Professor da USP e da FGV, o cientista político Fernando Limongi concedeu recentemente uma entrevista exclusiva ao Museu da Lava Jato. No bate-papo, o pesquisador comentou sobre o seu mais recente trabalho, o livro “Operação Impeachment: Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato”, obra que analisa os movimentos que proporcionaram a quebra da coalizão política que sustentou os primeiros governos do Partido dos Trabalhadores (PT).

No centro do argumento do livro está a ideia de que presidentes não são criaturas frágeis, expostas ao risco de cair por qualquer motivo. “Impeachments são e devem ser processos excepcionais”, diz o autor, destacando que para afastar um presidente, apenas a vontade da oposição não basta – afinal, é preciso dois terços dos votos dos parlamentares tanto na Câmara quanto no Senado para prosseguir com o processo de impedimento.

Na obra, então, Limongi mostra como a coalização que governou o Brasil desde a primeira eleição de Lula acabou derretendo, recordando inclusive de episódios ocorridos ainda no começo do primeiro mandato de Dilma, quando a presidente fez trocas em ministérios e mudanças na diretoria da Petrobras, abraçando o discurso anticorrupção.

Esses episódios são importantes porque mais tarde vão criar um contexto favorável para o surgimento da Operação Lava Jato, uma investigação que foi transformada em projeto político por membros do Ministério Público Federal (MPF) que falavam em “refundar a República” e queriam reforçar o papel tutelar do MPF frente não só aos políticos, mas ao próprio eleitorado.

Abaixo, você confere a entrevista com Limongi, na íntegra. Já o livro do cientista político pode ser adquirido on-line e está disponível tanto em formato físico como digital (e-book).

MUSEU DA LAVA JATO: Professor, seu livro, logo nos primeiros parágrafos, recorda alguns acontecimentos ainda do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff. O senhor, inclusive, defende que é fundamental que olhemos para o primeiro mandado de Dilma para entender o processo de impeachments que ocorreu na sequência. Afinal, o que é importante a gente olhar para esse período e também quais os detalhes que costumam ser esquecidos das análises que rememoram aqueles tempos?
FERNANDO LIMONGI:
Então, eu acho que é importante ressaltar que a investigação que foi o centro da Lava Jato envolve diretores da Petrobras ou atividades da Petrobras que ocorreram durante o primeiro e o segundo mandato do governo Lula e que tem por alvo diretores da Petrobras que foram demitidos pela Dilma logo no início do seu primeiro mandato. Todos os quatro diretores [Paulo Roberto Costa, Nestor Cerveró, Jorge Zelada e Renato Duque] que foram investigados, que estiveram no centro das investigações, foram demitidos quando a Graça Foster participou da presidência da Petrobras. A Dilma anuncia uma limpeza, ela fala que haviam práticas que desvirtuaram a Petrobras e que era preciso resgatar a própria Petrobras e a gestão. E essa intervenção da Dilma nas diretorias da Petrobras é crucial para entender tudo que vem depois.

MLJ: Sempre que se fala de impeachment, uma situação que é muito recordada são as manifestações de junho e julho de 2013. Na tua avaliação, qual foi o papel também desses movimentos sociais no contexto de crise política que o país enfrentou e nos processos jurídicos que desenrolaram a partir de 2014?
LIMONGI:
O combate à corrupção estava na mesa, estava na agenda, sobretudo depois do julgamento do Mensalão, um caso que ocorre no primeiro governo do Lula, mas cujo julgamento pelo Supremo só vai ocorrer no primeiro mandato da Dilma. A Dilma é que é fustigada pelo Mensalão e tem toda essa exposição do combate à corrupção que vai entrar na agenda. Aí vai fustigar, vai corroer as bases de apoio do governo do PT, que já haviam sido corroídas pela eclosão do caso.

Então você tem um caldo de cultura ali que é o combate à corrupção, o resgate da moralidade pública na administração, tudo isso está em jogo ali. E em 2013 essa é uma das questões que vai organizar ou estruturar todas aquelas manifestações. São manifestações claramente heterogêneas, né? Não estão dominadas quer pela esquerda, quer pela direita. É um caldo de manifestações, inclusive tem uma série de movimentos que estão sendo organizados ali. O Passe Livre é um deles, mas não é o maior – pelo contrário, é um dos pequenos. Mas os eventos relacionados às manifestações do Passe Livre é que acabam criando todo aquele evento.

Esses eventos estão ligados a manifestações, organizações em que a esquerda perde o monopólio das ruas e organizações de combate à corrupção, mais ligadas à direita, começam a ascender, ganhando apoio popular pedindo maior moralidade pública e mais tarde participando do movimento pelo impeachment.

