Considerando o inventor da cena moderna, o dramaturgo e diretor russo Meyerhold propõe, logo após a revolução bolchevique, uma tipologia de personagens dentro da estética do construtivismo. O emploi, dito assim à la française, é um conjunto de particularidades que determina a função cênica de cada personagem na trama. É o ” posto que o ator ocupa” em relação a uma “função cênica estabelecida”.

Curioso é notar como uma breve análise da evolução da percepção de Sergio Moro nos anais da imprensa estrangeira, após o escândalo da instrumentalização dos procuradores da Lava Jato pelo então juiz de primeira instância, revelado pelo jornalista Glenn Greenwald (The Intercept), lembra a tipificação do grotesco emulada por Meyerhold na cena da vanguarda russa.

Com personagens mais ou menos bem determinados, cíclicos e que dão origem à medida que a farsa – outro termo teatral – do impeachment de Dilma Rousseff e da Vaza Jato se acumulam, a imagem de Moro na imprensa internacional e europeia se assemelha a um jogo de máscaras, um teatro de sombras onde reina o Tartufo de Curitiba.

Na teoria meyerholdiana, assim como na farsa do juiz, cada papel é definido segundo um plano dramatúrgico em seu funcionamento teatral, sem referência à realidade. Sem provas concretas, mas com a exagerada e ostensiva convicção do protagonista bufão, fiel à biomecânica de seu personagem.

“Herói do povo”

Sergio Moro é retratado com pompa e galhardia na edição de 17 de março de 2016 do vespertino francês Le Monde: “o juiz anticorrupção que faz o Brasil tremer”, diz literalmente a manchete. No dia em que o impeachment de Dilma Rousseff é votado com ares de feira medieval e processo inquisitório no Congresso brasileiro, Le Monde retrata Moro, o Herói, como “fiel à sua reputação de xerife anticorrupção”, que “exigiu a execução imediata da pena do ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva”.

Moro, o Herói, é então traduzido por Le Monde ao público francês como o cavaleiro solitário, que “tendo revelado o escândalo de corrupção na Petrobras, é o chefe da operação Lava Jato, que conduz as investigações sobre o maior escândalo de corrupção na história do país”.

Ironicamente, o personagem do juiz de Curitiba é inicialmente “comprado” pelo jornal com uma das maiores circulações da França: “Moro garante que ele não se deixará levar pelo fervor popular e rejeita firmemente qualquer tentação de se mudar para o mundo da política”, diz a reportagem, em tom solene, citando também os “mais de 50 vazamentos de conversas”, como a da presidente Dilma Rousseff e seu mentor, Luiz Inácio Lula da Silva”, que seria interpretado “como a confirmação de que a nomeação de Lula da Silva [à Casa Civil]’teria sido imaginada para protegê-lo de uma eventual prisão”.

Mas o folk hero, encarnado por Sergio Moro, já havia sido desenhado pelo New York Times, em 7 de agosto de 2015: “O juiz Moro deseja perseguir mesmo os mais influentes” dentro da “Operation Car Wash“, elogia o jornal. Ainda neste texto do NYT, uma nova personagem é apresentada à plateia internacional: “O procurador-chefe, Deltan Dallagnol, 35, diplomado pela Harvard Law School”. “Era como se os deuses nos tivessem abrindo uma janela de oportunidade”, celebra o jovem e soi-disant puritano Sancho Pança brasileiro ao jornal norte-americano, relembrando as bucólicas origens Lava Jato e seu primeiro vilão, o doleiro Alberto Yousseff. Todas as características do grotesco da nova necropolítica brasileira de 2019 entram em cena já em 2015, do fetiche inalcançável de Harvard ao delírio evangélico de poder.

Enquanto isso, o leonino Moro continuava a circular, entre Washington e Curitiba, a se gabar das qualidades da “delação premiada”, que rompe a solidariedade entre culpados”, ou da “prisão provisória”, que serviria para “amaciar a carne”, uma piada feira pelo Herói do Povo durante uma palestra organizada em 2015 pela revista britânica The Economist, como noticiado pelo Le Monde.

tartufo, o impostor e a impostora

Na França, a desconfiança de jornalistas, editorialistas e dos maiores veículos de imprensa marcou uma virada clara na percepção da imagem de Sérgio Moro logo após a eleição de Jair Bolsonaro. O “flerte de Moro com a extrema direita” foi devidamente registrado pela correspondente do Le Monde no Brasil, a jornalista Claire Gatinois, em 31 de outubro de 2018. Na Europa, como se sabe, a extrema direita tem nome e sobrenome, pelos quais é evocada em qualquer veículo de imprensa minimamente comprometido com uma ideia republicana da informação.

