorrência internacional.

Então não só Rio Grande, mas os casos de norte a sul do país não fugiram desse modelo de implantação, desse plano. Era o padrão e o que foi importante aqui foi a política de desconcentração naval, que não foi só Rio Grande [que recebeu investimentos para a instalação da indústria naval], foram municípios de norte a sul do país e foi fundamental para isso o índice de conteúdo local, que determinava ser necessário uma quantidade significativa de trabalhadores do país e também de bens. Então movimentava também o setor que abastecia a indústria naval e que teria que ser local. Isso foi importante pra dar essa preferência, que era obrigatória, pra dinamizar a indústria.

Mas a questão da temporalidade, no caso de ter só um cliente – no nosso caso do Brasil a Petrobras – era e é padrão, não foge muito à regra internacional.

MLJ: Você comentou agora sobre essa descentralização, essa desconcentração da indústria naval (até então restrita ao Rio de Janeiro, basicamente) que os governos Lula e Dilma começaram a promover. Qual o motivo dessa opção de política industrial e qual foi o impacto disso?
ANA D’AVILA:
Essa foi uma estratégia que não foi adotada só pra indústria naval. Houve um plano de promover o desenvolvimento, levar o desenvolvimento para várias áreas do Brasil. Então não era só a indústria, era também, por exemplo, os institutos federais de educação, que foram unificados e novos campus foram construídos através de uma estratégia de interiorização que foi colocada em prática. Então a indústria naval também estava alinhada com essa estratégia de pensar o país nas suas desigualdades também, né? Era uma forma de dar uma equalizada. E isso por quê?

É que o papel que o Estado brasileiro assume nos primeiros governos do Lula e depois com a Dilma é diferente, porque até a década de 1990, quando se tinha um empreendimento, principalmente um empreendimento de indústria automobilística no Brasil, era colocada uma disputa entre os estados. Então o estado que oferecesse melhor incentivo fiscal, entre outros benefícios, e que tivesse o melhor desempenho na conjuntura política em que se travavam as negociações era quem ganhava. Então era um tipo de política na qual os estados da federação eram colocados em concorrência entre si. Aqui no Rio Grande do Sul é célebre o caso da montadora em Gravataí, uma montadora de automóveis que se instala no Rio Grande do Sul, que o Rio Grande do Sul consegue [ganhar a disputa com outras unidades da federação], mas nessa conjuntura de concorrência.

Mas isso muda, esse padrão de atuação do Estado muda, porque se pensa na complexidade do território brasileiro, um país de dimensões continentais, e aí vem essa política de descentralização da educação, da saúde também, se a gente for pensar no Mais Médicos… Então é um padrão, uma política de desenvolvimento que busca levar investimento, qualificação e atendimento para a população em outras áreas. E aí os estados não tem mais que concorrer entre si, porque a organização do Governo Federal vai servir para pensar no direcionamento dos investimentos, claro que de acordo com as características de cada localidade – para receber uma indústria naval, por exemplo, tem que ser uma cidade litorânea.

Mas essa política vem para democratizar também a indústria, o acesso à saúde e à educação no país.

MLJ: E o que se projetava, o que se imaginava que viria a ser o polo naval do município de Rio Grande? Quais eram os planos, o que estava projetado pra indústria naval na cidade?
ANA D’AVILA:
O fator que deu um grande fôlego e uma perspectiva de longo prazo [para o setor naval] foi o anúncio da descoberta geológica da camada de pré-sal. Então o pré-sal foi fundamental e o polo e Rio Grande tinha uma especificidade: eram dois estaleiros [na cidade] e ainda tinha o estaleiro de São José do Norte e eles trabalhavam em plataformas do tipo FPSO, que são as que tiram o pré-sal, armazenam, fazem todo o processo de extração e também de filtrar, todo o processo de trabalhar o pré-sal. Essas plataformas iam para a Bacia de Campos, que é a maior do pré-sal no Brasil, então se tinha uma perspectiva muito positiva a longo prazo, porque cada vez mais a tendência é buscar energias, formas de energia menos poluentes, até por conta da questão dos recursos naturais e também pelo esgotamento do meio-ambiente.

Então se tinha uma perspectiva muito positiva, porque precisariam de plataformas pra trabalhar nesse campo que era brasileiro e que foi descoberto também graças ao investimento que o Estado brasileiro fez nesses governos [Lula e Dilma] em tecnologia para procurar esses campos, né? Até que em 2006 o pré-sal é descoberto e ali foi o start mesmo, onde se viu que precisava e mais uma justificativa para se investir na indústria naval. Ali se disse “não, a gente tem que ter uma indústria naval, porque a gente tem muito campo pra de pré-sal pra explorar e a gente pode ter, sim, os nossos navios sonda, a gente tem essa capacidade de tecnologia e também de trabalho”.

