Enquadramento jornalístico: uma análise dos elementos do quadro jornalístico da Gazeta do Povo
Caio Moserle,
Cristiane K. Sato,
Rodolfo Luis Kowalski
Deltan Dallagnol se torna um dos colunistas da Gazeta do Povo e tenta legitimar a Lava Jato novamente
Com o lema “Justiça, política e fé”, Deltan Dallagnol agora tem uma coluna no jornal Gazeta do Povo, o mais antigo veículo de comunicação do Paraná e um dos maiores do País. Após se eleger como deputado federal, o ex-procurador e coordenador da Lava Jato promete retomar a operação que foi o maior escândalo judicial da história do Brasil.
Logo nas primeiras publicações, seu posicionamento já ficou bastante claro: combater e perseguir a esquerda liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e, principalmente, o presidente eleito no último pleito, Luiz Inácio Lula da Silva – o mesmo Lula que foi condenado sem provas graças a um conluio de procuradores (entre eles Dallagnol) e o juiz do caso na época, Sergio Moro (eleito senador), num movimento que abriu espaço para Jair Bolsonaro (PL) se eleger em 2018.
Não há nenhuma novidade aqui, mas uma importante confirmação. Se antes havia indícios de que a Lava Jato era apenas um instrumento de guerra política, e não de combate à corrupção, hoje seus ex-integrantes confirmam, sem medo e sem vergonha, que este era de fato o objetivo da operação. Com Moro, sua esposa (Rosângela) e Dallagnol eleitos, foi formada a chamada “bancada da Lava Jato”, que busca apoio de partidos da direita.
Em uma matéria publicada na Gazeta do Povo, o jornalista Olavo Soares comenta sobre o posicionamento da bancada, indicando que os novos parlamentares devem priorizar denúncias contra um dos campos políticos em específico.
“O futuro deputado Deltan Dallagnol indica que sua atuação como parlamentar deve priorizar denúncias que envolvem o PT, e não as relacionadas ao governo do presidente Jair Bolsonaro (PL).
O agora parlamentar ainda minimiza a responsabilidade da gestão Bolsonaro nas irregularidades que envolvem o chamado “orçamento secreto”, como ficaram conhecidas as emendas de relator ao Orçamento da União, caracterizadas pela falta de transparência na distribuição e execução dos recursos. “Até agora não surgiram evidências do envolvimento do governo federal em desvios, mas sim de autoridades locais de prefeituras que receberam os recursos. E os casos vêm recebendo o devido tratamento das autoridades típicas de investigação”, diz Dallagnol.
O fato de fecharem os olhos para a corrupção escancarada em volta do “orçamento secreto” de Bolsonaro (PL) e priorizarem investigações contra o PT leva a um questionamento importante e inevitável. Afinal, que tipo de combate à corrupção é esse que escolhe, conforme interesses ou conveniência política, quem vai investigar e quem vai deixar de investigar? A resposta: o método Lava Jato, que além de escolher seus alvos, viola e distorce princípios jurídicos.
Vaza Jato: a investigação jornalística que colocou os integrantes da força-tarefa contra a parede e a grande mídia de frente para o espelho
Convém relembrar alguns capítulos da história de Deltan Dallagnol com a mídia no período de atividade na Lava Jato (mais especificamente a Gazeta do Povo, nesse caso).
É quase inesquecível o momento em que o The Intercept publicou a primeira reportagem sobre os materiais vazados que mostravam contradições e condutas antiéticas dos integrantes da operação. Foi a grande virada na história da até então chamada “maior operação anticorrupção do mundo” – que de anticorrupção não tinha nada.
Foi nesse momento que ficou explícita a utilização por alguns da operação como instrumento político e da mídia como linha de frente de legitimação da narrativa lavajatista, num movimento que corroeu valores de diversas instituições democráticas. A própria nomeação de cada fase da operação já demonstrava uma estratégia de marketing.
Como afirma a professora do Departamento de Ciência Política da UFMG, Marjorrie Marona, no seu livro ‘A Política no banco dos réus – A operação Lava Jato e a erosão da democracia no Brasil’, a Lava Jato dispôs de instrumentos de poder (como a delação premiada) e do grande poder de agenda (com apoio da parte da elite judicial, da elite política e da imprensa brasileira) para construir uma imagem “corrupta” dos políticos e uma narrativa sobre a corrupção como o grande problema social do Brasil.
Ou seja, a mídia e os meios de comunicação tiveram um papel imprescindível na legitimação do método Lava Jato. Jornais de grande porte, como foi o caso da Gazeta do Povo, deram cobertura a diversos eventos e publicidade a vazamentos ilegais, ajudando a criar uma imagem de “herói” e “justiceiro” para integrantes da força-tarefa, como Deltan Dallagnol e Sergio Moro, a despeito dos visíveis excessos cometidos pelos acusadores e pelo julgador e de condutas controversas adotadas por eles.
Com o escândalo da Vaza Jato, tais excessos e más condutas foram comprovados através de conversas entre os próprios membros da força-tarefa. Diversas mensagens mostravam uma posição nada republicana dos agentes, com vazamentos seletivos e desrespeito ao sigilo legal (como aconteceu com diversas delações premiadas vazadas à imprensa antes mesmo de homologadas), trocas ilegais de informações entre procuradores e juíz e até mesmo a atuação do magistrado, que deveria ser uma figura imparcial no processo, como coordenador da força-tarefa e, logo, da acusação.
