A PRISÃO INJUSTA QUE LEVOU À MORTE DE LUIZ CARLOS CANCELLIER DE OLIVO, EX-REITOR DA UFSC
A Operação Ouvidos Moucos, que perseguiu Cancellier, utilizou dos mesmos métodos lavajatistas: prender provisória e ilegalmente e utilizar a mídia para condenar antes mesmo de qualquer denúncia ser apresentada ou mesmo qualquer prova ser levantada.O dia 14 de setembro de 2017 marca o primeiro capítulo de um dos acontecimentos mais tristes e revoltantes na história da Justiça Brasileira. Nesse dia, o então reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, fora preso sem provas e de forma arbitrária pela Polícia Federal (PF). Dezoito dias depois, em 08 de outubro de 2017, Cancellier se jogou do alto de uma escada do Beiramar Shopping, em Florianópolis (SC), com uma carta em seu bolso.
Deflagrada naquele mesmo ano, a “Operação Ouvidos Moucos”, da PF, estava sob a coordenação da delegada Érika Mialik Marena, conhecida por ter nomeado a Operação Lava Jato. A ação em Santa Catarina, inclusive, era um dos desdobramentos da atuação lavajatista e visava investigar supostos desvios de recursos públicos em cursos de educação à distância da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Cancellier foi acusado pela PF de ser quem “respaldava e sustentava” uma quadrilha supostamente ligada ao desvio de verbas da instituição de ensino, mesmo sem provas. Por conta disso, Erika Marena afirmou ter “convicção da necessidade” da prisão do então reitor da UFSC – o que ocorreu de forma arbitrária e violenta.
O LINCHAMENTO Midiático
A cobertura dos meios de comunicação seguiu, inicialmente, o mesmo padrão de outras operações da Lava Jato: sobravam fontes oficiais e ligadas à acusação se pronunciando e informações eram repassadas em peso para os jornais, que as publicavam sem qualquer apuração ou crítica.
Enquanto isso, a imagem pública do reitor era destruída. No dia de sua prisão, por exemplo, seu nome ficou estampado como líder de um esquema de desvio de recursos públicos – uma alegação que depois se mostraria infundada diante da ausência de qualquer tipo de prova. Depois de Cancellier ser liberado através da concessão de um habeas corpus, o assédio midiático se manteve.
Sequer haviam estimativas corretas do valor do desvio, as informações estavam ainda pouco sustentadas e com muitas lacunas, nem mesmo a Polícia Federal sabia dimensionar o valor do desvio. Mas na pressa, praticamente todos os sites de notícia e emissoras de TV expuseram o nome do então reitor.
Esse processo de difamação foi rápido e avassalador sobre a imagem de Cancellier. Quando a mídia toma esse tipo de atitude, não há controle sobre os prejulgamentos das pessoas. Nas redes socais o linchamento foi desenfreado e até mesmo docentes da UFSC foram alvos de comentários maldosos, de intolerância e ódio. Isso também abriu espaço para críticas às universidade federais, tudo com base em suposições.
Dois lançamentos de 2022 recapitulam a trágica história. “Recurso Final”, do jornalista Paulo Markun, e o documentário “Levaram o Reitor”, de Luis Nassif, fazem uma análise do uso do debate público, do linchamento midiático, das espetacularizações das operações e suas consequências.
O ABUSO DE AUTORIDADE
A Operação Ouvidos Moucos utilizou dos mesmos métodos da Lava Jato, prendendo provisoriamente e sem embasamento legal para tal e utilizando a imprensa para condenar reputações antes mesmo de qualquer investigação. Cancellier também relatou ter sido hostilizado por outros presos, ter passado por revista íntima (duas vezes) e ter sido mantido nu durante mais de duas horas diante de outros presos, até finalmente vestir o uniforme do presídio, ser algemado e acorrentado pelos pés.
Após sua soltura, Cancellier foi proibido de entrar na Universidade novamente. Por conta da prisão arbitrária e do massacre midiático, passou ainda a temer ser reconhecido na rua e humilhado em público. Afinal, era ele o reitor que “roubou” R$ 80 milhões (no dia de sua prisão, a PF, em seu site, divulgou que combatia “desvio de mais de R$ 80 milhões”. Mais tarde, contudo, descobriu-se que esse montante era referente ao total de repasses do Ministério da Educação para o programa de ensino à distância ao longo de mais de uma década – de 2006 a 2017 -, sendo que Cancellier só se tornara reitor da UFSC a partir de maio de 2016).