Era essa a perspectiva, bem otimista, pra indústria.

MLJ: E apesar dessa perspectiva otimistas, a partir de 2015 já se inicia um processo de desmonte mesmo da indústria naval brasileira. O que acontece a partir dali e como que esse movimento nacional vai afetando também a indústria naval em Rio Grande?
ANA D’AVILA:
A gente tem em 2014 a deflagração da Operação Lava Jato, uma operação que, a princípio, se pretendia ao combate legítimo da corrupção. Mas no decorrer do desenvolvimento dessas etapas da operação, foi se apontando o envolvimento de empreiteiras, empreiteiras que eram responsáveis pela indústria naval não só no Rio Grande, mas em todo o país. Elas eram acusadas de fraude em contratos, de fraudar licitações, só que foi se colocando um viés mais político e aí a perseguição ao PT e ao Lula se tornou mais evidente por conta da condução da operação.

Isso tem um impacto na democracia do país, que vai se juntando com o efeito da crise econômica, que é típica do capitalismo. Então em 2015 a Dilma, recém-eleita, vai pegar a crise [econômica] e a isso se soma os efeitos políticos de uma operação que deveria ser estritamente jurídica. Aí é um somatório de forças que vão se combinando e vai acontecendo: é a condução da Lava Jato, a democracia colocada em risco no país e a indústria naval por trás disso, porque sofre os impactos diretamente.

E aí o que acontece? A gente tem o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, depois a prisão do presidente Lula, e se torna visível, pelo menos para parte da população, mais crítica, que [a Lava Jato] tinha um viés político: era o lawfare, o uso político do Direito. E quando eu estava estudando o estaleiro, eu comecei a perceber isso. E como a minha área de trabalho é a sociologia e eu estava estudando os trabalhadores, eu comecei a fazer um antes e um depois da Operação Lava Jato e peguei alguns indicadores que impactavam eles e elas [trabalhadores e trabalhadoras] no cotidiano: condições de trabalho, equipamentos de segurança, várias questões que mudaram conforme o avanço da Operação Lava Jato, se tornaram mais precárias. Então eu fui buscando nesses indicadores mostrar como que o avanço da Operação Lava Jato vinha impactando o polo naval e os seus trabalhadores, para além dos impactos na nossa democracia – porque eram procedimentos que estavam sendo desrespeitados, como o devido processo legal quando a gente fala no caso do presidente Lula, o próprio impeachment da presidenta Dilma, que foi inocentada pelo que ela foi acusada, das pedaladas fiscais.

Então um dos indicadores, por exemplo, que mudou foi que os soldadores usavam uma capa de couro e um avental também de couro pra não sofrer nenhum ferimento com alguma fagulha de solda. E essas luvas e esses equipamentos começaram a faltar ou, se tinha, a ficar cada vez mais com uma qualidade inferior [na medida em que a Lava Jato foi avançando]. Eu entrevistei trabalhadores com o braço todo furado pela solda porque não tinha luva. E isso foi identificado depois de 2015, no final de 2015, quando já estava bem avançado esse processo, porque foi gradativo, mas quem estava diretamente no polo naval, os trabalhadores, foi sentindo isso no seu cotidiano de trabalho.

Outra questão: mudou o perfil de contratação. O que isso quer dizer? Os trabalhadores locais começaram a ser mais requeridos, mais empregados, mais contratados. Por quê? De um lado eles tinham adquirido experiência, qualificação, e de outro lado os trabalhadores de outras regiões do país eram considerados mais caros, porque, de acordo com o que foi acordado na convenção coletiva, eles tinham direito a férias, a empresa pagava também deslocamento… Enfim, de 2015 em diante [a ordem] era se desfazer de tudo aquilo que era custoso.

Então a Operação Lava Jato impacta [a indústria naval] e isso não foi falado na mídia. Mas esse não foi só o caso de Rio Grande, é o caso de todos os estaleiros brasileiros. Claro, eu não estudei detidamente cada um, mas eu tenho contato, nos eventos de Sociologia eu tinha contato com pesquisadores de outros polos navais e também se observava esse desmonte, que foi a princípio nas condições de trabalho, na modalidade de contratação, e depois foi impactando mesmo o próprio fluxo de contratações, porque as carteiras de encomenda foram congeladas, digamos assim.

Os trabalhadores sofreram na pele com essa situação e, claro, depois eles começaram a sofrer diretamente, porque quando tem o impeachment da Dilma e o Michel Temer assume, ele já em novembro de 2016 já coloca uma lei que torna a participação da Petrobras facultativa e altera o índice de conteúdo local. O que acontecia com relação a essas empresas coloca de volta aquela mentalidade de que “Ah, a gente não é capaz de produzir nada no Brasil” de volta na agenda do dia e essas empresas demitem em massa os trabalhadores e a carteira de encomenda vai para a Ásia, que é a principal indústria naval do mundo.

Então o efeito é a volta daquela mentalidade de que o Brasil é um “fazendão” do mundo, sabe? De que a gente não é capaz de ter tecnologia de ponta e produzir bens com alto valor agregado, que os trabalhadores são caros e toda aquela mentalidade entreguista que é colocada de volta na agenda do dia, sendo nós estávamos já bem próximo de atingir a maturidade [na indústria naval] e abrir pro mercado internacional a carteira de encomentadas.

Esses são alguns dos efeitos para os trabalhadores dessa condução política de uma operação que seria pro combate à corrupção.

MLJ: E no meio desse processo, o que vai acontecendo também com o próprio sindicato dos trabalhadores, que seria o órgão de representação e defesa da categoria?
ANA D’ÁVILA:
Como eu falei, o município foi pego de surpresa e teve que se organizar em vários setores. Então o setor hoteleiro [teve que se estruturar], o setor da gastronomia, o setor de serviços como um todo, de transporte… E o sindicato não foi diferente dessa realidade. O sindicato dos metalúrgicos existia desde 1932, por aí, mas ele tinha um presidente que na época os trabalhadores que eu entrevistei chamavam de pelego, até porque não tinha uma indústria metalúrgica pujante. Então é um sindicato que estava também estagnado e os trabalhadores precisaram se reorganizar. Então eles se qualificavam e trabalhavam no polo, recebiam colegas que eram de outros estados, mais experientes, e começaram a sentir essa necessidade de ter uma representação coletiva, até para ter um poder de barganha mais organizado. E aí o próprio sindicato fez eleições para escolher os seus representantes e foi se organizando já em 2011. Então já tinham alguns anos de atividade e o sindicato foi importante, porque a princípio eles não tinham, eles foram buscando a legitimidade, porque havia uma ausência de experiência, inclusive que a gente pode falar de classe, digamos assim, quanto à organização dessas demandas.

Inclusive, uma leitura que me ajudou bastante foi uma obra do Edward Thompson, em que ele vai analisando como que a classe trabalhadora se organizou na Inglaterra. E aqui, o que eu consegui entender foi que a experiência de classe foi fundamental. Então as necessidades em comum, as demandas, as questões em comum, elas foram se constituindo e ajudando a montar esse sindicato, a legitimar esse sindicato, porque foi ocorrendo do próprio sindicato ir se formando também no decorrer dessa experiência conjunta, sabe? E foi combativo, se conseguiu organizar num período curtíssimo de tempo, conseguiu fazer sua convenção coletiva, também conseguiu estabelecer alguns direitos, inclusive para o trabalho das mulheres, porque as mulheres eram uma minoria nessa indústria, mas elas estavam lá e sofriam assédio, tanto que o sindicato fez uma cartilha, fez algumas intervenções. Se colocou, por exemplo, a questão da mulher grávida não poder trabalhar em ambiente insalubre… Enfim, se estabeleceu aqueles padrões mínimos de uma relação entre capital e trabalho. E claro, quanto maior o número de trabalhadores nessa indústria naval, mais os trabalhadores tinham esse poder de barganha para negociar. Então o sindicato fazia paralisações como um útimo recurso, quando as outras instâncias de negociação não tinham dado certo – era tudo muito organizado, eles tinha um advogado, tinham economistas… Então era tudo muito racionalizado em todas essas instâncias e quando se chegava a uma paralisação, era porque não tinha dado certo as outras instâncias de negociação. Mas foi um sindicato combativo e que esteve até o último momento, literalmente, e depois também, com esses trabalhadores desempregados, na luta por uma indústria naval atuante e combativa. Tanto é que o presidente do sindicato foi eleito vereador do município, tamanha era a representatividade e a importância da indústria naval pro município e a pauta que ele representava.