MLJ: Teu livro também mostra como o próprio governo Dilma chega a tentar se associar ao discurso anticorrupção, capitalizar politicamente com esse movimento. É possível o que havia de genuíno nesse movimento?
LIMONGI:
Aí tem uma questão de perspectiva, em primeiro lugar. A forma como eu vejo esses movimentos é do ponto de vista das suas estratégias, e estratégia leva sempre em conta o resultado final. Se você pensa em um movimento genuíno, você está pensando em algo que é principista, que não faz concessões e tudo aquilo que ele quer é imediato, né? Ele não calcula a reação. Eu acho que nenhum ator político é principista ou age do ponto de vista desses valores supremos e inegociáveis. Então nada é genuíno nesse sentido, tudo é estratégico. Então a Dilma está considerando estrategicamente o combate a corrupção como uma arma política, como uma forma de se distinguir no mercado político.

A Lava Jato vai estar fazendo o mesmo, né? Ela tem um projeto político, ela tem uma visão do como deve ser a sociedade e ela está usando o caso dela, o caso específico da Petrobras e daqueles diretores que praticaram atos ilícitos e transformando esse processo em um projeto de cunho político de combate à corrupção. Veja que tem uma passagem aqui que pouca gente chama atenção, que é: a Lava Jato tinha um caso concreto para investigar, tinha um mandato pra investigar a Petrobras em determinado períodos e com determinados atos. Mas a Lava Jato também se pretende muito mais do que isso: se pretende ser um projeto de combate à corrupção, de eliminação da corrupção no Brasil e etc. Então isto é um projeto político e que usa de um caso específico pra se catapultar.

A Lava Jato foi muito hábil do ponto de vista político em transitar entre esses dois momentos o tempo inteiro, entre o caso concreto que estava investigando
e o projeto de combate à corrupção.

A Dilma, por sua vez, permite que a Lava Jato se constitua durante o seu primeiro governo porque, num primeiro momento, ela está usando a Lava Jato pra atacar seus inimigos políticos, sejam eles membros do PT, sejam eles membros dos partidos coligados ao PT, como, por exemplo, o PMDB. Então ela está permitindo que a investigação corra. Ela tinha poderes e meios para impedir que a investigação prosseguisse, bastava um ou outro deslocamento, desautorizar esse, manda realocar aquele e a Lava Jato estava desmontada.

Pouca gente analisa, por exemplo, a decisão fundamental que deu lugar ao desenvolvimento da Lava Jato, que foi a decisão do ministro Teori Zavascki – depois referendada pelo próprio Supremo – de permitir que… Primeiro, é concretamente se o Paulo Roberto Costa, que é o primeiro ex-diretor da Petrobras que vai preso na Lava Jato, se ele poderia permanecer em prisão preventiva ou não. A primeira decisão do Teori é “não, não pode. Solta”. Ele manda soltar porque Curitiba não teria competência para investigar o Paulo Roberto Costa porque o caso envolvia políticos e, logo, aplica-se o princípio de que o foro privilegiado se estende a todos aqueles que estão relacionados com políticos, que foi o princípio adotado no Mensalão. No Mensalão, todos os agentes privados, todos os agentes não políticos, que não detinham mandatos, foram também julgados pelo Supremo por causa da interligação de todo o caso.

O que a Lava Jato inova desse ponto de vista é essa ideia do fatiamento, de que seria possível separar os casos dos políticos, dos que detêm mandato, daqueles que ou eram funcionários públicos ou doleiros ou empresários envolvidos no esquema. Então esse fatiamento é decidido nesse momento em que o Paulo Roberto Costa sai da prisão e volta pra prisão. Então aí o Supremo inova e diz “olha, agora nós não vamos agir como agimos lá no Mensalão e vai haver essa possibilidade de fatiamento”. E isso é um caminhar sobre uma corda, como um equilibrista vai ter que caminhar, porque é impossível ter com clareza essa separação entre o que envolve políticos com mandato e, portanto, com direito a foro privilegiado e aquilo que não envolve, que diz respeito à jurisdição da instância de Curitiba. Então essa vai ser uma negociação constante no interior da Lava-Jato e entre os dois polos da Lava Jato: um polo que vai estar sediado em Brasília, comandado pelo Rodrigo Janot, e o polo que vai estar em Curitiba, comandado pelo Deltan Dallagnol. Isso pra ficar dentro do Ministério Público, no interior do Judiciário [a disputa] é entre Moro e Teori Zavascki, né? Quem tem competência? Quem pode investigar? Quem pode julgar cada um desses casos?

