A atuação desastrada e politicamente direcionada da Operação Lava Jato num suposto combate à corrupção deixou um verdadeiro rastro de destruição na economia brasileira. Na última semana, por exemplo, revelou-se que apenas o setor da construção civil pesada teve um rombo de pelo menos R$ 105 bilhões, montante que supera em mais de quatro vezes os R$ 25 bilhões desviados que o próprio Ministério Público Federal alega ter recuperado.

Mas se a economia brasileira e milhões de brasileiros que perderam seus empregos saíram no prejuízo com a atuação criminosa (porque parcial) da Lava Jato, algumas pessoas ainda conseguiram sair lucrando em meio ao desastre. E um desses nomes é o do ex-juiz Sergio Fernando Moro.

Depois de comandar ilegalmente a Lava Jato (já que um juiz deveria ser imparcial e manter equidistância entre as partes envolvidas num processo, mas hoje se sabe que o então magistrado federal na prática coordenava a atuação do Ministério Público Federal), Moro alcançou o posto de ministro da Justiça e Segurança Pública no governo de Jair Bolsonaro. Após deixar o cargo, foi faturar alguns milhões de reais atuando para a consultoria Alvarez & Marsal (A&M).

A priori, não é ilícito alguém receber um bom salário de uma empresa do setor privado, ressalte-se. O caso do agora político Moro, no entanto, merece uma atenção especial. Isso porque, enquanto juiz, Moro foi partícipe do terror judicial e do desastre político e econômico promovido pela Lava Jato, além de também ter atuado na condução de acordos de colaboração e leniência, beneficiando diretores de grandes empreiteiras. E depois de deixar a magistratura, achou que seria de bom tom assinar um contrato milionário com um grupo que lucra com as empreiteiras que a Lava Jato ajudou a quebrar – a A&M, como se verá mais detidamente a seguir, é responsável pela recuperação judicial de empresas como a Odebrecht e a OAS.

Ou seja, Moro provocou um desastre jurídico, político e econômico e depois assinou contrato com um grupo que é, em última instância, beneficiário desse mesmo desastre.

AOS FATOS

Sergio Moro ganhou notoriedade ao comandar a Lava Jato entre março de 2014 e novembro de 2018, quando era juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba. Deixou a magistratura para assumir um cargo de ministro no governo do recém-eleito Jair Bolsonaro, cerca de um ano depois de condenar Luiz Inácio Lula da Silva (em atuação fundamental para tirar o petista da disputa pela presidência da República nas eleições de 2018). Em abril de 2020 ele pede demissão do ministério, vai trabalhar na iniciativa privada e no final de novembro desse ano é contratado pela Alvarez & Marsal.

Ao ser anunciada sua contratação, a própria A&M apresenta Moro como “sócio-diretor, com sede em São Paulo, para atuar na área de Disputas e Investigações.” Mais tarde, em abril de 2021, a consultoria se manifestou à Justiça de São Paulo ‘rebaixando’ o cargo do ex-juiz: a A&M disse que Moro não seria sócio de qualquer empresa do grupo e que o ex-juiz da Lava Jato fora contratado apenas como consultor.


O QUE FAZIA MORO NA A&M?

Afinal, o que fazia Moro na A&M, efetivamente?

Em live divulgada no final de janeiro de 2022 o ex-juiz apareceu ao lado do deputado federal Kim Kataguiri (o mesmo que criticou recentemente a criminalização do nazismo pela Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial) para tentar esclarecer sua contratação pela consultoria. Em mais uma contradição, afirmou que foi “contratado para trabalhar nos EUA, na filial da empresa em Washington” (a empresa alegara, inicialmente, que ele trabalharia em São Paulo).

Nessa mesma transmissão, Moro afirmou que seu trabalho na A&M era “fazer compliance anticorrupção, ensinar as empresas a fazer a coisa certa e não pagar subornos”. Foi, até hoje, a explicação mais detalhada sobre o que ele fez na consultoria, já que Marcelo Gomes, CEO da Alvarez & Marsal Brasil, e Eduardo Seixas, sócio diretor da Alvarez & Marsal Administração Judicial, já declararam que as autoridades brasileiras jamais saberão o que fez no grupo o ex-juiz da Lava Jato. O máximo que a empresa disse foi que Moro atuou no braço de disputas e investigações junto a um time de consultores externos formados por ex-agentes do FBI, ex-promotores e ex-funcionários de departamentos de Justiça.