MLJ: E como que foi acompanhar todo esse processo acontecendo e também como surge a ideia de elaborar o livro, que é lançado em 2021 (três anos depois da conclusão do doutorado, portanto)?
ANA D’AVILA:
Uma das questões que envolvem o trabalho do sociólogo – da socióloga, no caso – é a gente estudar a realidade conforme ela vai se apresentando. Isso coloca alguns desafios que na época eu não tinha condições de de mencionar pra me manter coerente com o meu papel de pesquisadora.

Então, quando a Lava Jato foi colocada a público, eu tomei a decisão, já comecei a pensar e disse “não, eu vou levar essa pesquisa”, que era acadêmica, estava numa esfera acadêmica, mais restrita de circulação, e pensei “Não, eu vou publicar o livro, porque embora eu não vá estudar a Vaza Jato, o polo naval não existe mais. Ficou o desemprego, a pobreza, a fome… toda uma conjuntura de miséria na qual o município e a região foi jogada de volta. E como ficou comprovado, foi se evidenciando o papel que o Sergio Moro ocupou e desempenhou na Lava Jato, foi um dos motivos que me levou a publicar um livro e também uma estratégia de resistência. Por quê? Porque em 2021 eu comecei a trabalhar nele de novo e a gente vivia um governo da morte, um governo do Jair Bolsonaro. Essa conjuntura, que foi dado o start com a Operação Lava Jato, ela só foi se intensificando, se tornando autoritária e atingiu um ápice com a eleição do Jair Bolsonaro e toda uma onda conservadora que atinge o Brasil. E depois da pandemia isso só piora por conta também de uma condução política que negava a pandemia.

Então foi uma estratégia de resistência também pra minha saúde mental editar esse livro e contar essa história. Por quê? Porque o Sergio Moro saiu do seu papel de juiz e assumiu o Ministério da Justiça no governo Bolsonaro. Então a Vaza Jato, a proeminência política que ele foi adquirindo, confirmaram aquelas hipóteses iniciais que se tinha, mas que não se tinha condições de dizer. Inclusive num trabalho que eu apresentei uma vez, em 2017 ou 2018, eu falei disso. Eu disse “olha, gente, tem um viés político na Operação Lava Jato porque eu estou vendo lá no meu campo de trabalho”. E aí eu fui questionada, muito questionada, porque os pesquisadores da área de Sociologia são extremamente exigentes, então a gente não pode sair fazendo afirmações que a gente não comprova. E aí eu não tive condições de provar, logicamente, naquela époica. E não era o meu intuito, mas era algo que me chamava atenção. E aí, infelizmente, eu pude comprovar isso e aí eu pensei “não, vale a pena eu contar essa história”.

MLJ: Na tese de doutorado, apresentada em 2018, a senhora chega a escrever que, “por motivos que fogem da nossa alçada compreender, mas que são visíveis e evidentes”, o combate à corrupção promovido pela Lava Jato levou ao desmonte da indústria naval e, por conseguinte, ao trabalho dos metalúrgicos e metalúrgicas navais no Brasil. Hoje, tendo em vista tudo o que já veio à tona sobre a Lava Jato desde então (através da Vaza Jato, operação Spoofing e outros trabalhos), é possível identificar alguns dos motivos desse combate à corrupção ter levado a tal desmonte? Quais os interesses que definiram isso?
ANA D’AVILA:
Até a Operação Vaza Jato eu não tinha condições, porque não era também meu objetivo inicial, evidenciar esse impacto político na vida dos trabalhadores. Então eu vi isso, mas eu não tinha condições na época de colocar isso. E aí quando, na medida em que a Vaza Jato avançou e que o Sergio Moro deixou o papel dele de juiz para seguir pro Ministério da Justiça e depois buscar uma carreira política, conseguindo se eleger senador pelo Paraná, eu vi que tinha condições para afirmar com mais embasamento que aquela operação era política e que além de toda aquela questão envolvendo o Lula e a sua prisão, tinha também a história dos trabalhadores da indústria naval.

E era esse o meu comprometimento, justamente contar essa história do lado de quem não foi ouvido, de quem não foi visto nesse processo todo. Então eu resolvi contar essa história, mas aí tinha um dilema: eu não tinha mais polo naval para estudar. Tinha uma plataforma, a P-71, abandonada com 50% pronta, enferrujada. Eu fui lá na beira do estaleiro – não podia entrar, mas tirei fotos e algumas delas, inclusive, estão no livro. Eu não tinha mais ninguém para entrevistar, não tinha mais o objeto de estudo. Então eu pensei ‘não, eu não vou desistir. Eu vou contar essa história com aqueles dados, com aquela realidade [constatada na pesquisa], mas vou também enfatizar esse viés [político na condução da Lava Jato], porque agora eu tenho condições de dizer que tudo foi, sim, um efeito cascata dessa condução.

E aí eu fui lá e me ancorei, por exemplo, na outra indústria naval, na antiga indústria naval brasileira, na qual as mesmas empreiteiras estavam também trabalhando nos estaleiros e elas estavam envolvidas em escândalos de corrupção. Então eu fui lá, busquei o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o escândalo dos navios de papel, como ficou popularmente conhecido. E lá eu li, pude verificar o envolvimento das mesmas empreiteiras e aí fui buscar quando que essas empreiteiras, como a Odebrecht e a Camargo Corrêa, se desenvolveram no Brasil. Aí eu verifiquei que durante a ditadura militar elas eram pequenas empreiteiras, que durante a ditadura militar foi fechado o mercado e aí essas empreiteiras conseguiram se desenvolver em obras de pavimentação, de infraestrutura, etc. Conseguiram se tornar médias empresas e depois, quando se abre a conjuntura democrática do Brasil, essas empreiteiras já estão num patamar considerável para concorrer internacionalmente.

Então aconteceu que essas empreiteiras tiveram, embora de uma maneira bem distinta, um período de maturação, porque ficaram só no mercado interno – embora a forma como isso aconteceu seja questionável, porque foi durante a ditadura militar, o que tem de ser levado em consideração. E é isso o que deveria acontecer com a indústria naval, que iria se estabelecer numa conjuntura democrática. Mas nessa ata da comissão parlamentar de inquérito verifiquei esse envolvimento, busquei a história e descobri que eram as mesmas empreiteiras que estavam concorrendo e participando de licitações na nova indústria naval.

Só que o que acontece? As punições foram para as empresas, só que as empresas têm outro patamar: elas têm capital, elas têm condições. E os trabalhadores só têm o CPF, né? Então é uma disparidade, uma desigualdade da relação entre capital e trabalho, e a operação não levou em consideração isso, até porque ela foi desenvolvida de uma maneira atabalhoada. Ela tinha esse viés mais político mesmo, que hoje a gente tem condições de dimensionar depois de ter passado por tudo: por golpe, por mudança do conteúdo local, enfim.

Aí qual é a realidade que a gente tem hoje, passado tudo isso e evidenciado os efeitos políticos [da Lava Jato]: a indústria naval dizimada em todo o país.

Com a eleição do presidente Lula, uma eleição que se deu apesar e a despeito de todas as tentativas de golpe de Estado que foram levadas a cabo, a gente já tem em Rio Grande uma retomava das atividades de reparo em navios. É uma atividade que já foi encerrada novamente, mas até outro dia estavam trabalhando com reparos de navio. Isso gera emprego e renda, dá uma dinamizada [na economia], mas não tem aquele mesmo impacto de se construir uma plataforma, um navio para plataforma. Mas foi importante, gerou 500 empregos diretos e ainda tem todos os empregos indiretos, as terceirizadas, mais o setor de serviço que também é dinamizado… Mas foram só dois meses de trabalho e aí já terminaram, o navio foi entregue esses dias. Então está mais tímido, mas agora, nos primeiros meses de 2023, já voltamos a ter algum movimento, alguma perspectiva, ainda que não se possa fazer planos de longo prazo, porque isso é uma característica da indústria naval, é uma indústria sazonal. Ou seja, são encomendas com começo, meio e fim e o reparo também envolve um prazo mais curto do que fazer um navio FPSO, uma plataforma. Então é uma retomada muito tímida, em outros moldes, mas que está ocorrendo e ainda tem a perspectiva de outros navios chegarem, porque a infraestrutura está lá, enferrujando. Muito investimento foi feito e agora está sendo retomado, ainda que muito aquém do que se esperava, mas está voltando a acontecer no município de Rio Grande.

MLJ: No auge do polo naval na cidade, quantos trabalhadores chegaram a ser empregados diretamente? E hoje, é possível identificar para onde foram essas pessoas no mercado de trabalho?
ANA D’AVILA:
Direta e indiretamente, se tinha 20 mil trabalhadores e trabalhadoras – embora as mulheres fossem um contingente menor, elas estavam lá como soldadoras, montadoras de andaime, no serviço de manutenção… Não é para só aqueles serviços que a sociedade atribui tipicamente para as mulheres, como trabalho de fazer o alimento, fazer o almoço pro estaleiro. Não estavam só na cozinha, embora isso também seja fundamental, mas as mulheres estavam em outras frentes de trabalho que eram costumeiramente delegadas aos homens. Mas se tinha, sim, 20 mil pessoas trabalhando lá, direta e indiretamente.