Então essa linha divisória entre esses dois é traçada caso a caso, momento a momento. Então é aqui que a Lava Jato se constitui e é aqui que ela pode correr, digamos assim, e fazer sua investigação caminhar e gerar esse projeto a que me referi, que é um projeto mais amplo, bem mais amplo do que a investigação que está na mão da força-tarefa e que o juiz Moro está julgando, que é essa ideia de que “não, nós vamos limpar o Brasil. Nós vamos acabar com a corrupção no Brasil, nós vamos fazer um projeto mais amplo de ataque a corrupção”.

MLJ: O procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, integrante da força-tarefa de Curitiba, chega até a falar em refundar a república, né…
LIMONGI:
Exato. Então o projeto político era ambiciosíssimo, né? E a Lava Jato também consegue esse duplo de dizer que é um que é um processo absolutamente técnico, que está sendo dirigido apenas pelo processo legal e pelas investigações, ao mesmo tempo que está dizendo que vai refundar a República. Essas duas coisas são contraditórias, né? Mas a Lava Jato foi extremamente sofisticada em conciliar essas duas facetas. Obviamente que isso só foi possível porque o projeto
contava com apoio, fora do Ministério Público, de forças políticas importantes: inicialmente, como eu disse, ela é bem vista pela Dilma, que deixa o negócio correr. Mais tarde ela ganha um apoio na oposição ao PT, seja dentro da mídia, dos jornais, seja no PSDB, seja nos movimentos sociais que vão se constituir, como o “Vem pra rua”, MBL e outros, que vão pôr gente na rua pra protestar contra o governo e apoiar a Lava Jato.

MLJ: E qual acaba sendo também o papel da Operação Lava Jato para o resultado final do processo de impeachment contra Dilma Rousseff? Por que se a Dilma, ao menos num primeiro momento, vinha apoiando, simpatizando com as investigações, não era mais interessante que a Lava Jato ficasse ao seu lado? Por que isso não acontece?
LIMONGI:
É difícil dizer… O que eu consegui avaliar é que do ponto de vista da classe política e dos partidos políticos, no início de 2016, em fevereiro de 2016, a oposição percebe que não tem como fazer o impeachment. O próprio Eduardo Cunha é derrotado pelo Supremo Tribunal Federal quando o Supremo reinterpreta e impõe o rito do impeachment, que ele [Cunha] deveria repetir aquilo que havia sido feito com o Collor e rejeita as inovações que o Cunha tinha adotado. Então a classe política e os partidos se dão conta que aquilo não vai dar em nada e de que é hora de reagrupar. Então vai se formando uma aliança que, na linguagem da Lava Jato, seria a encomenda da pizza, certo? Não vai acontecer nada e ninguém vai ser punido, então a Lava Jato vai ser mais uma investigação que não vai levar à punição de membros da classe política envolvidos em casos de corrupção.

E aí é quando a Lava Jato ou o Ministério Público Federal, tanto as seções de Curitiba como a de Brasília, se dão conta de que com isso perderiam uma oportunidade de ouro, que o cavalo estava passando selado e que era ali ou nunca que eles poderiam exercer o seu papel. Só que cada uma dessas seções da Lava Jato tem suas prioridades e sua visão sobre como levar adiante esse projeto de combate à corrupção e quem deveria ser o primeiro a ser preso ou quem era o verdadeiro armador, o verdadeiro sustentáculo da corrupção no Brasil.

Do ponto de vista de Curitiba, na visão do Dallagnol e do Moro, o problema era o PT. Vai havendo uma visão de que o grande risco é o PT permanecer no poder, sobretudo com uma possibilidade de retorno do Lula à presidência em 2018. E havia na opinião pública e na própria classe política uma visão de que o Lula seria imbatível eleitoralmente, o que não é verdade. Mas havia esse temor e dentro disso a prisão do Lula era uma forma de garantir a reforma que eles [Lava Jato] queriam passar. Basicamente, Curitiba está interessada nas Dez Medidas Contra a Corrupção. Para Curitiba, o projeto político, o projeto de combate à corrupção, passa pela aprovação das dez medidas contra a corrupção. Então você tem que ter uma estratégia para conseguir aprovar as dez medidas e essa estratégia envolve inviabilizar o PT, inviabilizar a volta do Lula ao poder. Eles sabiam que a opinião pública, uma parte da opinião pública e uma parte do eleitorado apoiava isto e estava disposto a apoiar qualquer medida que levasse à prisão do Lula. Mas o grande objetivo não é o Lula em si, são as dez medidas contra a corrupção. Esta é a reforma da Lava Jato. Esse é o projeto da Lava Jato, da força-tarefa de Curitiba.

