José Henrique de Faria*

Lawfare é uma forma de guerra jurídica híbrida, realizada com suporte midiático e a partir do uso distorcido do aparato normativo-legal com o intuito de defender interesses objetivos específicos (econômicos, políticos, ideológicos e sociais) de uma classe social e/ou de determinadas frações de classe. Embora seja uma prática processual dirigida contra pessoas (lideranças) e grupos sociais, seu alvo é o que essas pessoas e grupos representam, ou seja, seus vínculos a projetos materiais econômicos, políticos, sociais, ideológicos e culturais. Esse é o teor da Operação Lava Jato, que resultou na prisão arbitrária do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do processo que resultou no golpe parlamentar contra a Presidente Dilma Rousseff e de processos ocorridos no Equador e no Peru. E é exatamente o mesmo teor do que está ocorrendo na Argentina, com a Vice-Presidente Cristina Kirchner – sendo que, no caso específico da Lawfare desencadeada contra Dilma Roussef e Cristina Fernández de Kirchner, trata-se também de uma violência de gênero1.

Lawfare consiste, portanto, na perseguição política por meio do sistema de justiça e, ao mesmo tempo, em um tipo de guerra não convencional que, justamente por isso, em geral não é percebida pela sociedade como uma guerra, e sim como um processo jurídico em que pessoas e grupos são julgados pelo envolvimento em ações ilegais, criminosas. Com o apoio decisivo da mídia, a Lawfare não se apresenta tal como é, ou seja, como uma forma de guerra jurídica, mas como se fosse um processo constitucional, legal e legítimo do Estado de Direito.

De fato, a expressão Lawfare tem sido usada pela mídia como um processo meramente jurídico e não como sendo uma forma de guerra na qual o direito é usado como arma (uma guerra baseada no uso de normas jurídicas como um instrumento que substitui a força armada tendo em vista a realização de objetivos políticos, econômicos e sociais). Ainda que se caracterize pela utilização da lei e dos procedimentos normativos do Estado por parte de agentes do sistema público de justiça para perseguir pessoas e organizações declaradas como “inimigos políticos” (com diferentes predicados), que representam interesses opostos àqueles dominantes, Lawfare não é uma guerra apenas jurídica, mas igualmente política, econômica e ideológica.

Na realidade, os protagonistas da Lawfare são operadores do sistema de justiça que atuam em sintonia com interesses do sistema internacional de capital, com a finalidade de garantir a prevalência de objetivos específicos, valendo-se de uma construção fraudulenta do pensamento jurídico de forma a dar uma expressão pública de que se trata de atingir fins politicamente relevantes, tais como combate à corrupção, transparência, justiça, etc. Nesse sentido, Lawfare é, de fato, a expressão da ausência do Direito em um Estado de Direito.

Na guerra desencadeada contra a Vice-Presidente argentina Cristina Kirchner, o Tribunal Oral Federal nº 2 da Argentina anunciou, no início de dezembro de 2022, a decisão de condená-la no caso Highway (conhecido como “Causa Vialidad”), juntamente com outros doze réus, a seis anos de prisão e uma inabilitação especial perpétua para o exercício de cargos públicos. A inabilitação para o exercício de cargos públicos não é um detalhe, mas uma decisão que tem por referência exatamente a Operação Lava Jato. Os juízes Andrés Basso, Jorge Gorini e Rodrigo Giménez Uriburu condenaram Cristina Kirchner pelo suposto delito de “administração fraudulenta em detrimento da administração pública”2.

Como informa o site Monitor Mercantil3, Cristina Kirchner havia anunciado, numa entrevista concedida em dezembro de 2019, que a sentença já estava escrita desde a primeira vez que testemunhou no julgamento, afirmando que garantias constitucionais foram violadas, entre outras irregularidades durante o processo. Na última audiência, ela qualificou o tribunal como um “pelotão de fuzilamento” que já tinha uma sentença escrita para fatos inexistentes nos quais buscava “estigmatizar um espaço político”.

Para o articulista Luís Gomes, “o processo é marcado por relações suspeitas entre juízes, promotores e imprensa”4. Cristina Kirchner “foi condenada pela acusação de ter chefiado uma organização criminosa que teria desviado dinheiro de obras públicas realizadas na província de Santa Cruz, berço político dela e do falecido ex-presidente Néstor Kirchner, para favorecer o empresário local Lázaro Báez”. Entretanto, a Vice-Presidente denunciou que isso fazia parte do processo legal (perseguição judicial) contra ele. Cristina também era acusada por associação ilícita, mas foi inocentada.

A acusação alegou que os 12 anos de governos Kirchner (Néstor e Cristina) concentraram os recursos de 51 obras públicas no empresário Báez, que foi efetivamente o maior destinatário de recursos públicos em Santa Cruz. Entretanto, considerando a totalidade dos recursos aplicados em obras públicas nos governos Kirchner, empresários ligados à oposição e à Macri receberam somas muito superiores. Além disso, todas as contratações passaram por processos licitatórios controlados por órgãos de fiscalização e todos os procedimentos para designação de obra pública foram aprovados pelo Congresso, o que significa que todos os recursos pagos à empresa acusada de desviar dinheiro público foram votados e aprovados no orçamento pelo Congresso. Essa questão, contudo, foi omitida no processo de condenação.

Conforme Luís Gomes, Gustavo Veiga, jornalista e professor da Universidade de Buenos Aires (UBA) e da Universidade Nacional de La Plata (UNLP), aponta que “a condenação era previsível diante do contexto em que o caso foi construído”, no qual ela é vítima do “partido judicial”. “Politicamente, é algo similar ao que aconteceu com Lula, no Brasil, com Rafael Correa, no Equador, e com outros presidentes da América Latina”.

Num escândalo que recorda a série de reportagens da Vaza Jato, o jornal “Página 12” apresentou “mensagens de um grupo privado de Telegram em que juízes, ex-agentes de inteligência, políticos oposicionistas e empresários combinavam para esconder as provas de uma viagem em um voo fretado para um encontro na casa de um bilionário britânico na localidade de Lago Escondido, na Patagônia argentina. As mensagens revelam que entre os participantes estava o juiz federal Julián Ercolini, que foi responsável por conduzir o processo contra Cristina.

Os interesses em jogo são mais do que evidentes.

Para o jornalista brasileiro Daniel Oiticica, há vários “escândalos” que colocam em suspeição as autoridades responsáveis pelo processo, como justamente o caso do encontro secreto. Outro exemplo é o fato de que “um dos juízes responsáveis pela condenação, Rodrigo Giménez Uriburu, é colega de time de futebol de um dos promotores responsáveis pela acusação, Diego Luciani. Ambos participam de um time amador chamado Liverpool. E, além disso, parte dos jogos da equipe foram realizados ao longo dos anos no sítio do ex-presidente Maurício Macri, um dos principais nomes da oposição ao governo de Alberto Fernández”.

Outro ponto no processo é o fato de que “a acusação alegou que Cristina viajou para Santa Cruz em 30 de novembro de 2015 para se encontrar com Báez com o intuito de destruir provas de corrupção. No julgamento, a acusação teria inclusive usado imagens de um avião que estaria sendo usado por Cristina. Contudo, no dia em que a reunião teria ocorrido, a vice-presidente participou de um evento público em outra província, Rio Negro, que foi transmitido ao vivo para todo o País”.

Não importam os fatos, mas os argumentos e as convicções.

Como nos casos do Golpe Parlamentar e da Operação Lava Jato, o processo e as condenações não prosperariam sem o suporte da mídia. No caso de Cristina Kirchner, após a confirmação da condenação, o resultado foi divulgado em tom de celebração pelo principal grupo de imprensa do país, o Clarín, que juntamente com outros órgãos de imprensa tiveram relações empresariais diretas com a ditadura argentina e sempre representaram interesses de classe. Para Gustavo Veiga, “essa sociedade permitiu ao grupo Clarín, por exemplo, a compra de papel a um preço subsidiado. O grupo começou a comprar cada vez mais empresas concorrentes e se constituiu em um poder de fato, que começa a apoiar aqueles que lhe dão benefícios estatais (…). Quando o governo Cristina começa os enfrentamentos com o Clarín, o poder econômico do grupo já estava consolidado”.

Para Oiticica, “os enfrentamentos com a imprensa estão ligados, entre outras coisas, ao fato de que o governo de Cristina aprovou a Lei de Meios, que ficou famosa no Brasil e é citada como exemplo para democratizar o controle do mercado de audiovisual do Brasil, mas ela nunca foi colocada em vigor. No governo Cristina, decisões judiciais impediram que ela fosse implementada e, quando Macri chegou à presidência, ele anulou a legislação. Não existe lei de mídia funcionando na Argentina e o espectro é totalmente dominado por dois grupos de comunicação que são antigoverno”. Obviamente, sempre antigoverno popular e com projetos sociais.

Conforme aponta o site 2475, a vice-presidente afirma que está sendo condenada por “um estado paralelo, uma máfia judicial” por conta dos seus triunfos eleitorais nos últimos anos, inclusive o de 2019, em que conseguiu reerguer o peronismo na chapa com Alberto Fernández, em um momento em que não se esperava tal reviravolta. “Não vou submeter a força política que me deu a honra de ser duas vezes presidente e vice-presidente a ser maltratada com ‘candidato condenado’, com ‘inabilitação perpétua’, com ‘administração fraudulenta do Estado'”, disse ainda Kirchner, afastando a possibilidade de vir a participar das eleições de 2023.