Até 2016 já tinham sido mandados [embora] várias levas de trabalhadores, aí num dia só, em 12 de dezembro, foram demitidos mais 3,2 mil trabalhadores. Depois disso ficou só serviços como o de segurança patrimonial, que é ínfimo o contingente de pessoas que trabalham para proteger – eram peças muito caras, né? É uma área de uma indústria pesada, então os equipamentos são caros e ficou essa segurança patrimonial; e mais só algumas pessoas na manutenção, porque, embora tudo tivesse sido abandonado, se o estaleiro fosse deixado como a plataforma foi deixada, talvez ele não tivesse nenhuma condição de operar, caso essa possibilidade [de retomada] se consolidasse, como hoje se consolidou.

Recentemente, como comentei, tivemos 500 empregos [criados pela indústria naval], mas eles já foram desmobilizados. E aí o que tu tem são pessoas que vão pra outra área, ficam na informalidade: trabalham de Uber, fazem bico diversos… O número de trabalhadores, que por exemplo, mexem com ferro, serralherias, tudo isso multiplicou na cidade. Mas na indústria naval mesmo, o número de trabalhadores empregados é ínfimo.

MLJ: E as encomendas que a Petrobras tinha feito para o polo de Rio Grande foram todas mandadas para Ásia?
ANA D’AVILA:
Foi, isso. Porque eles já continuaram [a produção das embarcações] lá. Imediatamente, em 2016, já foi tudo exportado para lá essa demanda. Só que aí, qual é a questão: a Petrobras, a gente paga para eles [asiáticos] porque é mais barato. Mas aí a gente não perde só na fabricação, mas na manutenção também, em todos os setores. E foi mandado para lá para terminar as encomendas. Hoje, pelo menos até onde eu sei, não tem uma carteira de encomenda brasileira, feita no Brasil. E também não tem uma previsão de retomada mais substantiva desses investimentos, porque a gente tem que mexer no índice de conteúdo local antes, fazer uma parceria com o banco como o BNDES de novo, e aí tem a questão das empreiteiras… E por que elas [as empreiteiras envolvidas no escândalo dos “navios de papel” e na Lava Jato] são as memsmas? Porque são as únicas que existem no país, então elas logicamente estarão de volta à negociação.

Mas antes precisa de toda uma restruturação da própria política industrial e setorial, avaliar também o prejuízo que foi deixado e, principalmente, o que eu acho que é mais difícil, lutar contra essa mentalidade entreguista, essa coisa de que o Brasil não é capaz de ter a sua própria indústria. Eu acho que esse é o desafio, assim, mais claro, porque não é só uma questão dos políticos, mas da própria população pensar assim, que nós não somos capazes, esse complexo de vira-lata. Eu acho que a mentalidade é um dos principais desafios hoje em dia, embora replanejar essas indústrias seja também um desafio. Eu penso que a manutenção dessa indústria também está ligada com uma mentalidade que precisa mudar, e isso está envolvido numa divisão internacional do trabalho, há interesses internacionais envolvidos na manutenção dessa mentalidade entreguista, dentro do país e fora dele. Então um dos principais desafios está na própria mentalidade da população e dos políticos. A população precisa enxergar que nós somos capazes, tanto que já vivemos essa experiência.

MLJ: E nas entrevistas que você fez, em especial as entrevistas com os próprios trabalhadores, o presidente do sindicato, qual era a visão deles sobre a operação Lava Jato? Alguns deles chegaram a comentar nos depoimentos contigo sobre isso, sobre como tudo o que vinha acontecendo estava impactando na vida deles dentro e fora do estaleiro?
ANA D’AVILA:
Eu questionava o que eles sentiam com relação à Operação Lava Jato. E um dos comentários, daquilo que não foi dito, mas que foi mais decisivo sobre o impacto da Operação Lava Jato, foi o número de entrevistados e entrevistadas que eu perdi. Entrevistas que eu nem cheguei a fazer, porque em alguns contatos prévios, por messenger, até mesmo ligação, as pessoas não queriam me dar depoimento. As entrevistas que consegui foi com um indicando o outro. E uma das pessoas que eu contatei para pedir entrevista me explicou que ela ficou com medo porque… Olha só as coisas do destino: eu sou rio-grandina, mas eu estava na Universidade Federal do Paraná. E a Universidade Federal do Paraná fica em Curitiba, que é a sede da Operação Lava Jato. Então por mais que eu explicasse pra pessoa que era um estudo sociológico, que eu nem ia perguntar sobre Lava Jato, a pessoa dizia que não [daria a entrevista] porque tinha medo, porque iria perder o emprego e tinha família… E isso que eu tinha um termo de consentimento no qual estava explícito os objetivos da pesquisa. Isso até influenciou no número de entrevistados que eu tive, porque as pessoas tinham medo. E quando a Lava Jato, em agosto de 2016, na 33ª fase da operação, entrou lá no estaleiro, aí o meu campo se fechou de uma tal maneira… Porque eu ainda consegui entrevista, só que eram pessoas com muito medo contar coisas básicas, do tipo “como é teu cotidiano”, “o que tu faz quando chega no polo”, “qual o tamanho da tua equipe de trabalho”, “como que estão teus equipamentos”…