Já o grupo reunido pelo Janot tem outra visão. No grupo reunido pelo Janot a prioridade ou o projeto passa por eliminar o grupo do PMDB, que seria o principal responsável pela corrupção no Brasil. São os cardeais do PMDB, como Eduardo Cunha, Renan Calheiros e José Sarney, que deveriam ser presos ou punidos e a oportunidade para limpar a República passaria por aí na visão do grupo do Janot. E essa é uma visão próxima a setores de esquerda. Setores de esquerda tendem a ter essa opinião de que o PMDB, o centrão ou esse tipo de político mais tradicional, antigo, ligado à máquina pública, é que deveria pagar e que se você fosse capaz de punir esse grupo, você limparia a República e refundaria a República.

Então esse é o conflito que você tem no interior do Ministério Público Federal e o interessante aí é que o MPF tem um discurso partidário, você vai ver que o MPF faz política o tempo inteiro, está cindido por forças políticas e tem projetos ou visões políticas diferenciadas. Então a gente está sempre dentro de projetos e visões alternativas de como fazer o bem e chegar a certos objetivos.

Então é esse o momento em que a Lava Jato ou o MPF é crucial para determinar o impeachment da Dilma: ele ataca e ataca por duas frentes, vem montando o ataque por duas frentes. A classe política se sente ameaçada e percebe que a única salvação para ela como um todo – porque, veja, o ataque vai vindo de um lado sobre o PT, de outro sobre o PMDB e com o PMDB vai ruir também o PSDB, tudo vai ruir. Então a classe política percebe que está para ruir e fala “bom, então como a gente se defende?” Uma forma de se defender é entregar o boi pras piranhas, né? Então jogam a Dilma, porque com a Dilma não vai dar mais, com o PT não vai dar mais. Então ao entregar a Dilma, ainda que talvez parte da classe política não estivesse consciente, disso estava entregando também o Lula. Então essa foi a concessão feita pela classe política, mas ela foi mal sucedida na operação, porque a Lava Jato de Brasília não se contenta com o resultado e vai pra cima do Temer porque, na verdade, já estava tudo montado contra o Temer, contra o Cunha, contra o Renan [Calheiros] e ela [a ofensiva lavajatista] continua durante o governo Temer.

Então não é só o PT que paga, né? Lula vai ser preso, Dilma perde o cargo, mas o governo Temer é inviabilizado pelas gravações do Joesley Batista e pelo julgamento da chapa Dilma-Temer, que é talvez o episódio mais caricato desse período, o sinal da loucura, da esquizofrenia ou da maluquice total que se abateu sobre o sistema político, porque é um processo movido pelo Aécio Neves contra um governo de que ele fazia parte. O PSDB está tentando derrubar um governo acusando de corrupção um governo do qual ele faz parte, porque já caiu a Dilma e agora se inviabilizar a chapa, se julgar a chapa como inelegível, cai o governo Temer. E é isso o que faz com que o PSDB também vá pro vinagre, né? E o grande beneficiário disso tudo foi o Bolsonaro, que vence a eleição de 2018 por ausência de competidor. Ele ganha meio que por WO, digamos assim.

MLJ: E temos uma visão muito corrente de que a coalizão que governo com o PT nos governos Lula e Dilma seria uma coalizão fraca, movido muito mais por interesses do que por afinidades políticas, efetivamente. O senhor, contudo, tem uma visão bem diferente com relação a isso, ressaltando a unidade e força dessa união entre os partidos até por sua própria duração no tempo. São essas duas frentes de ataque que a Lava Jato monta que acabam determinando o fim dessa coalização, dessa união entre os partidos da base governista?
LIMONGI:
Isso. É é verdade. Vai corroendo tudo, né? E vai tornando qualquer relação interna da coalizão insustentável. Na verdade, gera a desconfiança dos parceiros de que você vai estar comigo até o fim. “Ah, você está tentando me vender pro inimigo”. Então a Lava Jato, com o mecanismo da delação premiada e das gravações não autorizadas de conversa – que é sobretudo uma prática de Brasília -, destrói qualquer possibilidade de negociação política, porque a negociação política se baseia num acordo, na confiança, na troca que vai ser sustentada. Mas se você não sabe se teu parceiro está te traindo, está te esfaqueando pelas costas, como que você vai construir esse acordo? Então acho que essas investigações e a forma como elas foram encaminhadas tiveram esse efeito dissolvente sobre o discurso público e sobre a capacidade dos atores de construírem relações de confiança uns para com os outros.