A correspondente do Le Monde afirma que “mais do que lisonjeado o magistrado estaria tentado [pelo convite de Bolsonaro ao Ministério]”. “Segundo seus amigos próximos, Sergio Moro cultiva uma admiração secreta pelo presidente eleito, esquecendo-se da falta de respeito dos militares pelas instituições e de seu desprezo pelos direitos humanos”, pontua a jornalista.

“super ministro”, pero no mucho

A britânica BBC lembrava em 1º de novembro de 2018 que a “nomeação de Moro é susceptível de alimentar alegações de que sua investigação anticorrupção foi politicamente motivada”. O personagem do “superministro” não caiu bem entre editorialistas da imprensa europeia e internacional, acostumados a verem surgir historicamente categorias de figuras políticas nada confiáveis, quase sempre ligadas a discursos populistas. “Sua cruzada contra a corrupção fez dele um herói para muitos, mas outros o acusam de atingir desproporcionalmente políticos de esquerda, especialmente aqueles do Partido dos Trabalhadores”, analisa a BBC.

Mas a ruptura da mídia europeia e internacional com o Herói do Povo de Curitiba se aprofundou definitivamente a partir da revelação de conversas privadas entre o então juiz e o procurador Dallagnol, à frente da Operação Lava Jato, divulgadas pelo site The Intercept em 9 de junho de 2019, numa mis-en-scène que envolveu diversos veículos brasileiros. E que encontrou ecos do lado de fora do país.

Em completo desencanto com o “Elliot Ness brasileiro”, o Washing Post optou por destacar em manchete que o “herói” agora “enfrenta o seu próprio escândalo”. “Se havia uma figura unificadora no Brasil nos últimos cinco anos, enquanto a economia se debatia, o crime violento aumentava e a polarização se aprofundava, era Sergio Moro”, contextualiza o jornal norte-americano em 17 de junho. “Mas agora, após a revelação de conversas privadas com promotores na investigação [da Lava Jato], Moro se encontra na desconfortável posição pela qual ele colocou tantos outros: no centro de um escândalo”, ironiza o Huffington Post.

Após as revelações de Glenn Greenwald, Le Monde afirma em manchete que no “Brasil: a “Lava Jato Gate” mancha a imagem do ex-juiz Sergio Moro”. Segundo o jornal francês, o escândalo “estraga um pouco mais a imagem do ex-magistrado, já maculada desde a sua entrada no governo de extrema direita de Jair Bolsonaro, em janeiro”. Já em 8 de julho, o Monde não exita em mencionar “a queda de Sergio Moro, ex-juiz estrela da anticorrupção”. O Liberátion mancheta em 10 de outubro, no dia seguinte às primeiras revelações da Vaza Jato: “No Brasil, magistrados teriam conspirado para evitar a volta de Lula”. No mesmo dia, a correspondente do jornal francês em São Paulo , Chantal Rayes, titula: “Lula foi vítima de uma maquinação?”. “As revelações do The Intercept não surpreenderam ninguém [no Brasil]”, diz Rayes. “Os supostos abusos dos promotores da Lava Jato e do próprio juiz Moro, contra Lula e outros, são há muito denunciados”. explica a jornalista ao público francês.

Der Spiegel, a maior revista semana na Alemanha, publica em 23 de junho o artigo “O juiz e seu presidente”. Em tom crítico, o semanário afirma que “Moro tentou criminalizar The Intercept e sua fonte anônima para causar distração em relação ao conteúdo das gravações”. A revista alemã diz ainda que “em sua aparição no Senado, Moro não conseguiu refutar as acusações”. “Mas não era com isso que Moro estava preocupado”, diz Der Spiegel. “A performance foi uma manobra política para silenciar pedidos de demissão e fortalecer sua base política”, continua a revista.

