Moro e a Justiça Seletiva: Uma Análise das Contradições Temporais
A carreira política do senador Sergio Moro apresenta tradições significativas que revelam uma aplicação seletiva dos critérios de responsabilidade, especialmente na forma como ele lida com os bilhões em fraudes no INSS e com os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023. Esta análise mostra como as declarações públicas do ex-ministro diferem drasticamente das evidências documentais disponíveis, indicando uma inversão na cronologia dos fatos que serve a interesses políticos específicos.
A Inversão de Responsabilidades nas Fraudes do INSS
Após ser eleito senador com o apoio do governo Bolsonaro, Sergio Moro atribui as fraudes investigadas no INSS a “mudanças aprovadas pelo governo [Lula]” e afirma que as irregularidades foram causadas pela aprovação de alterações legislativas que teriam flexibilizado os critérios para concessão de refeições, supostamente favorecendo entidades “politicamente alinhadas ao atual governo.” No entanto, essa narrativa é diretamente contradita pela cronologia factual estabelecida nos relatórios investigativos do Intercept Brasil.
Evidências documentais demonstram que a estrutura de proteção à Confederação Nacional de Agricultores Familiares e Empreendedores Familiares Rurais (Conafer) foi construída e operacionalizada durante o governo Bolsonaro, período em que Sergio Moro ocupava um cargo ministerial. O primeiro movimento significativo ocorreu em 2020, quando o INSS inicialmente questionou e suspendeu a atuação da Conafer, apenas para reativá-la posteriormente. Essa suspensão seguida de reabilitação já indicava a existência de mecanismos internos de proteção à entidade.
Entre outubro e novembro de 2020, uma série de decisões administrativas foi tomada, consolidando a proteção à Conafer. Além disso, a diretoria responsável por investigar a entidade perdeu a fiscalização sobre suas atividades por decisão do então presidente do INSS, Leonardo José Rolim, nomeado durante o governo Bolsonaro. Um mês depois, o próprio Rolim liberou os recursos financeiros para a confederação. A temporalidade e a sequência dessas decisões sugerem uma estratégia coordenada de blindagem, embora Rolim tenha posteriormente defendido que a mudança se deu por uma reestruturação organizacional e que a liberação dos recursos visava evitar ações judiciais.
A Construção Institucional da Impunidade
Ambos os eventos ocorreram durante o governo Bolsonaro, e a investigação da Polícia Federal teve início em junho de 2021 com a abertura de inquérito no mesmo ano. Ironicamente, foi justamente durante esse período ativo de apuração que os mecanismos internos de defesa da Conafer foram reforçados. José Carlos Oliveira, então diretor de benefícios do INSS, criou em agosto de 2021 uma comissão interna para “apurar” as suspeitas envolvendo a confederação. Na prática, essa iniciativa funcionou como um mecanismo de legitimação interna da entidade, contribuindo para sua blindagem institucional.
Essa comissão foi liderada por Jucimar Fonseca da Silva, cuja trajetória política é particularmente relevante: ele ocupou o cargo de vice-presidente do PR (atual PL) entre 2013 e 2016, antes de se mudar para a República Democrática do Congo em 2020. Ao final do governo Bolsonaro, em agosto de 2022, a comissão concluiu que não havia “risco grave e nem iminente” nos descontos realizados pela Conafer.
Importante destacar que esse parecer baseou-se em uma amostragem fornecida pela própria entidade investigada, o que compromete seriamente a integridade do processo. O relatório acabou sendo utilizado pelo presidente da confederação como instrumento para tentar evitar a prestação de informações à Polícia Federal.
As falhas metodológicas e os evidentes conflitos de interesse nessa “investigação” tornaram-se ainda mais evidentes quando, em abril de 2025, Jucimar foi preso sob suspeita de envolvimento direto nas fraudes.
Trajetórias Ascendentes e Transações Suspeitas
Talvez o aspecto mais revelador dessa cronologia seja a ascensão de José Carlos Oliveira. O responsável por criar a comissão que “inocentou” a Conafer internamente foi posteriormente promovido à presidência do INSS e, mais tarde, nomeado Ministro do Trabalho e Previdência no governo Bolsonaro.
Essa trajetória ascendente não apenas recompensou quem havia contribuído para a proteção institucional da confederação, como também indicou que suas ações foram reconhecidas e aprovadas pelas instâncias superiores. A promoção de Oliveira, em meio a indícios de blindagem e conivência, sugere um sistema em que os mecanismos de apuração eram usados não para responsabilizar, mas para legitimar práticas suspeitas dentro da administração pública.
A Dimensão Financeira Suspeita da Rede de Proteção
A dimensão financeira suspeita dessa rede de proteção foi exposta quando o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) identificou transações atípicas entre José Carlos Oliveira e o presidente da Conafer. Essa descoberta acrescenta um possível componente de corrupção material à já evidente proteção institucional concedida à entidade, sugerindo que os benefícios da blindagem podem ter se estendido além do âmbito meramente administrativo.