As revelações fizeram diversos jornais, inclusive alguns intitulados de “direita” ou que tomavam posicionamento acrítico à operação, mudar de posição. Um caso emblemático foi o da revista Veja, que na época publicou uma “Carta ao Leitor” fazendo uma espécie de mea culpa, recriminando condutas ilegais de Moro e Dallagnol.
Mas esse não foi o caso da Gazeta do Povo, que seguiu firme em seu posicionamento lavajatista, apesar de todas as provas de abusos cometidos pela operação.
Não seria por menos que, em 2021, Thaméa Danelon, procuradora da República em São Paulo, ex-coordenadora da Lava Jato no Estado e amiga pessoal de Deltan Dallagnol, se tornaria colunista do jornal e agora, em 2022, Dallagnol ganharia uma coluna também. A ideia é, claramente, utilizar o jornalismo como instrumento de legitimação de suas narrativas através da opinião pública, assim como foi feito durante os anos de operação.
Depois de a Lava Jato assumir explicitamente o seu caráter político, agora tenta, mais uma vez, se legitimar através da imprensa.
O enquadramento jornalístico e a Lava Jato
O jornalismo é o grande responsável por mostrar os acontecimentos para a sociedade e a política é um dos temas mais discutidos e apresentados pelos veículos de comunicação. Contudo, esses assuntos podem ser apresentados de forma “fabricada”, com alguma intenção que não aquela que teria argumentos suficientes para uma explicação correta ou adequada.
O sociólogo Erving Goffman aborda uma temática central no livro “Os quadros da experiência social: uma perspectiva de análise”: de que a experiência de cada indivíduo tem como consequência a forma pela qual ele enquadra a realidade ao seu redor. O conceito pode ser usado para uma análise da comunicação, como o enquadramento jornalístico – também conhecido como framing -, que consiste em estudar a formação dos elementos que compõem o quadro jornalístico.
Esse enquadramento é várias vezes construído ou fabricado através da seleção de informações e resulta numa fabricação de informações desconexas, e não num fato em si. Um exemplo dessa fabricação de enquadramento é a coluna da ex-coordenadora da Lava Jato em São Paulo, publicada em 2021 na Gazeta do Povo, que discorre sobre as anulações na Lava Jato.
Em termos jurídicos, há uma construção de fatos e a apresentação de argumentos fracos e sem muito embasamento constitucional.
É curiosa a construção argumentativa da procuradora acerca do que afirma a “boa doutrina” sobre a não decretação de nulidade quando não há prejuízo para a defesa. Primeiramente porque não é especificada qual a “boa doutrina” defendida aqui, uma vez que há resistência a tal argumentação por doutrinadores de renome, dentre eles o professor Aury Lopes Jr, o professor Jacinto Coutinho e o professor Gustavo Badaró.
Partindo da premissa de que a incompetência do juízo, nesse caso, seria mera nulidade relativa, pontua Aury Lopes Jr que “a categoria de nulidade relativa é uma fraude processual a serviço do punitivismo”. Assim, a “boa doutrina” que a procuradora menciona é no mínimo obscura e embargável.
Segundamente, porque a argumentação de que a defesa pôde apresentar peças processuais e recursais, inclusive para tribunais internacionais, não encontra qualquer respaldo para justificar a manutenção do processo frente às ofensas ao princípio do juiz natural relativas às regras de competência do juízo e às evidências de atuação parcial. Conforme aponta Aury Lopes Jr, “forma é garantia”. Uma vez desrespeitada a forma processual (nesse caso os postulados sobre fixação de competência no Código de Processo Penal), não há que se falar em provar prejuízo, sendo inerente à violação da forma processual.
Ainda afirma a procuradora que não foi observado o Código de Processo Penal nos processos da Lava Jato. Nisso tem razão, mas não em relação à atuação do STF, que meramente retificou a aplicação do devido processo legal, negligenciado pelo juízo incompetente e parcial.
O mais curioso e pertinente ponto, todavia, é a omissão da procuradora sobre a parcialidade de Moro, que foi reconhecida pelo STF e até pela ONU. Ora, não se trata apenas de incompetência, ainda que fosse suficiente para a anulação do processo. Moro também foi declarado suspeito, o que é uma afronta ainda maior ao Princípio do Juiz Natural constitucional e às regras processuais penais como um todo. A procuradora expressa insatisfação com a suposta violação dos Princípios da Eficiência e da Razoável Duração do Processo, inclusive criticando a “perda” de 7 anos de trabalho de agentes estatais, mas se queda silente sobre a patente violação do Princípio do Juiz Natura (basilar para a operação do Direito Penal e violado tanto pela incompetência do juízo quanto pelo flagrante imparcialidade de Moro)?
Desqualificados os argumentos jurídicos, restam apenas os argumentos morais e emocionais, de “impunidade”, de “corrupção endêmica e sistêmica”. A suposta defesa de um processo justo e correto e de combate à impunidade passa, necessariamente, a partir dos argumentos empregados, pelo atropelo a princípios basilares do Direito Penal e da Constituição Federal e, consequentemente, pela destruição do Estado Democrático de Direito.
Os fins justificam os meios?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GOFFMAN, Erving. Os quadros da experiência social: uma perspectiva de análise. Petrópolis: Editora Vozes. 2012.
JUNIOR, Aury Celso Lima L. DIREITO PROCESSUAL PENAL. São Paulo: Editora Saraiva, 2021.
KERCHE, Fabio, MARONA, Marjorie Corrêa. A Política no banco dos réus – A operação Lava Jato e a erosão da democracia no Brasil. Editora Autêntica: Belo Horizonte, São Paulo, 2022.