O texto a seguir pretende explicar resumidamente um tema bastante complexo, estudado e debatido por especialistas de diversas áreas. Recomenda-se que, para além da leitura, sejam consultados outros materiais, disponíveis em diversos veículos e documentos na internet.

Todo Estado tem como princípio básico de funcionamento a arrecadação de impostos. Esse contrato social entre cobrador e pagantes rege nosso modo de viver enquanto seres políticos – oferecemos ao Estado parte de nossa produção e, em troca, ele atende às diferentes necessidades da população que o constitui, o que não seria possível se feito individualmente ou por um pequeno grupo. Arrecadar e utilizar esse dinheiro está previsto por lei (outro mecanismo que rege nosso ser-no-mundo), mas o que constitui seu caráter legal é a utilização para a solução de reivindicações coletivas – se o dinheiro for utilizado para qualquer tipo de benefício próprio, torna-se um ato corrupto.

No Brasil, o Poder Executivo (notadamente Presidente, Vice-Presidente e Ministros) é o responsável por estabelecer quanto será arrecadado e quanto será gasto através do Orçamento da União, realizado anualmente visando as finanças do ano seguinte. São três as principais medidas orçamentárias – o Plano Plurianual (PPA), que é um planejamento de médio prazo dos objetivos e metas do Governo Federal e a Lei das Diretrizes Orçamentárias (LDO), que orienta as prioridades da última medida, a Lei Orçamentária Anual (LOA).

Esta última, a LOA, é a instância em que constam, efetivamente, os gastos a serem realizados. O Executivo, então, envia esses documentos para o Congresso Nacional (formado por deputados federais e senadores), que realiza alterações e aprova os gastos, para então serem aprovados novamente, agora com as mudanças, pelo Executivo. Os detalhes das medidas, assim como o acesso aos documentos orçamentários, podem ser conferidos aqui.

Essas alterações no Orçamento por meio dos parlamentares (membros do Poder Legislativo) sempre existiram e são chamadas de “emendas”, que podem ser individuais ou coletivas (de bancada ou de comissão). Elas servem para atender às reivindicações políticas de cada parlamentar de acordo com seus compromissos políticos para com seus eleitores. O Orçamento Secreto, porém, foi uma deturpação completa dessa prática prevista por lei.

A partir de 2020, segundo ano do governo Bolsonaro, surgiram as RP9, que são as chamadas “emendas de relator com orçamento próprio”. Neste novo acordo, os relatores das emendas têm suas propostas adicionadas ao Orçamento aprovados pelo Executivo sem questionamentos, em troca de apoio e aprovação dos projetos do Presidente. Para piorar, essas novas emendas não têm seus detalhes divulgados, ou seja, não existe transparência para onde e nem quanto dinheiro será direcionado. É um caminho livre para ilegalidades.

Este é o chamado “Orçamento Secreto”, que leva esse nome justamente pois as emendas de relator não têm qualquer tipo de prestação de contas – o dinheiro público é usado e nós, pagadores de impostos, jamais sabemos para que. Por muito menos as ruas já foram tomadas por protestos, mas a sagacidade do esquema é existir em meio a mecanismos legais e complexos, o que afasta o entendido popular da gravidade do tema.

O acordo é torpe – nessa espécie de troca de favores (cuja moeda de barganha é a da União), os deputados e senadores conseguem arbitrar sozinhos sobre o gasto de dinheiro público, abrindo uma enorme margem para atos corruptos, especialmente desvio de verba e compra de apoio político. E é o que tem acontecido no Brasil.

Os valores são assustadores. O montante que saiu dos cofres públicos entre 2020 e 2021 ultrapassa os R$ 36 bilhões. Para título de comparação, em 2021 o orçamento inteiro do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação em 2021 foi de R$ 6,9 bilhões. No Mensalão – escândalo de corrupção ocorrido em 2005 – o montante foi de cerca de R$ 101 milhões. Para 2022, estima-se um gasto de quase R$ 17 bilhões em emendas do tipo RP9. De todo esse dinheiro, graças à falta de transparência, somente R$ 11 bilhões foram localizados pelo STF e por jornalistas, segundo o jornal O Globo. Todo o restante ainda é uma incógnita, e os parlamentares localizados não têm prestado contas à imprensa ou aos eleitores.

Além disso, e o que evidencia a parcialidade de todo o tema, as propostas aprovadas são somente do Centrão e dos aliados de Bolsonaro – segundo o Estadão, em 2020 a oposição ao governo recebeu somente 4% das emendas propostas, mesmo cada parlamentar (independentemente da posição) tendo direito à uma parte do valor da LOA.

Desde que surgiram as RP9s, diversos veículos de informação têm denunciado continuamente o uso de dinheiro público para os mais absurdos fins como a compra de tratores superfaturados em troca de apoio no Congresso e fraudes utilizando procedimentos do SUS como mais testes de HIV em uma cidade pequena do que em São Paulo e até mesmo verba para a retirada de 540 mil dentes em uma cidade com 39 mil habitantes.

Para além do dano material ao patrimônio brasileiro, há outra consequência grave: o aumento de tensão entre os poderes da República. O Supremo Tribunal Federal vem, continuamente, suspendendo os pagamentos para as emendas de relator, o que abre margem para que Bolsonaro, seus aliados e seguidores voltem a realizar ataques ao órgão a aos ministros.

Dessa forma, em português claro, o Orçamento Secreto foi uma forma que o atual governo e seus aliados políticos – justamente os que foram eleitos com discursos anticorrupção – encontraram de tornar legal movimentações de dinheiro que servem para fins ilegais, no meio dos tramites jurídicos envolvendo Executivo e Legislativo. Como consequência, ainda, colhem o caos político do qual alimentam suas campanhas e no qual a democracia brasileira rui. O Orçamento Secreto é, sem sombra de dúvidas, material e moralmente, o maior esquema de corrupção da história.