A gente sabe, por exemplo, que durante toda a negociação da aprovação das dez medidas contra a corrupção o relator da proposta, que era o Onyx Lorenzoni, gravou todas as conversas que ele manteve com os líderes político para negociar uma proposta alternativa. E ameaçou soltá-las ao público como forma de o quê? Desautorizar todos aqueles com quem ele tinha negociado. Isso foi revelado pelo pelo ex-ministro da Saúde, o Mandetta, no seu livro. E essa era a forma que a Lava Jato, a estratégia da Lava Jato pra conseguir aprovar as dez medidas contra a corrupção, era jogar a elite política contra o precipício. Dizer “olha o que vocês fazem, olha quais são as negociações privadas que rolam”. Então essas total destruição da confiança, a publicidade dada a conversas mantidas em privado e essa confusão entre o que é privado e o que é público tem um efeito deletério bastante grande sobre o ambiente e é algo com o que a gente ainda tem que conviver hoje.

MLJ: E professor, o senhor já comentou bastante sobre o “projeto político da Lava Jato”. Afinal, qual era ou qual é esse projeto político, quais suas características?
LIMONGI:
Bom, quando você tenta expor um projeto político dessa forma, a palavra projeto supõe a existência de um todo coerente, claro, muito bem articulado e etc, que na verdade nunca está lá presente em nenhum projeto político, né? Ideologias servem para tentar fechar isso. No caso, nós temos uma instituição, o Ministério Público Federal, que está intervindo na política com um fim e com uma visão de qual é o seu papel. Então dizer que é um projeto político talvez seja um pouco exagerado, mas tem uma visão de como deveria ser a política. Ou melhor, tem uma visão muito negativa de como a política está sendo desenvolvida, está sendo aplicada ou está rolando aí no Brasil.

Então o projeto que está, que eu acredito que está nas dez medidas contra a corrupção, é um projeto de reforço do papel tutelar do Ministério Público sobre a classe política. É como se o o Ministério Público se propusesse a ser um grande censor do comportamento dos políticos. E um censor, digamos assim, prévio: “Eu vou escrutinar os atores políticos e definir aqueles que estão moralmente aptos a desempenhar funções públicas. Então eu ajo antes do eleitorado. Eu filtro a classe política e digo ‘esses atendem os requisitos necessários para disputar eleições'”.

Então se você olha e traduz as medidas as dez medidas contra a corrupção, passando elas do princípio para aplicabilidade, eu vejo esse resultado: que o Ministério Público teria um poder muito grande de atacar ou punir previamente políticos que ela acreditasse que não atenderiam os requisitos necessários para exercer funções públicas. Isso significa que o Ministério Público estava pretendendo substituir o eleitorado ou exercer um papel que pelo governo representativo cabe ao ao eleitores. Os eleitores são soberanos, os eleitores julgam as qualidades dos políticos e não precisam justificar os seus critérios. Isso que é muito ambíguo e difícil de entender no princípio eleitoral. O princípio eleitoral abre mão de definir previamente quais as qualidades que serão exigidas aos políticos e joga essa essa responsabilidade inteiramente nas mãos dos eleitores. E ao fazer, não define previamente que qualidades eles precisam ter. Supõe-se que moralidade, responsabilidade e qualificação serão levadas em contas pelos eleitores, mas isso não pode ser protocolado ou escrito em “ao votar o eleitor deve considerar essa, essa, essa, essa, essa característica”. Está subentendido que ele vai fazer, mas não há como definir isso de antemão. Quem vai dizer se um político tem ou não essas qualidades é o eleitor, e quem estava querendo exercer um papel anterior era o Ministério Público Federal dizendo “eu vou filtrar”. E ele vem fazendo isso e o legislador vem atendendo a essa pressão. Por exemplo, a Lei da Ficha Limpa, que ria todos esses problemas até hoje.

Então o que o Ministério Público está fazendo? “Não, eu quero estabelecer condições prévias que permitam filtrar aqueles que se apresentam aos eleitores e reivindicam o seu voto”. Qual é o diagnóstico que está antes? É que o eleitor está exercendo mal a sua prerrogativa, o eleitor está sendo enganado ou não está sendo capaz de fazer esse filtro adequadamente. Então dá pra mim que eu vou fazer. Só que esses critérios são subjetivos, não tem como estabelecer de antemão. E se eu der ao MPF esse poder, ele vai exercer essa subjetividade de acordo com a sua visão daquilo que deve ser a política. Ou seja, o Ministério Público quer se arrogar dessa posição de exercer esse filtro, mas esse filtro quem exerce é o eleitor e disso a gente não pode abrir mão se a gente for democrata ou adepto do governo representativo. O eleitor é soberano, cabe a ele julgar as qualidades dos políticos em quem ele deposita confiança.