Mas nas poucas vezes que consegui tocar nesse assunto, eram pessoas que estavam numa perspectiva bem crítica, falando porque estavam sentindo aquilo na pele, dizendo “olha, essa operação está acabando com o nosso trabalho”, “essa operação está muito esquisita”. Uma das mulheres que entrevistei também foi bem crítica, disse “Olha, até agora eu não tenho uma prova contra o presidente e eles vão prender ele”. Então as pessoas eram mais críticas naquele momento porque elas estavam sofrendo com os efeitos daquilo e isso, os próprios relatos delas, também me levou a essa hipótese de que elas estavam sendo impactadas [pela Lava Jato].

Eu não usei isso na minha pesquisa, mas tenho na transcrição das entrevistas as pessoas contando que estavam na iminêncioa de perder o emprego por causa da Operação Lava Jato, na perspectiva delas. Alguns defendiam [a operação], diziam que tinha tido roubalheira. Aí eu pedia para contar, elas citavam algumas questões pontuais que achavam que tinha acontecido, mas era interessante porque eles também se sentiam receosos, se sentiam, assim, injustiçados, porque “ah, a gente não tem nada a ver com isso e agora está sofrendo com a possibilidade de não ter onde trabalhar”, sabe?

Então tinha posicionamentos críticos, tinha posicionamentos que começavam a favor da operação, mas depois avaliavam sua própria condição ali, o que ia acontecer com as suas próprias vidas e também ficavam assim [receoso]… Então não não era unânime a defesa, porque eles estavam sentindo no cotidiano [os impactos das investigações]. Às vezes não relacionava diretamente, mas quando começava a questionar essas situações, que eram atuais na época, acabavam aparecendo.

MLJ: E é algum exagero dizer, no caso do polo naval de Rio Grande, para ficar no escopo da tua pesquisa, que os trabalhadores foram os maiores prejudicados pelo resultado das investigações da Lava Jato, no final de toda essa história?
ANA D’AVILA:
Com certeza não é exagero algum, porque eu estive no sindicato no período mais difícil e vi casos de trabalhadores desesperados, com currículo na mão e até achando que eu tinha condições, porque eu estava sempre por lá, geralmente eu andava bastante por lá pelo sindicato pra fazer entrevista ou pra fazer observação e pra tocar pesquisa, e pessoas desesperadas pediam emprego até pra mim, que não não tinha condições. Um desespero ia tomando conta da população, porque não era só a perda do emprego: muitas pessoas, pela primeira vez, tiveram um salário melhor na sua vida nessa indústria. O perfil era de trabalhadores com ensino médio, sabe? Pessoas que não teriam possibilidade de ganhar tão bem quanto em outros setores, não teriam como retomar aquilo, que representou uma melhoria de vida. E não foi só o trabalho: no polo tinha a política de financiamento do imóvel pelo Minha Casa Minha Vida; tinha a política pra financiamento do automóvel com IPI reduzido. Alguns entrevistados falavam dessa melhoria como um todo na sua condição de vida, tinha gente que falava “e agora, como é que eu vou pagar a minha casa, que está financiada?”. “Ah, eu comprei um carrinho. Como é que vou continuar?”. Então as pessoas ficaram desesperadas, porque tinham adquirido uma perspectiva de ter uma vida melhor, né? Uma condição de ter uma casa própria, de ter um automóvel, enfim. E aí aquilo tinha se desfeito da noite pro dia e não teria uma perspectiva de recuperação. Não existia, sabe [perspectiva de retomada]?