O britânico The Guardian faz eco em 5 de julho À reportagem da revista Veja, no Brasil, em parceria com o The Intercept: “O ministro da Justiça do Brasil, Sergio Moro, enfrenta uma pressão renovada para renunciar depois que a principal revista conservadora do país divulgou sua participação no escândalo”. “Veja- a eterna cheerleader da cruzada anticorrupção de Moro – disse que seus jornalistas passaram duas semanas examinando cerca de 650 mil mensagens vazadas entre autoridades envolvidas na investigação e concluíram que o ex-juiz era culpado de ‘irregularidades’ sérias”, lembra o The Guardian. “Em um editorial condenatório, a Veja informou que a reportagem “revelou com precisão como Sergio Moro ultrapassou seu papel de juiz”, pontua.

II capo e a queda

Até na Itália, onde o capo brasileiro poderia desfrutar de sua (auto)proclamada erudição sobre a operação “Mãos Limpas” – “Mani Pulite”, para os italianos -, ele é acusado pelo diário econômico Il sole 24 ore “dirigido a investigação” da qual era juiz. O site do 24 ore destaca uma “hipótese de conspiração contra Lula”. “Uma enorme quantidade de documentos secretos revelaria que o Judiciário brasileiro trabalhou para expulsar o ex-presidente Lula das eleições de 2018, boicotando seu Partido dos Trabalhadores de várias maneiras”, escreve o porta-voz do empresariado italiano. “A Ordem dos Advogados do Brasil solicitou a suspensão de Moro, considerando sua posição inadequada para o cargo ocupado em Brasília”. publica o sit em 11 de junho.

No mesmo, o jornal do braço direito de Berlusconi, Giuliano Ferrara, o Il Foglio, esboça dúvidas sobre a credibilidade do super-herói brasileiro. “O site The Intercept, fundado por Glenn Greenwald, o homem que ajudou Edward Snowden a desvendar o sistema de vigilância global criado pela inteligência dos Estados Unidos, publicou vários documentos confidenciais, e-mails, discussões em bate-papo particulares, fotos e vídeos a trama orquestrada por Moro”, afirma o veículo conservador.

Em 10 de julho, o La Repubblica escreve sobre “As férias forçadas de ministro Moro”, considerada por um dos maiores jornais da Itália como “o sinal mais tangível da crise que atravessa o Executivo de extrema direita no Brasil”. “O símbolo de luta contra a corrupção (…) perdeu sua legitimidade”, diz.

Em 25 de julho, o El País noticia a “prisão de quatro suspeitos de piratear o celular de Moro no Brasil” e contextualiza que “o ministro de Bolsonaro acusa os detidos de estarem por trás dos vazamentos publicados na imprensa, mas as autoridades não confirmam esta relação. O periódico espanhol lembra que, apesar das acusações lançadas no Twitter por Sergio Moro, “os jornalistas do The Intercept não informaram sobre sua fonte ou sobre como receberam as mensagens privadas, mas dizem que receberam o material semanas antes do dia em que Moro disse ter sido hackeado”.

No teatro de Molière, Tarrufo é a figura do impostor por excelência. Falso devoto, orador eloquente, ele será desmascarado por sua cobiça. Folk Hero, Elliot Ness, Mackie Messer, Iago, Ubu Rei, o Rei da Vela, Tartufo , o Cornudo Magnífico. As maneiras encontradas pelo teatro para trazer o grotesco para o palco serviriam, como diria Nelson Rodrigues, para “fazer surgir o Homem na plateia”. É desse humanismo às avessas que vive o teatro, dessa paródia, desse esforço de linguagem que desmonta e reconstrói, esse jogo de espelhos com o espectador. Na [necro]política brasileira, no entanto, pelo menos essa política brasileira retratada hoje pela imprensa internacional, o coup de théâtre de Sergio Moro parece se desmontar aos olhos do público, como um personagem vazio, mal-acabado, que não consegue dar a deixa. Refletido no olhar da imprensa estrangeira, Moro desmancha, mesmo mantendo seu séquito do grotesco dentro de casa.

Bufão da cena Meyerhold, o xerife pode se transmutar em farsante num piscar de olhos, caso se revele inapto para a trama, na era da pós-verdade e na profusão acrítica a autossuficiente das redes sociais. Estamos em plena farsa, a repetição ululante da tragédia.