Na tentativa de afastar as suspeitas acerca da prática de revolving door (quando um agente público de alto escalão passa a ocupar um posto na iniciativa privada se valendo de informações privilegiadas que detém por ter ocupado anteriormente um cargo público) sem se aprofundar sobre quais eram suas atividades, Moro alegou, basicamente, que trabalhava para uma empresa do grupo Alvarez & Marsal diferente da que trabalha da recuperação judicial das empreiteiras. Além disso, apresentou também uma curiosa cláusula em seu contrato com a A&M que, em tese, impediria a atuação do ex-juiz em casos relacionados a empresas de alguma forma ligadas à Lava Jato (no que mais parece uma admissão tácita de que os envolvidos sabiam estar cruzando a linha do aceitável).

Mereceriam guarida tais alegações?


QUEM PAGA A CONTA DA ALVAREZ & MARSAL

Ao Tribunal de Contas da União (TCU), a A&M informou que mais de três quartos (78%, mais precisamente) de todos os honorários que recebia no Brasil atuando em recuperações judiciais eram provenientes de empresas que foram alvo da Lava Jato.

Desde quando um braço do grupo começou a lidar com essas recuperações judiciais, em 2014 – ano de criação da Lava Jato, coincidentemente -, a consultoria já faturou R$ 83,5 milhões nesse ramo, dos quais R$ 65,1 milhões (78%) vieram de firmas investigadas pela operação. Na lista estão nomes como o Grupo OAS, o banco BVA, os Grupos Odebrecht e Atvos, a Queiroz Falvão, o Enseada e a Agroserra.

Além disso, em fevereiro de 2021 veio à tona uma nota fiscal emitida por Sergio Moro à A&M Consultoria em Engenharia Ltda, um braço da Alvarez & Marsal que não possuiria relação com os serviços prestados por Moro como consultor. Ao responder publicamente à revelação, contratante e contratado esqueceram de combinar as respostas públicas. O ex-juiz disse se tratar de um “erro material” na emissão de nota fiscal, enquanto a empresa afirmou que seu consultor “teve sua prática originalmente estruturada no Brasil na A&M Consultoria em Engenharia e em seguida foi transferida para A&M Disputas e Investigações”.

Mais uma entre várias contradições…

MORO ENRIQUECEU TRABALHANDO PARA A A&M

Na live ao lado de Kim Kataguiri, Sergio Moro ainda tentou se defender das suspeitas acerca de sua contratação pela A&M alegando que não ficou rico trabalhando no setor privado. “Não enriqueci. Fui trabalhar lá e recebi um bom salário”, argumentou o ex-juiz.

Anunciado no final de novembro de 2020 pela consultoria, Moro efetuou o distrato em outubro de 2021. Foi menos de um ano de trabalho, período no qual recebeu, bruto, um salário de 45 mil dólares por mês, além de ter faturado um bônus de 150 mil dólares quando de sua contratação (valor que foi parcialmente devolvido por ter encerrado o contrato antes de seu término). Ao todo, recebeu cerca de 3,7 milhões de reais.

Para se ter uma dimensão do que esse montante representa (e se Sergio Moro enriqueceu ou não trabalhando para a A&M), um bom parâmetro é verificar o quanto o ex-juiz recebia quando ainda estava na magistratura. Os dados são públicos.

Entre março de 2014 e novembro de 2018, período no qual Sergio Moro esteve à frente da operação Lava Jato, o ex-juiz arrecadou (também em valores brutos) 2,82 milhões de reais, com remuneração média mensal de 48.607,33 reais – montante que considera não só o subsídio ou salário em si, mas também os famosos ‘penduricalhos’ a que juízes têm direito (como auxílio-alimentação, auxílio-moradia, auxílio-transporte e outros) e outros pagamentos eventuais.

Ou seja, trabalhando por menos de um ano na Alvarez & Marsal o ex-juiz Sergio Moro conseguiu faturar 31,2% a mais do que recebeu trabalhando ao longo de quase cinco anos como magistrado. Se como juiz ele recebia, bruto, pouco menos de 50 mil reais por mês, como consultor ele passou a receber mais de 240 mil reais mensalmente (um salto de +380%).

O salário mensal (sem considerar o bônus) de Moro nos EUA representa 695% do salário de um juiz, 2567% do que ganha um médico e 9436% do salário de um professor da educação básica no Paraná, onde ele mora. Com os rendimentos no Alvarez & Marsal, o ex-ministro da Justiça de Bolsonaro ganhou mais do que 99% dos brasileiros e 872% do salário-base de um deputado federal.

Mas Moro ainda jura que não enriqueceu trabalhando para a consultoria que faz a recuperação judicial das empresas que ele, enquanto juiz, ajudou a quebrar.