Então eu afirmo, com base na pesquisa e com base na minha vivência enquanto pesquisadora, de que o impacto pra essas pessoas [dos efeitos da Operação Lava Jato] foi descomunal. Muitas das pessoas que eram de Rio Grande ficaram lá, foram buscar outros trabalhos precários pois não tinha para onde voltar e já não tnha o comércio com aquelas plaquinhas de “precisa-se e vendedor” ou “precisa-se de cozinheiro”. Agora as plaquinhas mudaram: era de “vende-se” e aluga-se”, porque os empreendimentos fecharam e o que restava agora era o desemprego. O que havia era uma falta de perspectiva e de desespero e esses trabalhadores foram jogados [fora], sabe?

Isso foi muito forte na minha experiência enquanto pesquisadora e para todo mundo que viveu o polo naval de Rio Grande, porque depois eu continuei a pesquisar oos trabalhadores, para saber o que eles foram fazer. Por isso que eu também tenho alguma propriedade pra saber o que que aconteceu, então essas pessoas foram trabalhar em comércio, às vezes da família; trabalhar como Uber; trabalhar como serralheiro; mas nada comparado ao que eles tinham, e não só em relação ao salário, mas também aos direitos que eles tinham.

Esses trabalhadores eram assalariados, tinham vários direitos, registro em carteira e tudo. Então quem era de fora teve de voltar pra sua região e aí também recomeçar a vida, geralmente num trabalho precário, porque o país todo estava afetado [pela crise econômica]. Como os estaleiros estavam sendo desativados de norte a sul, não foi só Rio Grande que foi impactado: é um número imenso de trabalhadores que foi jogado de volta no mercado de trabalho numa crise que não os absorvia.

Então, na minha perspectiva, o maior prejudicado foi a classe trabalhadora desse país e isso não foi tratado em nenhum momento. A mídia sempre deu um enfoque mais pra política, que era importante até pela figura do presidente Lula, que estava envolvido. Mas eu penso que precisa, sim, contar essa história a partir do viés daqueles que não tem voz, sabe? Precisamos marcar o lugar dessas pessoas na história, essas pessoas que fizeram a história dessa última indústria naval e como que elsa foram tratadas. É fundamental falar um pouco da nossa cultura política no Brasil, a forma como os trabalhadores e as trabalhadoras são tratados aqui.

Eu acho que isso tudo também evidencia mais uma característica de como a política é conduzida e para quem que ela é pensada, né? Porque ao falar de tudo isso, é evidente que os interesses das empresas e de quem estava mais diretamente envolvido [nos escândalos de corrupção] conseguiu ser resolvido. Mas o pensamento está aí nessas outras pessoas: e aí, como é que faz pra pagar a casa? Como que faz? Entrega o automóvel? Vende o automóvel? Porque as pessoas adquiriram dívidas com uma perspectiva de longo prazo. Mesmo a indústria naval sendo sazonal – em dois anos, dois anos e meio eles terminavam a plataforma, terminava aquele serviço e trabalhadores eram desligados -, num curto prazo eles já ficavam com o seguro e depois voltavam. E agora não tinha mais isso. Então eu pensei que seria legítimo tentar colocar essas pessoas na história, porque elas já estão lá, só precisa que quem tem esse privilégio, como eu por ser pesquisadora, dê uma ênfase maior.

Foi muito difícil contar essa história. Na defesa da minha tese um professor até comentou que “ah, para ti deve ter sido fácil, porque a Sociologia sempre trabalha com essas questões mais críticas”, estamos sempre contando a história de algum desmando político, principalmente na Sociologia do Trabalho. Mas isso não é verídico porque a gente não necessariamente quer contar isso. Eu não comecei a pesquisa pensando que eu ia contar essa história. Eu comecei, pensei que seria uma pesquisa sobre as condições de trabalho, comparando com a indústria internacional. Mas eu não imaginava que uma operação de combate à corrupção fosse envolver a indústria e fosse dizimar essa indústria, porque poderia muito bem ter acontecido como foi quando a Samsung, o estaleiro da Samsung [Samsung Heavy Industries, localizado na Coreia do Sul], se envolveu em corrupção: eles combateram os responsáveis por essa corrupção e o estaleiro continua funcionando.

Agora, aqui o que fizeram foi punir os pobres, punir a classe trabalhadora. É como se a classe trabalhadora fosse um inimigo interno, sabe? E eles nem tiveram condições de pensar nisso, porque foi um processo muito intenso. Hoje talvez eles pensem na forma como foram tratados os trabalhadores e as trabalhadoras. É como se eles fossem o inimigo interno. “tem que desmantelar logo esse povo porque vai que eles tenham consciência do papel que eles desempenharam na história”. E aí um pouco do meu esforço é justamente tentar não colocar eles nesse lugar da história, porque eles já estão lá, mas fazer mais um esforço para evidenciar isso tudo.