As transações suspeitas reveladas pelo Coaf indicam que a relação entre autoridades públicas e a Conafer pode ter envolvido vantagens pessoais, comprometendo ainda mais a credibilidade dos processos internos de fiscalização e expondo um possível conluio entre agentes estatais e privados em prejuízo do interesse público.
A Magnitude Temporal e Financeira da Fraude
A cronologia financeira da fraude desmente diretamente as alegações de Sergio Moro sobre uma suposta vinculação do esquema ao atual governo. De acordo com os relatórios, a Conafer operou o esquema fraudulento por quase cinco anos, desviando mais de R$ 688 milhões em prejuízos relacionados a aposentadorias.
Considerando que a investigação da Polícia Federal teve início em 2021 e seguiu até 2025, uma parte significativa desses recursos foi desviada entre 2021 e 2022 — durante o governo Bolsonaro. Esses dados enfraquecem a narrativa de Moro ao demonstrar que a base e o auge da operação ocorreram sob a gestão que ele integrou como ministro, o que coloca sob suspeita seu discurso de responsabilização seletiva e reforça o argumento de proteção institucional à Conafer naquele período.
Em uma declaração oficial, o INSS competente reconheceu de forma inequívoca que “esses descontos vinham ocorrendo em governos anteriores”, confirmando que a estrutura fraudulenta antecedia o governo atual. Essa admissão institucional deixou ainda mais claro que Moro havia mentido em suas declarações públicas.
Seleção no Uso dos Critérios de Responsabilização
A diferença entre as posições de Moro e sua postura em relação aos eventos de 8 de janeiro de 2023 é ainda mais evidente. O senador declarou publicamente, em fevereiro de 2025, que era “a favor da anistia para os invasores”, descrevendo-os como “pobres coitados que erraram e se excederam por paixão política, mas não são criminosos.” Essa posição revela uma aplicação dramaticamente seletiva dos critérios de responsabilização.
Ao demonstrar complacência em relação a ações que levaram à invasão e depredação dos três Poderes — eventos que ameaçaram diretamente a ordem democrática —, Moro atribui responsabilidade criminal e política ao governo atual por fraudes que, segundo as evidências disponíveis, foram planejadas e executadas durante o governo do qual ele próprio participou. Essa dicotomia implica que seus critérios de responsabilização se baseiam em alinhamentos políticos, e não na gravidade das ações ou nas evidências factuais.
O Contexto Político da Tradição
É necessário compreender a posição de Moro à luz de sua trajetória pós-Lava Jato e de sua crescente aliança com grupos políticos ligados ao bolsonarismo. Sua defesa dos invasores do 8 de janeiro e sua tentativa de atribuir ao governo Lula fraudes documentadas que ocorreram durante a gestão Bolsonaro são componentes de uma estratégia política mais ampla, que visa desviar responsabilidades e construir narrativas favoráveis aos setores que atualmente compõem sua base de apoio.
Essa estratégia torna-se especialmente problemática quando se considera que as fraudes no INSS representam um prejuízo financeiro bilionário direcionado contra beneficiários vulneráveis, como pensionistas e aposentados, que dependem fortemente desses recursos para sua sobrevivência. Uma forma particularmente grave de irresponsabilidade política é a tentativa de politizar e desviar a atenção desses crimes — especialmente por parte daqueles que ocupavam posições de privilégio no governo justamente no período em que deveriam ter sido estabelecidos mecanismos de proteção contra os fraudadores.
A Força da Credibilidade Institucional
A análise das narrativas apresentadas por Sergio Moro revela uma preocupante ausência de coerência na aplicação dos critérios de responsabilização, o que ultrapassa questões meramente partidárias e atinge diretamente a legitimidade das instituições democráticas. O resultado é a erosão da confiança pública nas instituições e na possibilidade de uma aplicação imparcial da justiça, especialmente quando um ex-ministro da Justiça — figura que simbolizou o combate à corrupção no país — defende fatos demasiadamente evidentes e faz críticas desprovidas de compromisso com a responsabilidade.
As evidências apresentadas nas reportagens do Intercept Brasil não deixam margem para dúvidas: a estrutura que viabilizou a fraude bilionária da Conafer foi construída, operacionalizada e protegida durante o governo Bolsonaro, com a participação direta de prestadores de serviço nomeados e promovidos dentro dessa administração. Ignorar a documentação disponível e tentar transferir essa responsabilidade para o governo sucessor não é apenas uma distorção da verdade factual, mas também um instrumento político de justiça que fere os fundamentos do Estado Democrático de Direito.
Como resultado, a tradição de Moro vai além de seu envolvimento político e partidário imediato, tornando-se um exemplo emblemático dos perigos representados pela politização seletiva da justiça e pela aplicação instrumental dos critérios de responsabilização. Em uma democracia soberana, a responsabilidade deve estar ancorada em fatos e ser aplicada de forma coerente, independentemente de alinhamentos políticos. O caminho trilhado por Moro propõe um afastamento progressivo dessas ideias fundamentais, o que pode ter sérias repercussões para a integridade do sistema democrático brasileiro.
REFERÊNCIAS: