Dossiê LAVA JATO

Crédito: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

Em seus quase sete anos de atividade, de 17 de março de 2014 a 1º de fevereiro de 2021, a Operação Lava Jato acabou tendo participação decisiva em eventos históricos que mudaram o rumo da política no Brasil, desde o golpe parlamentar de 2016 (que destituiu a presidente democraticamente eleita Dilma Roussef) até a ascensão da extrema-direita (que culminou na eleição de Jair Bolsonaro como presidente da República).

Ancorada no discurso de combate à corrupção e de enfrentamento da impunidade que favoreceria grupos da elite política e econômica nacional, a Lava Jato conseguiu, em alguma medida e por algum tempo, cooptar anseios caoticamente ecoados pelas Jornadas de Junho de 2013. Concomitante, no entanto, a operação apresentou um caráter arbitrário, autoritário e inconstitucional, na medida em que seus protagonistas demonstraram uma atuação politicamente motivada e interessada.

São sombras que ainda pairam sob a Lava Jato e que precisam ser iluminadas, esclarecidas. E é com essa intenção que foi montado este dossiê, que busca apresentar a operação pela visão de quem a coordenou, mas não necessariamente com os mesmos olhos ou olhar.

Ex-coordenador da força-tarefa da Lava Jato, Deltan Dallagnol afirma em seu livro “A Luta Contra a Corrupção – A Lava Jato e o Futuro de Um País Marcado Pela Impunidade” que a operação foi construída sobre quatro pilares: (1) delações premiadas; (2) operação por pulsos ou fases; (3) cooperação doméstica e internacional; e (4) comunicação Social. Esses elementos podem também ser entendidos também como as engrenagens das quais a Lava Jato se valeu para estabelecer uma estratégia jurídica, midiática e política. 

Em cada um dos “pilares” sugeridos, então, são revisitadas citações de membros da Lava Jato, assim como materiais publicadas por jornalistas e advogados que desafiaram a narrativa hegemônica da sedutora cruzada contra a corrupção. É o entrecruzamento destas informações que ilumina os caminhos labirínticos da Lava Jato, aqui apresentados com uma visão crítica e privilegiada pelo tempo e pela História.  

Deltan Dallagnol, o mais famoso coordenador da força-tarefa Lava Jato. Crédito: Fernando Frazão/Agência Brasil

Como nos conta Deltan Dallagnol em seu livro, os acordos de delação premiada foram um dos pilares da Lava Jato e, possivelmente, seu grande trunfo.

De forma simplificada, a colaboração premiada (ou delação premiada) é um negócio jurídico processual e um meio de obtenção de prova, marcado pela negociação de um acordo entre o Poder Judiciário e um possível colaborador (ou delator). Nessa negociação, o delator se compromete a identificar envolvidos em delitos ou organizações criminosas, revelar o modo de operação ou a hierarquia de poder dessa organização, fornecer informações valiosas para o avanço de investigações criminais e apresentar provas ou meios de consegui-las (de modo a corroborar e comprovar os fatos relatados e os crimes delatados).

Como em todo negócio, contudo, ambas as partes devem ganhar algo. E se o Ministério Público Federal (MPF) ganha informações relevantes para esclarecer crimes e punir criminosos, o réu que colabora efetiva e voluntariamente com a investigação pode ser beneficiado pelo juiz com a redução da pena privativa de liberdade, substituição dessa pena por restritiva de direitos ou até mesmo receber concessão de perdão judicial.

Apesar de já haver anteriormente previsões esparsas no ordenamento jurídico brasileiro sobre a colaboração premiada – vale lembrar a primeira delação premiada de Alberto Yousseff homologada por Sergio Moro no Escândalo das CC5 (também conhecido como Caso Banestado) -, foi uma lei promulgada em 2013 que acabou por detalhar e positivar a utilização do instrumento para obtenção de provas em qualquer investigação relacionada a organizações criminosas. A Lei 12.850/13 (também conhecida como Lei de Organizações Criminosas) foi sancionada pela então presidente Dilma Rousseff em agosto de 2013 e veio com o intuito de efetivamente regulamentar o delito denominado de organização criminosa (definido como a “associação de quatro ou mais pessoas, estruturalmente organizada, com divisão de tarefas, ainda que informal, com o objetivo de obter vantagem de qualquer natureza mediante a prática de infração penal”), bem como seus meios investigativos e auxiliares.

Valendo-se desse novo instrumento e da experiência adquirida por meio da força-tarefa CC5, a Lava Jato procurou, em grande medida, emular os métodos da italiana Mani Pulite, a operação Mãos Limpas. Um artigo intitulado “Considerações Sobre a Mani Pulite”, assinado por Sergio Fernando Moro e publicado em 2004, é uma evidência disso. Sobre a utilização do mesmo instituto pela Mani Pulite, encontramos no referido texto a seguinte citação, atribuída a Donatella Della Porta e Alberto Vannucci: 

“A estratégia de investigação adotada desde o início do inquérito submetia os suspeitos à pressão de tomar decisão quanto a confessar, espalhando a suspeita de que outros já teriam confessado e levantando a perspectiva de permanência na prisão pelo menos pelo período da custódia preventiva no caso da manutenção do silêncio ou, vice-versa, de soltura imediata no caso de uma confissão (uma situação análoga do arquétipo do famoso “dilema do prisioneiro”). Além do mais, havia a disseminação de informações sobre uma corrente de confissões ocorrendo atrás das portas fechadas dos gabinetes dos magistrados. Para um prisioneiro, a confissão pode aparentar ser a decisão mais conveniente quando outros acusados em potencial já confessaram ou quando ele desconhece o que os outros fizeram e for do seu interesse precedê-los. Isolamento na prisão era necessário para prevenir que suspeitos soubessem da confissão de outros: dessa forma, acordos da espécie ‘eu não vou falar se você também não’ não eram mais uma possibilidade.” 

A mesma citação é prestigiada no livro do advogado Fernando Augusto Fernandes, intitulado “Geopolítica da Intervenção – A Verdadeira História da Lava Jato”, lançado em 2020. Fernandes foi o primeiro advogado de defesa de Paulo Roberto Costa, ex-diretor de Refino e de Abastecimento da Petrobras e que foi preso na segunda fase da Lava Jato. Em seu livro, o jurista apresenta a versão de quem viveu os bastidores da LJ desde seu início, denunciando a adoção de metodologia similar à contemplada por Moro em seu artigo sobre a Mãos Limpas. 

Fernandes também expõe outros fatores estratégicos para a Lava Jato, como a necessidade de concentrar os processos nas mãos do então juiz Moro, considerado “o juiz da Lava Jato”, e de trazer para Curitiba os presos pela força-tarefa. Aspas para Fernandes:

“Os presos precisavam ser isolados de seus familiares e advogados, deslocados para o Paraná e impingidos a sofrimentos físico e mental. Precisavam ser confrontados com as provas ilegais obtidas pelo Ministério Público. E a intensa ameaça de prisão dos familiares”. 

crítica à delação premiada

O professor e advogado Jacinto Nelson de Miranda Coutinho também foi advogado de réus da Lava Jato, dentre eles o empresário José Carlos Bumlai. Crítico de primeira hora da forma como o instituto da delação premiada foi introduzido no Brasil, Coutinho traz relatos no mesmo sentido de Fernandes, denunciando os meios de repressão utilizados pela LJ para induzir réus e suspeitos a celebrarem acordo de delação premiada.

Em audiência pública promovida pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da JBS, em 21 de novembro de 2017, Coutinho traçou diversas críticas ao instituto da delação premiada então vigente pela lei nº 12.850/13. Na oportunidade, o professor titular do curso de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) explicou o porquê de um instituto importado dos Estados Unidos (que adota o sistema jurídico de Common Law) não se encaixar no sistema jurídico brasileiro (Civil Law), concentrando suas críticas na fragilidade das especificações apresentadas pela Lei. As lacunas legais abrem espaço para interpretações autoritárias para quem tem o poder de interpretar e aplicar o direito – no caso da LJ, juízes e procuradores:  

“Não havendo regra precisa a respeito da matéria, têm sido determinadas conduções coercitivas, que são verdadeiras prisões; tem-se determinado produção de prova; têm sido determinadas buscas e apreensões só pelo fato de que um delator indicou terceiros. Se o delator fala ‘Deputado Marun’, quando ele acorda na segunda-feira de manhã, em Campo Grande, está a Polícia Federal dentro da casa dele. Mas espera aí! Só nominaram. Só foi nominado. Não se tem o direito de fazer um negócio desses!”

Para se ter uma ideia da importância da delação premiada para a Lava Jato, a operação celebrou 399 acordos de colaboração – quando somados Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro -, contra 18 computados no caso das Contas CC5. Eram os conteúdos dessas delações que abriam novas vias de investigação e complementavam outras já inauguradas. Como escreve Moro em seu artigo sobre a Mani Pulite, as delações foram criando um “círculo virtuoso” para a Lava Jato, que acabou por criar um método para induzir a celebração de tais acordos, superando os meios tradicionais de investigação que respeitavam os direitos e garantias de réus e suspeitos – direitos e garantias que eram encarados como obstáculos pelos investigadores e acusadores.

Deltan Dallagnol confirma em seu livro, “A Luta Contra a Corrupção” como se dava o expediente de tal “círculo virtuoso”, corroborando, de certa maneira, com o temor mencionado por Coutinho: 

“Acontecia assim: primeiro, as linhas de investigação – derivadas em grande parte de colaborações – eram amadurecidas por meio de diligências, como o exame de dados bancários, fiscais e de e-mails. Quando as provas se tornavam suficientemente robustas, procuradores e delegados, com o auxílio da equipe da Inteligência da Receita, se alternavam pedindo buscas, prisões e conduções necessárias para aprofundar os trabalhos. Os requerimentos eram analisados pelo juiz Sergio Moro, titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, onde tramita o caso. Se deferidos, os mandados eram expedidos. (…) Em seguida, a PF organizava as diligências e executava os mandados, logo que amanhecia, em dia confidencial ajustado entre órgãos. Por vezes, integrantes da Receita e do Ministério Público também iam a campo”

Do trecho, verifica-se o funcionamento de três dos quatro pilares da Lava Jato: (1) Delação Premiada; (2) Operação em fases; (3) Cooperação. Deltan, contudo, deixa de mencionar que cada fase deflagrada pela operação era acompanhada de uma coletiva de imprensa e que, como inovação, a LJ também começou a fazer coletivas para a apresentação das denúncias. Não é mero detalhe se pensarmos em quantos minutos a operação Lava Jato ocupava no Jornal Nacional, da TV Globo, naquela época, além do volume de notícias que tais coletivas geravam. 

Toda essa pressão jurídica e midiática, somada ao cárcere e aos bloqueios de contas e bens, no entanto, ainda não esgotam os elementos para se obter uma delação premiada pela LJ. Voltando ao livro de Fernando Fernandes, encontramos outro recurso classificado pelo advogado como “fundamental”: impedir que recursos de habeas corpus fossem julgados. Neste trecho de seu livro, Fernandes narra o que ele classifica como uma nova indústria criada pela lei 12.850: a indústria das delações premiadas: 

“A delação acabou virando uma verdadeira indústria. A cada fase da Lava Jato o mecanismo se repetia. Prisão seguida de um sequestro para o Paraná. Os presos ficavam o tempo necessário na carceragem da Polícia Federal e seriam remetidos ao presídio estadual à conveniência de sofrimento ou da disponibilidade na Federal. Pressão lenta. Demora nas prestações de informações e pareceres em habeas corpus. Manobras para que as medidas não fossem julgadas. E ao fim a substituição da defesa por advogados que passavam a negociar a delação, chamados pelos advogados que não admitem a delação premiada de delacionistas”.

a generosidade aos delatores

Além de muito lucrativas para os advogados, sobretudo para os delacionistas, os acordos de delação premiada eram também muito vantajosos para os delatores. Segundo levantamento disponível no site da Veja intitulado “Delação Bem Premiada”, de 94 condenados, 27 tinham aceitado a delação. Somados os 27 delatores, as penas chegavam a 627 anos, reduzidos com os acordos para 87 anos – desconto de 85%. Os mais privilegiados, segundo o levantamento, foram Alberto Yousseff e Paulo Roberto Costa: 

O doleiro Alberto Youssef Crédito: Valter Campanato/Agência Brasil

“Os maiores beneficiados foram o doleiro Alberto Youssef, que deixou o Complexo Médico Penal nesta quinta-feira (17), e o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto, que já tirou a tornozeleira eletrônica e progrediu do regime semiaberto para o aberto no início deste mês. Peças centrais do esquema desbaratado na Lava Jato, eles receberam as penas mais altas entre todos os condenados (122 e 74 anos de prisão), mas, tendo puxado a fila das delações, foram bem recompensados e acabaram sentenciados a apenas 3 e 2 anos, respectivamente”.

Diferente foi o destino daqueles que optaram por não colaborar com os procuradores: 846 anos para 67 condenados – média de 12 anos para cada um. Ainda segundo a Veja, as penas “mais severas são as do ex-diretor da Petrobras Renato Duque (que soma 50 anos de pena), do ex-presidente da Eletronuclear Othon Pinheiro da Silva (43 anos), do ex-presidente da Engevix Gerson Almada (34 anos) e do ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto (30 anos)”.    

Assim como aconteceu com os réus, o tratamento dos promotores destinado aos advogados era seletivo, distinguindo advogados delacionistas e advogados “de combate” – conforme expressão de Fernandes. Para os primeiros, a proteção e o incentivo. Para os últimos, a perseguição. Tal comportamento pode ser notado ao longo da série de matérias intituladas como Vaza Jato, publicada pelo The Intercept Brasil em parceria com outros veículos. 

“DELAÇÃO VIROU UM CAOS”

“Deltan. Como disse ontem, não somos noviças virgens para ficar tão preocupados com o que vão pensar de nós. As críticas vem (sic) sempre, e ultimamente somos mais criticados pelo que não fazemos, como o PGR agora com o Pessoa. A minha crítica, e neste ponto falo pelo Januário, é que o procedimento de delação virou um caos. Creio que se a sua divisão de serviço pressupõe que eu e Januário estamos encarregados dos acordos, eles devem ser tratados por nós. Você é o Promotor natural e pode discordar, e eu sempre ouço todos, mas o que vejo agora é um tipo de barganha onde se quer jogar para a platéia, dobrar demasiado o colaborador, submeter o advogado, sem realmente ir em frente. Não sei fazer negociação como se fosse um turco (sic). Isso até é contrário à boa-fé que entendo um negociador deve ter. E é bom lembrar que bons resultados para os advogados são importantes para que sejam trazidos novos colaboradores.”

A citação acima é atribuída ao então procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, em publicação da Folha de São Paulo que integrou a série Vaza Jato, que contou sobre a interferência de Moro na negociação de delações entre réus e Ministério Público. Assim como esse, há muitos outros exemplos envolvendo as delações premiadas: vazamento de informações de investigações por procuradores para a imprensa, a fim de obter acordos de delação premiada, cassação do passaporte de uma filha para pressionar o pai a se entregar – com direito a varredura na casa e em contas e comunicações da filha -, chegando ao cúmulo da tramoia urdida entre procuradores e juiz para vazar delação da Odebrecht e interferir na política da Venezuela.

A delação premiada era realmente um trunfo para os desmandos e pretensões da Lava Jato, como comprovado pelas mensagens nunca desmentidas por integrantes do Ministério Público ou mesmo pelo ex-juiz. 

As histórias contadas pela Vaza Jato acabaram com as dúvidas daqueles que, mesmo quando Moro largou a toga para ser ministro do governo que ajudou a eleger, não acreditavam nos abusos e pretensões políticas da operação e de seus integrantes. Voltamos agora para 2017, para recordar o que já alertava o prof. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho em audiência pública no Congresso: 

“Vivencia-se hoje um supersistema inquisitório, que extrapola em vários sentidos os direitos e garantias individuais e os princípios que os fundam. Nesse sistema, o juiz torna-se o comandante supremo do combate ao crime, o que parece absurdo se se pensar na função jurisdicional e no princípio da imparcialidade, com equidistância das partes, claro, assentada na Constituição da República.

As novas tecnologias de obtenção de prova, dentre elas a delação premiada, têm oferecido a oportunidade de que alguns precisavam para tentar destruir os direitos e garantias individuais, em verdade nunca aceitos por aqueles que se pensam acima das limitações legais. Justo por isso, é imprescindível que o legislador delimite as regras que devem balizar a aplicação do instituto, não deixando nenhum espaço, se possível, para as arbitrariedades que vêm acontecendo de modo inconstitucional.” 

Atualmente, a lei da delação premiada foi redefinida pela lei nº 13.964/2019, também conhecida como “Lei Anticrime”, que reformou o Código Penal e o Código de Processo Penal. Sancionada por Jair Bolsonaro em 2019, o “Pacote Anticrime” foi sugerido pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, contando com 25 vetos do Congresso Nacional e 38 vetos sugeridos pela Casa Civil, o que acabou desconfigurando as pretensões do ex-juiz. 

Em declaração ao site Conjur, o jurista Pedro Serrano considerou a reforma como  importante para corrigir os desvios do instrumento da colaboração. “Essa postura de coletar delações gerais, como uma confissão de vida, tem possibilitado a delatores, sem consequências, misturar verdade com mentiras, chantagear, atingir inocentes por interesse próprio ou dos investigadores”.     

Polícia Federal em dia de operação. Crédito: Tomaz Silva

Ao todo, a força-tarefa da Lava Jato deflagrou 79 fases, sendo a primeira no dia 17 de março de 2014 e a última no dia 12 de janeiro de 2021. Durante o ápice de sua visibilidade nos meios de comunicação, que aconteceu entre novembro de 2014 e outubro de 2018 (quando Jair Bolsonaro foi eleito presidente da República), cada fase era exaustivamente repercutida pela imprensa, levando seus integrantes a alcançar uma popularidade inédita para promotores e juízes no Brasil.

O avanço em pulsos (fases), segundo Dallagnol, “permitiu um gerenciamento de prioridades e fez com que a Procuradoria, Polícia Federal e Receita Federal andassem juntas, passo a passo, focando o mesmo alvo”. Como explica o coordenador mais famoso da Lava Jato em seu livro, “A Luta Contra a Corrupção”: 

“Acontecia assim: primeiro, as linhas de investigação – derivadas em grande parte de colaborações – eram amadurecidas por meio de diligências, como o exame de dados bancários, fiscais e de e-mails. Quando as provas se tornavam suficientemente robustas, procuradores e delegados, com o auxílio da equipe da Inteligência da Receita, se alternavam pedindo buscas, prisões e conduções necessárias para aprofundar os trabalhos. Os requerimentos eram analisados pelo juiz Sergio Moro, titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, onde tramita o caso. Se deferidos, os mandados eram expedidos. (…) Em seguida, a PF organizava as diligências e executava os mandados, logo que amanhecia, em dia confidencial ajustado entre órgãos. Por vezes, integrantes da Receita e do Ministério Público também iam a campo”

Considerado como um dos pilares estratégicos de sustentação da Lava Jato – ao lado da Delação Premiada, da Cooperação e da Comunicação Social -, o avanço em pulsos permitia que a engrenagem da Lava Jato funcionasse bem azeitada, mantendo a opinião pública sempre atenta à espera do novo capítulo, trazendo continuidade para histórias já conhecidas e, ao mesmo tempo, revelando novos personagens em sua trama.

Cada nova fase trazia consigo a liberação de uma quantidade enorme de informação por meio dos documentos disponibilizados pelo MPF e pela Justiça Federal. Durante certo tempo, tal padrão na disponibilização de informações para os jornalistas trouxe consigo a credibilidade da transparência, o que, somado ao volume das informações e ao peso dos personagens envolvidos, colaborou para a adesão à pauta e ao enquadramento propostos pela força-tarefa. 

Com a imprensa ao seu dispor, a operação estabeleceu alguns grupos para serem favorecidos na cobertura jornalística – que não eram aqueles que representavam os veículos menores e nem os considerados progressistas. Assim, contrariando a impressão da transparência, informações privilegiadas eram vazadas seletivamente, servindo para acossar futuros delatores que, como explicou Dallagnol, produziam a matéria-prima para as novas fases da operação: as delações premiadas. 

Campanha promovida por procuradores contra a PEC 37. Crédito: Marcelo Camargo / Agência Brasil

COREOGRAFIA LAVA JATO

Tal dinâmica influenciou de forma decisiva os rumos políticos do país. Com tamanha exposição midiática, a Lava Jato foi ungida como a herdeira do discurso difuso das jornadas de junho de 2013, que reivindicava, entre tantas outras coisas, o combate à corrupção e o fim da impunidade. O episódio da PEC 37/2011, apelidada de “PEC da Impunidade” (apelido dado pelos procuradores do MPF), é exemplar nesse sentido. 

Foi propagandeando-se contra a corrupção e a impunidade que a Lava Jato gravou o imaginário da maioria do público, contando com a anuência da mídia, que por muito tempo evitou críticas mais contundentes à operação. Dessa forma, durante longos anos a LJ perpetrou seus discursos em TVs, rádios, jornais e pelas redes sociais, trazendo um novo repertório para o brasileiro: STF, TRF-4, habeas corpus, escusas, melindrar.

Entre as novidades que vieram para ficar estava o nome atribuído para cada operação, que sempre trazia uma ideia, uma sugestão, que aliada aos personagens da vez, induzia a um viés. Um exemplo disso é a operação “Aletheia”, que em grego antigo pode ser interpretada como “a busca da verdade”. Tal operação foi marcada pela condução coercitiva de Lula. Ou então a operação “Acarajé” que, segundo se alegou, foi inspirada pela alusão a “dinheiro ilegal”, mas que prendeu o baiano João Santana, então publicitário do PT.

Além dos nomes portentosos, certas operações foram deflagradas em momentos chaves da política nacional, principalmente para o mandato presidencial da presidenta Dilma Rousseff. Os protestos convocados entre 2015 e 2016 contra Dilma por grupos supostamente apartidários, como MBL, Vem Pra Rua e Revoltados OnLine, apresentavam uma coreografia sincronizada com as fases da Lava Jato. No dia 15/03/2015, por exemplo, aconteceu o primeiro protesto contra Dilma. E no dia 16/03/2015 a PF executou a 10º Fase: “Que País é Esse”, que prendeu Renato Duque; Manifestação no dia 12/04/2015, e no dia 15/04/2015 acontece a 12ª Fase da Lava Jato, que prende João Vaccari Neto, tesoureiro do PT; Manifestação no dia 16/12/2015, precedida pela 18º Fase: “Pixuleco II”, deflagrada no dia 13/08/2015; Manifestação dia 13/12/2015, e a operação “Catilinárias” prende Eduardo Cunha no dia 15/12/2015, por solicitação de Janot; Maior manifestação contra Dilma no dia 13/03/2016, e em 16/03/2016 o então juiz Sergio Moro libera a gravação de interceptação telefônica ilegal de Dilma e Lula para o Jornal Nacional.

Tantas coincidências ajudaram a fazer despertar desconfianças sobre as verdadeiras intenções da Lava Jato, mas não (via de regra) na grande mídia, que parecia particularmente interessada e alinhada com a operação. Hoje, no entanto, sabemos que as desconfianças eram justificadas. Especificamente sobre a escolha das datas da deflagração de fases, uma das reportagens publicada pelo The Intercept Brasil revela que Moro exercia influência sobre os procuradores da Lava Jato, que tinham tempo certo para estabelecer o ritmo das fases. 

O TIME E SEU CAPITÃO

Na parte 4 da série de reportagens chamada de Vaza Jato, intitulada “Não é muito tempo sem operação?”, publicada em 09 de junho de 2019, comprovou-se que Moro era o verdadeiro chefe de Dallagnol. Numa troca de mensagens entre o então magistrado e o ex-coordenador da Lava Jato, Moro sugeriu que Dallagnol trocasse a ordem das fases e cobrou agilidade em novas operações – entre outras demandas características de quem ocupa um posto privilegiado na hierarquia. Conforme nos contam Rafael Moro Martins, Alexandre de Santi e Glenn Greenwald, autores da reportagem:

“Em 21 de fevereiro de 2016, Moro se intrometeu no planejamento do MP de forma explícita. ‘Olá Diante dos últimos desdobramentos talvez fosse o caso de inverter a ordem da(sic) duas planejadas’, afirmou Moro, numa provável menção às fases seguintes da Lava Jato. Dallagnol disse que haveria problemas logísticos para acatar a sugestão. No dia seguinte, ocorreu a 23ª fase da Lava Jato, a Operação Acarajé.”        

Dias depois desse diálogo, Moro, num ato falho (ou não), pergunta para Dallagnol: “O que acha dessas notas malucas do diretório nacional do PT? Deveriamos rebater oficialmente? Ou pela ajufe?”, se referindo na primeira pessoa do plural, como se ele e a operação Lava Jato fossem de fato uma coisa só. Algum tempo depois, mais ingerência sobre o lançamento de novas fases: 

“Em 31 de agosto de 2016, Moro mais uma vez escancarou seu papel de aliado dos acusadores ao questionar o ritmo das prisões e apreensões. ‘Não é muito tempo sem operação?’ perguntou o então juiz ao procurador às 18h44. A última fase da Lava Jato havia sido realizada 29 dias antes – a operação Resta Um, com foco na empreiteira Queiroz Galvão. A periodicidade – e até mesmo a realização de operações – não deveria ser motivo de preocupação do juiz, mas Moro trabalhava com Dallagnol para impulsionar as ações do Ministério Público, como comprovam os diálogos e comentários habituais nas conversas entre os dois. ‘É sim’, respondeu Dallagnol mais tarde. A operação seguinte ocorreu três semanas depois.” 

A reportagem completa é recheada de revelações graves contra Moro e os procuradores da Lava Jato, mostrando que o juiz trabalhava junto com a acusação, o que aniquila as chances de qualquer acusado ter acesso a um juízo e um julgamento imparcial, como garante a Constituição.

Sobre o relacionamento entre juiz e procuradores, a reportagem traz um relato interessante: 

“’O juiz brasileiro, em regra, é um juiz formal, mais distante, mas tem mais proximidade com o MPF, porque são ambos funcionários públicos. Existe um desequilíbrio nesse sentido’, afirmou o advogado Antônio Sérgio Pitombo, que já defendeu na Justiça o atual chefe de Moro, Jair Bolsonaro.

‘Conheço o juiz Moro há muitos anos. Não é um modelo de juiz imparcial, tem um viés de favorecer a acusação. [Mas] O ponto sobre Lava Jato nunca foi o juiz Moro, mas o Tribunal Regional da Quarta Região [responsável por julgar na segunda instância os processos da operação] nunca corrigir o juiz Moro. Juízes com esse ímpeto [punitivista] sempre tivemos no Brasil. Mas nunca tivemos um tribunal tão leniente [com a primeira instância] como o TRF4. Ali parecia haver um pacto ideológico entre tribunal e juiz. O tribunal achava bonito aquilo’, criticou Pitombo.

O relator dos processos da Lava Jato no TRF4, o juiz de segunda instância João Pedro Gebran Neto, é amigo pessoal de Moro e, via de regra, se alinha ao atual ministro em suas sentenças.”

Essa equipe formada por Moro, Dallagnol, procuradores do MPF, Receita Federal, enfim, toda a força-tarefa, foi sempre assim divulgada pela mídia hegemônica: como um time coeso, que de fato – e com orgulho – trazia Moro como seu capitão..

Deltan Dallagnol, coordenador da Operação e o procurador Rodrigo Janot. Crédito: José Cruz/Agência Brasil

No oitavo volume da série Manuais de Atuação da Escola Superior do Ministério Público da União – ESMPU, “Forças Tarefas – Direito Comparado e Legislação Aplicável”, assinados pelos procuradores Januário Paludo (Coordenador), Carlos Fernando dos Santos Lima e Vladimir Aras, encontramos a seguinte definição: 

“Pode-se conceituar, genericamente, força-tarefa como uma equipe de especialistas dotada de meios materiais necessários à consecução de um objetivo específico, de reconhecida complexidade, e que recomende, por certo período de tempo, a coordenação de esforços de um ou mais órgãos, nacionais ou estrangeiros. A força-tarefa terá diretrizes e plano de ação comuns, guiados pelo interesse público na elucidação de infrações relevantes. É sempre um método de organização e distribuição do trabalho.”

Percebe-se que, basicamente, a colaboração é um fator intrínseco ao conceito de força-tarefa. O mesmo manual traz um estudo de caso das CC-5 (Caso Banestado), que serviu como referência brasileira para a Lava Jato. Naquela oportunidade, a colaboração entre instituições nacionais e, principalmente, com órgãos públicos internacionais (da Argentina, dos Estados Unidos, do Paraguai e do Uruguai) trouxe grande prestígio à operação. 

No site do Ministério Público Federal há uma seção inteira dedicada às informações sobre a Lava Jato. Lá o MPF destaca a colaboração com os seguintes órgãos: Polícia Federal, Conselho de Controle das Atividades Financeiras (Coaf), Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e a Controladoria Geral da União (CGU). Os maiores elogios, ou melhor, os únicos, são dedicados para a Polícia Federal: “O caso é um exemplo de união de esforços para lutar contra a corrupção, a impunidade e o crime organizado”. Em seu livro, Deltan Dallagnol é mais generoso e inclui a Receita Federal: 

“A cooperação nacional foi outra condição necessária para o sucesso das investigações. Houve uma integração sem precedentes entre órgãos públicos, particularmente entre Ministério Público, Polícia Federal e Receita. Em Curitiba, sobretudo entre agentes designados para o caso, havia uma proximidade profissional e um excelente relacionamento desde o Banestado. Isso contribuiu muito para a sinergia no trabalho conjunto. Dentro do próprio Ministério Público nunca existiu uma relação tão intensa entre as diferentes instâncias. Foram criados grupos de trabalho para atuar perante o Tribunal Federal da 4ª Região, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal. Esses grupos foram especialmente relevantes para instruir habeas corpus e evitar que as alegações de nulidade prosperassem nos tribunais.”

Segundo consta no site do MPF, o papel do setor de Inteligência da Receita Federal foi o seguinte: “a partir do afastamento do sigilo fiscal de pessoas e empresas, auditores da Receita Federal, mediante demanda do Ministério Público, analisaram milhares de dados, entregando aos procuradores da República mapas do fluxo da propina e de movimentações de dinheiro altamente suspeitas”. Mas segundo matéria publicada pela Folha de S. Paulo produzida a partir das mensagens obtidas pelo The Intercept Brasil, o funcionamento, em alguns casos, era um tanto informal – e até mesmo ilegal. 

Driblando a LEI

A reportagem “Lava Jato driblou a lei para ter acesso a dados da Receita, mostram mensagens”, publicada no dia 18 de agosto de 2019 em parceria com o The Intercept Brasil, revela que integrantes da força-tarefa buscaram informações da Receita sem requisição formal e sem autorização judicial para quebra de sigilo fiscal de investigados. Os pedidos informais eram solicitados pelos procuradores para o auditor fiscal Roberto Leonel, que chefiou a área de Inteligência da Receita Federal de Curitiba até 2018 e que, com a ascensão de Bolsonaro à presidência e a nomeação de Sergio Moro para o cargo de ministro da Justiça, assumiria a presidência do Coaf.

Um dos casos narrados envolve pessoas ligadas ao ex-presidente Lula, que tiveram suas informações fiscais varridas. 

“(..) a  força-tarefa pediu a Leonel que levantasse informações sobre uma nora de Lula, o caseiro do sítio, o patrimônio dos seus antigos donos e compras que a mulher do líder petista, Marisa Letícia Lula da Silva, teria feito nessa época.

Em 15 de fevereiro, o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa, sugeriu aos colegas num grupo de mensagens do Telegram que pesquisassem as declarações anuais de Imposto de Renda do caseiro Elcio Pereira Vieira, conhecido como Maradona. 

‘Vcs checaram o IR de Maradona? Não me surpreenderia se ele fosse funcionário fantasma de algum órgão público (comissionado)’, disse. ‘Pede pro Roberto Leonel dar uma olhada informal.’‘”

Após a publicação da matéria, Deltan Dallagnol alegou em uma de suas redes sociais que as solicitações feitas a Leonel eram legais. “A Receita passou informações para o MP na Lava Jato em 3 situações, sempre com amparo na lei: 1) Quando houve quebra de sigilo fiscal decidida por juiz 2) quando o MP requisitou informações fiscais, poder dado pela Lei Complementar 75/93 e reconhecido em atos e decisões da Administração Pública e do Judiciário 3) quando a Receita identificou indícios de crimes, em apuração de iniciativa própria ou a partir de informações recebidas do Ministério Público, de outros órgãos ou de cidadãos.” 

Já os advogados do ex-presidente Lula, Cristiano Zanin Martins e Valeska Martins, se manifestaram através de nota, publicada na mesma matéria da Folha de São Paulo:

Nota assinada pelos advogados Cristiano Zanin Martins e Valeska Martins, que defendem o ex-presidente Lula, afirma que o fato de os procuradores conversarem sobre consulta a dados do Imposto de Renda do caseiro em data anterior à quebra de sigilo autorizada pela Justiça mostra que ‘autoridades agiam sem qualquer apreço às garantias fundamentais, à margem do devido processo legal orientadas por uma prática intimidatória e arbitrária visando a aniquilar o direito de defesa‘”.

A quebra do sigilo do caseiro Élcio Vieira, conhecido como Maradona, só foi autorizada pelo então juiz Sergio Moro em 22 de fevereiro de 2016. A conversa sobre “olhada informal” nos dados ocorreu uma semana antes.

Segundo a defesa de Lula, a quebra de sigilo sem autorização configura crime e pode configurar também abuso de autoridade.

Antes de qualquer decisão judicial de quebra dos sigilos, os procuradores da Lava Jato e ocupantes de elevados cargos da Receita Federal acessavam informal e permanentemente informações e dados protegidos pelo sigilo constitucional e legal contra alvos previamente eleitos e todas as pessoas a ele relacionadas“, escreveram os dois advogados.

Após as divergências com Moro, Bolsonaro criou a Unidade de Inteligência Financeira (UIF), que substitui o Coaf. A mesma portaria que oficializou a mudança também comunicou a exoneração de Roberto Leonel do governo Bolsonaro.

https://www.youtube.com/watch?v=zHW2_3Qb8ps

COOPERAÇÃO INTERNACIONAL

A seção acerca da cooperação internacional disponível na página dedicada à Lava Jato no site do MPF apresenta um mapa-múndi, com distinção em duas cores para os pedidos de cooperação internacional feitos (597 feitos a 58 países) e recebidos (653 solicitados por 41 países). Os países mais requeridos pelos procuradores foram Suíça (175 pedidos) e EUA (77 pedidos). O campeão de solicitações feitas ao Brasil é o Peru, com 274. Os números atestam a afirmação feita por Dallagnol em seu livro sobre a força-tarefa, da qual foi coordenador: 

A cooperação é outra chave que abriu portas na investigação. Em primeiro lugar, vale salientar a ajuda internacional, que nos permitiu ter acesso a contas bancárias, na sua maior parte europeias e em nome de offshores sediadas em paraísos fiscais, usadas para pagar e receber propina.

Tal cooperação com órgãos e agentes estrangeiros também foi ponto destacado na atuação da força-tarefa CC-5, também conhecida como Operação Banestado. Na época, procuradores do MPF, delegados da PF e parlamentares atuantes na CPMI que analisava o caso estiveram em contato direto com autoridades estadunidenses, mapeando contas e transações financeiras alvo de suspeitas de lavagem de dinheiro e sonegação de impostos. Como explica o estudo de caso das CC-5 realizado por procuradores do MPF:   

Ao final de 2003 havia sido criada uma rotina de trabalho entre as autoridades brasileiras e americanas, com o trânsito bilateral de informações sobre a criminalidade financeira no Brasil e nos Estados Unidos. Também se estabeleceu um padrão de cooperação direta, sem intermediários, na quebra de sigilo de contas em bancos de Nova York por parte dos promotores americanos com a posterior cessão dos documentos e das informações eletrônicas às autoridades brasileiras, o que foi facilitado pela relação de confiança que se estabeleceu entre os procuradores brasileiros, o Promotor Assistente Adam Kaufmann e o Agente Especial Thomas Dombrowski. Da mesma forma, no que se refere ao MLAT, as divergências foram superadas, sendo aberto caminho para mais de uma centena de pedidos de quebra de sigilo, já com a intermediação do DRCI, que passara a atuar fortemente na arena internacional como nova autoridade central brasileira para a cooperação penal.”

O parágrafo acima faz parte do estudo de caso sobre a força-tarefa CC-5 no já referido oitavo volume do Manual de Atuação da ESMPU, assinado por Januário Paludo (coordenador), Carlos Fernando dos Santos Lima e Vladimir Aras. Duas siglas são importantes para entender o desenrolar dos acontecimentos em torno da cooperação internacional conduzida pela Lava Jato. 

MLAT é a sigla em inglês para o Acordo de Assistência Judiciário-Penal (em inglês, Mutual Legal Assistance Treaty), que segundo informações do site Conjur, “é o meio bilateral mais usado por autoridades brasileiras para solicitar cooperação jurídica internacional e pedir diligências ao governo dos Estados Unidos”. O MLAT foi incorporado à lei brasileira pelo decreto 3.810/01. 

A outra sigla é DRCI – Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, órgão da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e Segurança Pública, autoridade central para acordos internacionais envolvendo o Brasil. 

Outras siglas também são importantes e recorrentes quando o assunto é cooperação internacional. A SCI – Secretaria de Cooperação Internacional é vinculada ao gabinete do Procurador-Geral da República, responsável por “assuntos de cooperação judiciária e jurídica internacional com autoridades estrangeiras e organismos internacionais, bem como no relacionamento com órgãos nacionais voltados ás atividades próprias da cooperação internacional” – definição encontrada no site do MPF; e a DEEST/SNJ – Departamento de Estrangeiros vinculado a Secretaria Nacional de Justiça, cuja atribuição é  “processar, opinar e encaminhar os assuntos relacionados com a nacionalidade, a naturalização e o regime jurídico dos estrangeiros. Além disso, é o órgão responsável pelos assuntos relacionados com as medidas compulsórias de expulsão, extradição e deportação, instruir processos de reconhecimento da condição de refugiado e de asilo político, fornecer suporte ao comitê nacional para os refugiados (CONARE), competência estabelecida pelo decreto nº 6.061, de 15 de março de 2007”, conforme definição oficial.

Ou seja, existem órgãos, tratados e acordos que estabelecem regras para a cooperação jurídica entre o Brasil e outros países. Além disso, a força-tarefa CC-5 funcionou como uma relevante referência para o relacionamento entre instituições e agentes públicos com autoridades estrangeiras. Mesmo com todo esse arcabouço, a Lava Jato procurou atalhos para sua atuação com outros países, como nos mostram algumas publicações da série Vaza Jato.    

Deltan Dallagnol se reúne com deputados da comissão especial que analisa o projeto contra a corrupção Crédito: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

“LAVANDERIA” DE PROVAS

Dois casos são emblemáticos: a obtenção de provas ilícitas por meio de contatos informais com autoridades estrangeiras para prender alvos prioritários; e a relação fora dos padrões com agentes públicos dos EUA. 

A força-tarefa da Lava Jato em Curitiba utilizou sistematicamente contatos informais com autoridades da Suíça e Mônaco para obter provas ilícitas com o objetivo de prender alvos considerados prioritários –encarcerados preventivamente, muitos deles vieram a se tornar delatores. Menções a esse tipo de prática ilegal foram encontradas com frequência em conversas entre 2015 e 2017, conforme revelam mensagens do aplicativo Telegram enviadas por fonte anônima ao site The Intercept Brasil e analisadas em parceria com o UOL

Assim começa a matéria intitulada “Lava Jato usou provas ilegais do exterior para prender futuros delatores”, publicada em 27 de setembro de 2019 pelo site UOL. Na matéria podemos notar a preocupação do procurador Vladimir Aras, que à época comandava o já citado SCI, que questionava os caminhos percorridos para a obtenção das provas. Porém, Dallagnol parecia não estar muito preocupado, admitindo que “é natural tomar algumas decisões de risco calculado em grandes investigações”. Segundo a apuração dos jornalistas que assinam a matéria, era compreensível a despreocupação do coordenador da Lava Jato: 

A estratégia, coordenada por Dallagnol, era montar uma espécie de ‘lavanderia’ de provas obtidas no exterior: os procuradores recebiam informalmente documentos e informações de autoridades estrangeiras e então estudavam formas de legalizar aquelas evidências perante os tribunais brasileiros. Sobretudo no caso da Suíça, havia um jogo combinado.

Ainda segundo a matéria, as provas obtidas envolviam nomes fundamentais, a exemplo de “diretores da Petrobras Paulo Roberto Costa e Renato Duque; o então presidente da Transpetro, Sérgio Machado, além de executivos da Odebrecht, entre eles, o ex-presidente da empresa Marcelo Odebrecht”. Outra prática atestada era a sondagem sobre pessoas e empresas de interesse da operação, entre essas, parentes de Luiz Inácio Lula da Silva.  

Outro exemplo do comportamento fora dos padrões oficiais por parte da Lava Jato foi a série de encontros entre procuradores do MPF e agentes do FBI e DOJ. O caso é exposto em reportagem da Agência Pública, realizada pela série Vaza Jato em parceria com o The Intercept Brasil. 

Publicada em 12 de março de 2020 com o título “Como a Lava Jato escondeu do governo federal visita do FBI e procuradores americanos”, conta a passagem de uma delegação de 17 americanos pela capital paranaense no dia 05 de outubro de 2015, com objetivo de conversar com procuradores do MPF e com advogados de empresários sob investigação no Brasil. “Entre eles estavam procuradores americanos ligados ao Departamento de Justiça (DOJ, na sigla em inglês) e agentes do FBI, o serviço de investigações subordinado a ele. Em quatro dias intensos de trabalho, receberam explicações detalhadas sobre delatores como Alberto Youssef e Nestor Cerveró e mantiveram reuniões com advogados de 16 delatores que haviam assinado acordos entre o final de 2014 e meados de 2015 em troca de prisão domiciliar, incluindo doleiros e ex-diretores da Petrobras”, como conta Natalia Viana, Andrew Fishman e Maryam Saleh, autores da reportagem. 

Segundo um acordo bilateral, atos de colaboração em matéria judicial entre Brasil e Estados Unidos – tais como pedir evidências como registros bancários, realizar buscas e apreensões, entrevistar suspeitos ou réus e pedir extradições – normalmente são feitos por meio de um pedido formal de colaboração conhecido como MLAT, que estipula que o Ministério da Justiça deve ser o ponto de contato com o Departamento de Justiça americano. O procedimento é estabelecido pelo Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal, tratado bilateral assinado em 1997.”

O texto faz a ressalva de que a cooperação internacional não é regulamentada por lei nacional, permitindo aos procuradores explorarem “zonas cinzentas que permitiram aos americanos avançar suas investigações, escondendo esse fato do governo federal”.

Apesar da tentativa de ocultar a vinda de agentes estadunidenses, o Ministério da Justiça é informado da presença da delegação estrangeira em Curitiba quando tais agentes já estão atuando no território brasileiro, o que teria causado “indignação” no Poder Executivo. No diálogo transcrito entre Vladimir Aras e Deltan Dallagnol, a hipótese sobre o nervosismo do Executivo é levantada por Aras: a FCPA.

“A razão da preocupação é a FCPA – Foreign Corrupt Practices Act, ou Práticas de Corrupção no Exterior –, uma lei americana que, desde 1988, permite ao DOJ investigar e punir, nos Estados Unidos, atos de corrupção que envolvam autoridades estrangeiras praticados por empresas e pessoas estrangeiras, mesmo que não tenham ocorrido em solo americano – basta que tenha havido transferência de dinheiro por algum banco americano, que se vendam ações de empresas envolvidas na bolsa nos EUA, ou até mesmo que a propina tenha sido paga em dólares.

Com base nessa lei, a divisão de FCPA do DOJ – a mesma que entre 2014 e 2016 foi chefiada por Stokes – investigou e puniu com multas bilionárias empresas brasileiras alvos da Lava Jato, entre elas a Petrobras e a Odebrecht.”

LAVA JATO E O FBI

O ponto alto da matéria é a instrução enviada por e-mail na semana seguinte à visita da delegação estadunidense. O conteúdo da mensagem, endereçada a Patrick Stokes –  chefe da divisão que cuidava de corrupção internacional no DOJ -, é debatido por meio de mensagens trocadas entre os procuradores, com autoria de Orlando Martello e aprovação de Deltan Dallagnol. O objetivo era agradecer a visita aos americanos e informar sobre as maneiras dos agentes do DOJ e do FBI tomarem o depoimento dos já delatores brasileiros. Nesse sentido, Martello informa sobre a maneira convencional, mas oferece também outras possibilidades “mais flexíveis”.

A seguir, Martello detalha quatro opções para conduzir as entrevistas de maneiras ‘mais flexíveis’. Primeiro, eles poderiam ouvir os colaboradores da Lava Jato nos Estados Unidos – o que é, para ele (e para Stokes), a melhor ideia, embora parte deles pudesse não aceitar ir voluntariamente para os EUA. E então sugere: ‘Nós podemos pressioná-los um pouco para ir para os EUA, em especial aqueles que não têm problemas financeiros, dizendo que essa é uma boa oportunidade, porque, embora seja provável que autoridades dos EUA venham para o Brasil para conduzir as entrevistas, as coisas podem mudar no futuro’. Assim seria possível evitar as limitações impostas pela decisão do STF e novas decisões que poderiam se seguir. Ele prossegue: ‘Então podemos sugerir que é melhor garantir a imunidade deles o mais rápido possível’”.

A decisão do STF mencionada refere-se ao entendimento do Supremo de que todas as diligências no Brasil devem ser presididas por autoridades brasileiras, como explica a reportagem. Já em solo norte-americano, os delatores estariam por conta e risco próprios, como confirmam indagações posteriores, quando, de fato, os colaboradores começaram a prestar depoimento nos Estados Unidos, sem intermediação do DRCI.       

À época, o procurador Vladimir Aras é avisado por Dallagnol que os colaboradores estão sendo ouvidos nos EUA. Preocupado, Aras trava um diálogo tenso com Dallagnol. 

“‘O ideal seria eles pedirem isso via DRCI: – execução pelo MPF (mera notificação) – transferência voluntária do colaborador aos EUA para depor – emissão de ‘safe passage’ para o colaborador antes da viagem – tomada do depoimento nos EUA – retorno do colaborador ao Brasil’. ‘Safe Passage’ seria um salvo-conduto, uma garantia que os brasileiros não seriam presos ao irem dar depoimento em solo americano. Dallagnol argumenta que o delator em questão não está preso, e Aras explica que isso não importa: ‘A pessoa a ser transferida com salvo-conduto não precisa estar presa. Pode ser vítima, perito, testemunha, acusado/suspeito’. Dallagnol admite, então, que a força-tarefa pode ter errado ao não avaliar as consequências da parceria com os americanos durante a visita secreta a Curitiba. ‘Quando estavam aqui, e não tínhamos ainda restrições, mas estávamos operando no automático, sem conhecimento da dimensão das consequências e pensando em aplicar o tratado diretamente (o que ainda não está fora de cogitação, estamos todos refletindo, creio), dissemos que não haveria problema em os colaboradores, que pudessem, ir aos EUA para prestar as declarações’.”

A matéria é extensa, abordando ainda outras agendas entre os procuradores brasileiros e as autoridades norte-americanas. A reportagem relembra ainda o acordo bilionário firmado entre o DOJ e a Petrobras – episódio que envolve outro enredo, o da polêmica “Fundação” a ser administrada pelo MPF, conforme sugestão da Lava Jato, para o uso de parte da multa que seria revertida para a União, ideia frustrada por decisão do ministro Alexandre de Moraes – destaque-se ainda a fala do ministro Gilmar Mendes sobre o caso: “Lava Jato virou partido político”. 

Em dezembro de 2016, pouco antes do Natal, a Odebrecht, junto com sua subsidiária Braskem – uma sociedade com a Petrobras –, fez um acordo com o DOJ no qual ambas concordaram em pagar um mínimo de US$ 3,2 bilhões aos EUA, Suíça e Brasil – total depois reduzido para US$ 2,6 bilhões – pelas práticas de corrupção ocorridas fora dos EUA. Na época, foi o maior acordo global de corrupção internacional. O acordo firmado com os EUA pelas empresas garante que elas têm que colaborar com as autoridades americanas em quaisquer investigações, disponibilizando seus funcionários para questionamentos sempre que chamados”.

Em ambas as reportagens abordadas aqui, quando questionada pelos repórteres, a Lava Jato sempre negou supostas irregularidades, justificando suas ações.

O movimento Vem Pra Rua faz ações de apoio à Operação Lava Jato. Crédito: Valter Campanato/Agência Brasil

Diferente do estabelecido pela Constituição Federal de 1988, onde a publicidade é estabelecida como um dos princípios que regem as atividades dos agentes públicos em seu “caráter educativo, informativo ou de caráter social”, a comunicação foi utilizada pela Lava Jato de forma estratégica, sendo eleita por Deltan Dallagnol como um dos quatro pilares que sustentaram a metodologia utilizada durante os quase sete anos da força-tarefa. 

Para além das coletivas de imprensa e informações pertinentes para levar ao conhecimento do público o desenrolar das fases que caracterizaram as ações do Ministério Público, Polícia Federal e Justiça, a Lava Jato utilizou-se de expedientes diversos, em muitas oportunidades além das margens da ética e até mesmo da lei. Foram operados vazamentos seletivos, dadas informações privilegiadas para este ou aquele veículo, coordenadas ações em momentos decisivos da vida pública nacional, publicados artigos assinados por procuradores e veiculados em veículos de circulação nacional e feitas campanhas publicitárias. Chegou-se, inclusive, ao cúmulo da liberação de gravações obtidas por grampos ilegais envolvendo a então presidente do Brasil.

Ou seja, não foram poucos os episódios inéditos, polêmicos e condenáveis perpetrados por agentes do estado. 

Tudo isso aliado, em grande parte, a uma imprensa submissa e parceira, interessada em capitalizar com a audiência produzida com as notícias obtidas por meio das fontes oficiais, mas nem sempre nominadas. Hoje, passados mais de um ano do encerramento da Lava Jato e conhecidos os impactos trazidos pela relação obscura entre poder público e mídia, alguma autocrítica por parte de setores da imprensa já é conhecida, persistindo ainda o silêncio por parte da administração pública sobre o episódio. 

A gênese de tal simbiose é imprecisa. Uma hipótese plausível foi registrada em 2013, quando o Ministério Público e suas entidades associativas promoveram decisivo ativismo sobre a votação da PEC 37, que tinha por objetivo decidir o protagonismo do poder de investigação entre MP e polícias. Batizada pelos procuradores como “PEC da Impunidade”, a pauta começou a ocupar espaço entre as diversas manifestações nas conhecidas Jornadas de Junho, contando já naquele momento com a cobertura e com o apoio da grande mídia. A dobradinha deu resultado, favorecendo a vontade dos integrantes do MP: 430 votos contra, 9 favoráveis e 2 abstenções.

No primeiro momento, no dia 17 de março de 2014, a operação Lava Jato teve uma cobertura banal por parte dos veículos de comunicação. Tal banalidade se manteve até a sétima fase, batizada de “Juízo Final” e deflagrada no dia 14 de novembro de 2014 – pouco mais de duas semanas após a reeleição de Dilma Rousseff no segundo turno. A partir daí o interesse da imprensa sobre a Lava Jato tomou maior proporção, motivado pela revelação do “clube” de empreiteiras que pagavam propina para políticos e agentes públicos com objetivo de conquistar favorecimento em licitações. Explica Deltan Dallagnol, em seu livro “A Luta Contra A Corrupção”:  

Desde que os interesses em jogo cresceram, nós nos preocupamos em conferir máxima transparência ao nosso trabalho. Além de a Constituição estabelecer a publicidade como regra, ela é uma forma de prestar contas à sociedade e garantir a credibilidade fundamental para a Lava Jato. ‘A luz do sol é reconhecida como o melhor dos desinfetantes’, disse o magistrado da Suprema Corte estadunidense Louis Brandeis no início do século XX. Isso nos levou a inovar com coletivas à imprensa não só na deflagração de fases da operação, mas também no oferecimento das denúncias.

Após a sétima fase, cada nova operação deflagrada pela Polícia Federal nas primeiras horas da manhã marcava um novo episódio da novela Lava Jato, que passou a ser acompanhada diariamente por grande parte da população. Com isso, o número de jornalistas e veículos participando da cobertura sobre a operação só aumentava. Sobre a rotina de trabalho dos profissionais de imprensa, nos relata a repórter Amanda Audi, em publicação do The Intercept Brasil:

 “O celular dos jornalistas começava a apitar antes das 7h da manhã com um texto da PF. Por volta das 10h, os policiais faziam uma coletiva de imprensa junto com membros do MPF. Em seguida, o MPF divulgava o seu release, já com os dados da denúncia. Por fim, a Justiça Federal informava o número da ação judicial, junto com a chave para o acesso. Com essa ferramenta, os jornalistas tinham acesso a tudo relacionado à operação: das investigações iniciais até os pedidos de prisão. Nos próximos dias, podiam acompanhar o andamento em tempo real.”

Audi aponta um estranhamento com a situação: “Geralmente, operações de combate à corrupção — principalmente as que envolvem poderosos — costumam ser difíceis de acompanhar. É preciso ter boas fontes, gastar sola de sapato e batalhar para conseguir qualquer informação. Na Lava Jato, tudo ficou muito fácil. Havia uma profusão de documentos disponíveis. Os agentes responsáveis eram acessíveis. Todo dia havia algo novo”. A jornalista explica que a falta de transparência corriqueira fez com que aquele nível de acesso fosse considerado exemplar, apesar de gerar um efeito colateral: “Mas o fato é que as facilidades fizeram com que a imprensa ‘comprasse’ a Lava Jato quase que imediatamente. Denúncias do Ministério Público eram publicadas em reportagens quase na íntegra, assim como os inquéritos da PF e as decisões de Moro”. 

Certamente o comportamento da imprensa não passou despercebido para a força-tarefa. Tal comportamento, combinado ao volume crescente de informações trazidas por inúmeros documentos, além, é claro, dos interesses daqueles poucos empresários que comandam os mais conhecidos grandes veículos do país, potencializaram  aquele que seria um dos mais importantes pilares da Lava Jato, a comunicação – sendo importante para essa análise já saber se antemão que, de acordo com o Media Ownership Monitor Brasil de 2017, dos 50 veículos analisados com interesses econômicos, políticos e/ou religiosos, 26 pertencem a apenas 5 grupos.

ENGRENAGEM DA DELAÇÃO

A publicidade conferida às investigações teve o efeito salutar de alertar os investigados em potencial sobre o aumento da massa de informações nas mãos dos magistrados, favorecendo novas confissões e colaborações. Mais importante: garantiu o apoio da opinião pública às ações judiciais, impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem o trabalho dos magistrados, o que, como visto, foi de fato tentado”.

A citação acima facilmente poderia ser atribuída ao que aconteceu na Lava Jato, se ela não tivesse sido publicada por Sergio Fernando Moro em 2004, em seu artigo intitulado “Considerações Sobre a Mani Pulite”. No mesmo artigo, em um trecho sobre os métodos utilizados pela Mani Pulite em relação à imprensa, Moro não escreve, mas escolhe um trecho revelador, atribuído a Mark Gilbert: 

(…) a investigação da “mani pulite” vazava como uma peneira. Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão eram veiculados no “L’Expresso”, no “La Republica” e outros jornais e revistas simpatizantes. Apesar de não existir nenhuma sugestão de que algum dos procuradores mais envolvidos com a investigação teria deliberadamente alimentado a imprensa com informações, os vazamentos serviram a um propósito útil. O constante fluxo de revelações manteve o interesse do público elevado e os líderes partidários na defensiva.

Brasília – Manifestantes contra Lula protestam na Esplanada dos Ministérios. Crédito: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Moro já pediu “escusas” pela divulgação para rede nacional do áudio de Lula e Dilma, obtido por meio de grampo ilegal. Dallagnol, por sua vez, negou repetidas vezes que ele, ou algum outro procurador, praticava vazamentos, sempre induzindo lateralmente a responsabilidade a outras figuras ligadas aos processos, mais especificamente, a advogados e réus. Assim podemos entender na seguinte passagem do livro “A Luta Contra a Corrupção”, de Deltan Dallagnol:

Por outro lado, em outros casos houve, sim, vazamentos que não podem ser imputados incautamente à autoridade, pois, como dissemos, só atrapalham a sua atividade. Em geral, as informações vazadas estavam em relatos entregues por investigados que decidiram colaborar com a Justiça. Como as medidas apropriadas da investigação poderiam depender de sigilo e do fator surpresa para terem chance de êxito, o material permanecia confidencial. Esses vazamentos prejudicaram as apurações e, mais ainda, constituem crimes que estão sendo investigados. Porém a verdade é que é muito difícil descobrir quem os cometeu. Em primeiro lugar, o rol dos suspeitos é extenso, já que muitas pessoas tinham conhecimento dos relatos: defensores e outros criminosos que estiveram envolvidos nos crimes e nem sempre sabemos quem são”.

A matéria que traz detalhes sobre a prática de vazamentos pelos procuradores publicada pelo The Intercept Brasil na série Vaza Jato, porém, desmente Dallagnol. Nela, o próprio Dallagnol fornece informações privilegiadas para um repórter do Estadão, que vira manchete na capa do jornal O Estado de São Paulo. Na mesma matéria podemos ler o diálogo entre os procuradores Carlos Fernando dos Santos Lima e Orlando Martello, no qual Lima responde a Martello quando questionado sobre suas intenções em revelar os “próximos passos” da operação em uma coletiva : ”Nem sei do que está falando, mas meus vazamentos objetivam sempre fazer com que pensem que as investigações são inevitáveis e incentivar a colaboração”. Questionado pelo veículo sobre os episódios, o Ministério Público Federal negou os vazamentos, tergiversando sobre o conceito de “vazamento” – apesar dos próprios procuradores utilizarem a palavra “vazamento” para definir os atos em questão.