A condenação de Cristina é a condenação de um governo popular. E a luta contra essa forma de guerra híbrida exige que seus meandros, procedimentos, métodos e formas de execução sejam amplamente expostos e denunciados. Só é possível entender essa guerra jurídica tensionando seu processo histórico constitutivo, encontrando suas raízes e seus nexos causais e expondo as bases históricas ontopráticas da Lawfare. Em outros termos, é necessário analisar a forma de organização do Estado Capitalista e como esse Estado articula as relações políticas do sistema de capital de acordo com os interesses desse sistema e de sua produção e reprodução.

Ao contrário da concepção contratualista, que sugere que o Estado de Direito é fruto de um grande Contrato Social, é preciso insistir no argumento de que a história da sociedade sempre foi a história da luta de classes e que o Estado não é o resultado de um acordo ou de uma coesão social. O Estado é sempre resultado de uma luta de classes. Mas a luta de classes fundamental não encerra em si os diferentes e específicos conflitos entre segmentos e frações de classes.

Em outros termos, tendo como campo empírico imediato os casos do Golpe Parlamentar e da Operação Lava Jato no Brasil, o caso da condenação de Cristina Kirchner na Argentina, o caso de Rafael Correa no Equador, e os casos com outros presidentes da América Latina, é urgente considerar a Lawfare não como uma guerra híbrida abstrata, mas como uma guerra que se organiza no interior do Estado Capitalista e, portanto, no bojo de seus movimentos e de suas contradições históricas.

Lawfare é muito mais do que uma guerra contra personagens. É uma guerra contra os projetos que elas representam.

*Professor Doutor José Henrique de Faria (UFPR)
Graduação em Ciências Econômicas pela Faculdade de Administração e Economia FAE-PR (1974), Especialização em Política Científica e Tecnológica pelo IPEA/CNPq (1983), Mestrado em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – PPGA/UFRGS (1979), Doutorado em Administração pela Universidade de São Paulo- FEA/USP (1984), Pós-doutorado em Labor Relations pelo Institute of Labor and Industrial Relations – ILIR – University of Michigan (2003). Autor de 11 Livros, 50 Capítulos de Livros, mais de 70 Artigos em Revistas Científicas e mais de 70 Artigos em Anais de Eventos Científicos. Orientador de 10 Doutores, 46 Mestres e 2 pós-doutorados. Professor Titular Sênior da UFPR, no Programa de Pós-Graduação em Administração – PPGADM (Mestrado e Doutorado). (Até dezembro de 2020) Pró-Reitor de Planejamento, Orçamento e Finanças (1990-1994) da UFPR. Reitor (1994-1998) da UFPR. Pesquisador Pq/CNPq (até 2020). Professor Visitante da Universidade Federal Tecnológica do Paraná – Programa de Pós-graduação em Administração. ORCID: orcid.org/0000-0003-3971-7992 Pesquisador nas Áreas de Economia Política do Poder em Estudos Organizacionais e de Epistemologia Crítica do Concreto, Metodologia e Teoria. Membro da Red de Estudios Organizacionales de Latinoamérica (Até dezembro de 2020). Orientador de Mestrado e Doutorado. Líder do Grupo de Pesquisa Economia Política do Poder e Estudos Organizacionais – EPPEO, UFPR/CNPq (desde 2002). Fundador da Sociedade Brasileira de Estudos Organizacionais – SBEO. Presidente da SBEO (outubro/2018 – dezembro/2020)

1 Ver o artigo “Violência de Gênero e Lawfare: uma análise dos casos Dilma Rousseff e Cristina Fernández de Kirchner”, de Indiana Rocío Azar (Universidad Nacional de Tres de Febrero, Argentina) e de Luiza Tavares da Motta (Droit du Patrimoine, Université de Poitiers, França), em https://revistaresenha.emnuvens.com.br/revista/article/view/117.

2 Os juízes também proferiram outras sentenças para os demais réus, com seis anos de prisão para Lázaro Báez, José López e Nelson Periotti; cinco anos para Juan Carlos Villafañe; quatro para José Santibañez e Mauricio Collareda; quatro e seis meses para Raúl Pavesi, entre outros.

No entanto, absolveram a vice-presidente, Lázaro Báez, José López e Nelson Periotti do crime de associação ilícita.

3 https://monitormercantil.com.br/mais-um-caso-de-lawfare-cristina-kirchner-e-condenada-a-6-anos-de-prisao/#

4 https://sul21.com.br/noticias/internacional/2022/12/condenacao-de-cristina-kirchner-e-muito-mais-escandaloso-do-que-o-lawfare-contra-lula/

5 https://www.brasil247.com/americalatina/cristina-kirchner-reage-ao-lawfare-e-diz-podem-me-prender?amp