A presunção de inocência foi deixada completamente de lado e mesmo depois de liberado por ordem judicial, Cancellier continuou com seu nome e imagem manchados, não podia sequer frequentar o local que era tão importante para ele, a universidade.
O suicídio de Cancellier foi considerado um ato político por muitas pessoas. Em uma entrevista concedida ao Diário Catarinense, pouco antes de sua morte, o reitor afirmou se sentir “exilado” da própria universidade, além de afirmar que a prisão foi uma “humilhação completa”.
Além disso, um bilhete encontrado em seu bolso no momento de sua morte deixava uma mensagem:
Em 2019, inclusive, a Lei Nº 13.869/2019, que refere sobre os crimes de abuso de autoridade foi batizada como “Lei Cancellier”. Para estudiosos da área do Direito, a legislação tem categoria simbólica, de alertar às autoridades de que elas não estão acima das leis.
Dallagnol expôs soberba ao falar de morte de reitor da ufsc
Dentre a série de mensagens trocadas entre procuradores e o ex-juiz Sergio Moro publicados pelo The Intercept Brasil, através da intitulada Vaza Jato, mensagens trocadas pelo ex-chefe e ex-procurador da Lava Jato Deltan Dallagnol e a coordenadora da PF Erika Marena, revelaram soberba e desumanidade por parte dos agentes das operações acerca da morte do reitor.
Dallagnol, que na época já ansiava a carreira política era chefe da operação, chamou de ‘bando de imbecis’ os críticos a operação Ouvidos Moucos e usou o Telegram para prestar solidariedade a Marena pelas críticas que ela e a corporação ouviram após o ato extremo de Cancellier.
A conversa comprova, não apenas a irresponsabilidade, mas também a má conduta dos integrantes da força tarefa. Em outro trecho da conversa, Dallagnol fala que Marena agiu exatamente como o método da Lava Jato:
O caso de Cancellier foi uma consequência da desumanidade e irresponsabilidade do lavajatismo.
QUEM ERA CANCELLIER
Luiz Carlos Cancellier nasceu em 13 de maio de 1958. Seu pai era operário e sua mãe costureira; Ele tinha ainda dois irmãos, Julio e Acioli.
Em 1977, ingressou no curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Era o período da ditadura militar, marcado por grande resistência e luta pela redemocratização do Brasil, Cancellier era comprometido com o movimento estudantil, mas parou os estudos para se dedicar exclusivamente à carreira de jornalista. Foi assessor parlamentar no Senado Federal de 1992 a 1994.
Em 1995, voltou para a UFSC e retomou o curso de Direito, terminando a graduação em 1998. Durante esse período, trabalhou como assessor da presidência do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE). Terminou o mestrado em 2001 e o doutorado no Centro de Ciências Jurídicas (CCJ), em 2003. No mesmo ano foi Coordenador Geral da Secretaria do Estado da Saúde.
Em 2005 ele ingressou como professor na UFSC. Deu aulas de Direito Administrativo e tornou-se coordenador do curso e membro do Conselho Universitário em 2008. Foi eleito chefe de departamento por três anos e presidente da Fundação José Arthur Boiteux. No começo de 2012 foi nomeado diretor do Centro de Ciências Jurídicas.
Em 2015 foi eleito reitor, tendo como vice-reitora a professora Alacoque Lorenzini Erdmann, ao lado de quem tomou posse em maio de 2016.
“Por mais que as dificuldades surjam, uma palavra de conciliação, de abertura e de diálogo sempre pode trazer uma luz”, disse Cancellier no ato de posse.
O seu mandato teve 858 dias, de 10 de maio de 2015 a 14 de setembro de 2017, contados desde a posse até a data de aprisionamento, quando foi afastado. Após 30 horas de prisão provisória e ilegal Cancellier foi solto,, porém impedido de entrar na Universidade e de ter contato com as pessoas que lá trabalhavam. Afastado do lugar que mais amou e ao qual dedicou grande parte de sua própria carreira, tirou a própria vida no dia 2 de outubro de 2017, uma segunda-feira.
“A vida do meu pai era a universidade. Então, eu acho que duas coisas ele não suportaria: se tirassem a universidade dele ou se alguma coisa acontecesse comigo. E uma das duas coisas aconteceu”, comentou em entrevista à Folha de S. Paulo o filho de Luiz Carlos, Mikhail Cancellier.
A gestão de Cancellier foi sucedida pelo reitor pro tempore Ubaldo Cesar Balthazar, em 2017, que escolheu dar continuidade ao trabalho e manteve a equipe que o falecido reitor escolheu.