Em ambos os casos, tanto Deltan Dallagnol quanto Carlos Fernando dos Santos Lima utilizam os vazamentos para pressionar e incentivar réus e investigados a celebrarem acordos de delação premiada. Vale lembrar que as delações, de acordo com a Lei 12.850/13, deveriam acontecer de forma espontânea. Diferente do que acontecia na Lava Jato, que se utilizava do encarceramento, do bloqueio de contas, da perseguição de familiares e da exposição midiática para forçar seus alvos a contribuírem.  

Delação e cooperação já tinham sido importantes bases do caso Banestado. Contudo, na Lava Jato, como a ordem de grandeza dos atores enfrentados é outra, um quarto elemento foi fundamental para a atuação da força tarefa: a comunicação social. Cada fase da operação passou a ser amplamente divulgada para que a população ficasse informada sobre os desdobramentos do caso. O olhar atento da sociedade estimulou os agentes públicos que lidavam com a operação a torná-la uma prioridade, evitando que caíssem na “vala comum” em que casos criminais demoram mais de uma década para serem julgados. Isso reduziu as chances de impunidade, incentivando os investigados a celebrarem acordos de colaboração. O apoio da opinião pública se mostrou imprescindível num caso que enfrenta poderosos interesses políticos e econômicos, por ser capaz de neutralizar os ataques que vêm de fora do sistema judicial.

Neste trecho, também retirado do livro escrito por Dallagnol, confirma-se a associação entre a delação e a comunicação social, que por sua vez geraram novas pistas para investigações a serem realizadas pelo COAF, pela Receita Federal, Polícia Federal, levando a novos investigados e, consequentemente, a novas fases da operação. Assim se completa o uso dos quatro pilares, a metodologia Lava Jato.      

JORNALISMO E VAZA JATO

Em artigo escrito para para o livro “Tempestade Perfeita – Sete Visões da Crise do Jornalismo Profissional”, publicado em 2021 pela Editora Real, Marina Amaral dedica parte do seu texto para abordar o desempenho da imprensa durante a Lava Jato. Já no início de sua argumentação, Amaral alerta para o “perigo óbvio” que os jornalistas têm que lidar quando suas únicas fontes são as oficiais. Segundo a jornalista, tal situação é comum entre os repórteres da editoria policial, que muitas vezes contam apenas com informações repassadas por policiais e promotores públicos. “Por isso a regra número um dos jornalistas é tanto desconfiar das versões oficiais (principalmente quando feitas em off, isto é, com a condição de que o jornalista não revele quem as prestou) quanto ‘cercar a pauta’, procurando outras fontes para, no mínimo, checar informações e averiguar os interesses em jogo”. Especificamente sobre a cobertura da Lava Jato, avalia:

Acho que esse foi o grande erro da cobertura da Lava Jato. Sem entrar em considerações políticas, podemos dizer que a imprensa passou por cima dessa precaução e ‘comeu na mão’ do então juiz federal Sergio Moro, assim como do procurador Deltan Dallagnol e do procurador-geral da República, Rodrigo Janot. E isso corrompeu a narrativa sobre um escândalo que atravessou a política nacional como um raio e com imensas consequências para o país”        

Marina Amaral é jornalista desde 1984, tendo trabalhado durante dez anos na grande imprensa. Após o período, trabalhou na Caros Amigos, onde foi repórter, editora e diretora até 2007. Em 2011, foi uma das fundadoras da Agência Pública, a primeira agência de jornalismo investigativo sem fins lucrativos do Brasil, que durante a cobertura da Lava Jato trabalhou de maneira diferente da lógica hegemônica estabelecida pelos grandes veículos, com participação, inclusive, na série Vaza Jato. 

No artigo, Marina Amaral lembra da publicação da então ombudsman – palavra sueca que significa “cidadão” e que, no jornalismo, designa a função do profissional que representa os leitores, exercendo um papel crítico sobre a cobertura jornalística de um veículo -,  da Folha de S. Paulo, Paula Cesarino Costa. Em 19 de março de 2017, recém completados três anos de Lava Jato, ele publicou o texto “Jato de Água Fria”, no qual narra uma coincidência reveladora, acontecida quando Janot entregou ao Supremo Tribunal Federal (STF) 83 pedidos de abertura de inquérito, todos com sigilo de justiça. A surpresa foi quando constatou os mesmos 16 nomes vazados – cinco ministros do atual governo, os presidentes da Câmara e do Senado, cinco senadores, dois ex-presidentes e dois ex-ministros -, em manchetes de TV, rádio, internet e publicados na Folha, no Estadão, no jornal O Globo e no Valor.

Após apuração, a ombudsman soube que os nomes tinham vazado numa “entrevista coletiva em off”, como explica Paula:

Em geral, a informação em “off”, aquela que determinada fonte passa ao jornalista com o gravador desligado e com proteção de anonimato, não se coaduna com a formalidade de uma entrevista coletiva – para a qual os jornalistas são convocados protocolarmente a ouvir determinada autoridade. Após receberem a garantia de que não seriam identificados, representantes do Ministério Público Federal se reuniram com jornalistas, em conjunto, para passar informações sobre os pedidos de inquérito, sob segredo, baseados nas delações de executivos da Odebrecht”.

Na continuação do texto, Paula chama atenção para o fato de que, de acordo com a lei, as delações premiadas preveem sigilo até a apresentação da denúncia. Cumprindo sua função de representante do povo, do leitor, Paula levanta algumas perguntas: “Qual o sentido de se deixar conhecer só alguns dos envolvidos? Qual a estratégia dos procuradores, parte interessada do processo, ao divulgar uns e omitir outros? Por que não liberar, por exemplo, os que estão nos pedidos de arquivamento?”. Completando: “Para o leitor, resulta em história contada pela metade. Informação passada a conta-gotas tira o entendimento do todo e levanta a desconfiança de manipulação”. 

Ao longo dos seus quase sete anos de atividade, a manipulação por parte da Lava Jato e a conivência interessada da imprensa ia se tornando cada dia mais flagrante. Vale dizer ainda que tal conivência também se encontrava em grande parte da sociedade, seja nas instituições públicas, privadas ou civis, no próprio povo. Questionar a Lava Jato era como bater num sino, que além de não provocar nem um risco em sua superfície, ainda atraía pelo ressoar a reprovação imediata da maioria que tinham Moro e Dallagnol como verdadeiros heróis do combate à corrupção. Nesse sentido, é preciso fazer justiça às bravas vozes que destoaram do coro dos contentes, sejam com artigos e textos opinativos nos grandes jornais, sejam nos veículos independentes – em ambos os casos, sempre soterrados pela avalanche do jornalismo diário e do consenso fabricado. 

Assim sendo, não foi apenas com a Vaza Jato que o alerta sobre a Lava Jato foi ligado, ou mesmo, quando incrivelmente Moro achou uma boa ideia fazer parte, como ministro, do governo Bolsonaro. A suspeita sobre a manipulação e os desvios éticos e legais da Lava Jato já ecoavam há muito, como nos conta Marina Amaral e seu colega de Agência Pública, o jornalista Vasconcelo Quadros:    

Todos os jornalistas que participavam da cobertura tinham conhecimento dessas ações, conforme observou Vasconcelo Quadros, repórter veterano da Pública em Brasília, em texto escrito para uma de nossas newsletters durante a Vaza Jato: ‘Os jornalistas que passaram a integrar o pool com acesso privilegiado aos bastidores da operação sempre souberam que Moro era o chefe, de fato, da operação. Na medida em que a operação foi ganhando os aplausos da população, regras elementares do jornalismo foram sendo deixadas de lado. Enquanto o Ministério Público Federal e a Polícia Federal se utilizavam de táticas proibidas – como grampos ilegais, pressão psicológica, cerceamento da defesa – e concentravam sua atuação basicamente nas delações, a imprensa incensava Moro, dando a ele o papel central da Lava Jato. Não foi só pauta enviesada. A imprensa não amarrou a operação a episódios como as manifestações contra a corrupção, a campanha do MPF iniciada em 2013 para tornar-se protagonista das investigações, as tentativas de interferir no resultado da eleição presidencial de 2014, no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e, finalmente, na ascensão da extrema direita ao governo de 2018.

A fala de Vanconcelo Quadros é contundente, assim como a avaliação de Marina Amaral e as perguntas de Paula Cesarino Costa. São vozes como essas que nos lembram que o jornalismo resiste no Brasil e que, apesar de ter grande mérito na ascensão do lavajatismo, e consequentemente do bolsonarismo, foi também o jornalismo e a coragem de um denunciante que rasgou o véu da pureza quase messiânica, mostrando a verdadeira face da Lava Jato.